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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

2002 - noblesse oblige

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3832 Data: 20 de agosto de 2011

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O DISCURSO DO REI

Deu resultado com Demóstenes, dizem os livros sobre a antiga Grécia. Ele era gago, colocou pedras (seixos, diziam alguns professores) na boca e tentou falar assim. Conseguiu, curou a gagueira e se tornou o maior orador da época. Não sei se os historiadores estavam influenciados pela mitologia quando propagaram essa cura. O Duque de York se irritou com essa história depois que um médico encheu a sua boca de bolinhas de gude.

-Quase engoli!... - explodiu, depois de cuspir aqueles objetos para brincadeiras de criança.

A minha sobrinha, que é fonoaudióloga, me pedia para guardar as rolhas das garrafas de vinho que eu abria, o que dava uma média de 7 por mês. Explicou-me que pedia aos seus pacientes a emissão de palavras com as rolhas entre os dentes. O filme “O Discurso do Rei” não mostra profissional algum tentando esse método, nem mesmo Lionel Logue, o terapeuta da palavra.

Interessante que tenha sido a própria Elizabeth Bowes Lyon, a esposa do Duque de York, que tenha procurado sozinha o terapeuta, depois de enfrentar um estreito elevador de porta pantográfica, e não um assessor palaciano. Apesar de filha de um aristocrata latifundiário da Escócia, ela foi a primeira plebeia a entrar na casa real britânica desde o reinado de Henrique VIII. Relutante, porque passaria a viver num mundo de protocolos, recusou por duas vezes o pedido de casamento, como mostra o filme, mas casaram-se em 1923. Em 1926, nascia uma menina, a Elizabeth II, que hoje reina.

Quando volta ao consultório – um lugar magnífico que a equipe de filmagem descobriu em Londres – está na companhia do marido e os dois se espremem no tal elevador. Conta Colin Firth que o elevador enguiçou com ele e Helena Bonham Carter, a atriz que representou a Duquesa de York, e que, se ele tivesse de escolher pessoas como companhia para um elevador enguiçado, ela estaria no topo da lista, porque é pequena e muito divertida.

Se na primeira aparição de Lionel Logue, nós ficamos sabendo, através da Duquesa, que o Duque de York lutou na Primeira Guerra Mundial com o pseudônimo de Mr. Johnson, nessa segunda aparição, aprendemos alguma coisa sobre a gagueira em si. Citarei de memória (nem sempre confiável) alguns trechos do diálogo do filme:

-Desde quando vem sua gagueira?

-Eu sempre fui gago. - esbraveja.

-Ninguém nasce gago.

-Dizem que a minha gagueira começou quando eu tinha cinco anos de idade.

Lionel fala, então, dos soldados da Primeira Guerra Mundial que se tornaram seus clientes porque sofreram abalos emocionais. Gritaram e não havia ninguém para ouvir as suas vozes.

Ele tira um cigarro das mãos do paciente, que se rebela:

-Os médicos dizem que a fumaça do cigarro relaxa a minha garganta.

-A fumaça do cigarro vai encher os seus pulmões e matá-lo. - replica.

-Eles (os médicos) têm títulos oficiais.

-São, então, imbecis oficiais. - devolve.

O cigarro, como disse recentemente o Doutor Dráuzio Varela, foi o maior assassino do século passado. Vinte e poucos anos depois desse encontro, como Rei George VI, ele morreria de câncer no pulmão.

Lionel Logue, que tinha pretensões de ser um ator shakespeariano desde tenra idade, na Austrália, entrega o mais significativo monólogo do príncipe da Dinamarca, Hamlet, para o Duque de York ler. Ele se julga incapaz de tal leitura, mas o terapeuta o convence, enquanto grava a sua interpretação. A consulta termina de modo traumático, e o Duque, acompanhado da sua companheira, sai com o disco onde foi gravado o monólogo do atormentado príncipe.

Como era previsível, ao ouvir o disco, após um momento de desapontamento, o Duque de York retorna às consultas com o especialista australiano.

-Ficamos sabendo mais sobre os fatos que marcaram, desde a infância, Bertie – era assim que a família chamava o futuro Rei da Inglaterra, e também Lionel, de uma maneira atrevida, pois seu cartão de visitas, no filme, para a Duquesa foi “my room, my rules”.

Bertie era canhoto, mas se viu obrigado a se tornar destro. Essa revelação surge no momento em que ele cola peças de um veleiro, brinquedo de um dos garotos da casa. Também recebia beliscões da babá, que descarregava a sua ira numa criança que não tinha voz para se queixar.

A princípio, acredito, ele procurou a cura da gagueira por causa do seu fracasso num discurso em Wembley, em 1922, quando se dirigiu ao povo a pedido do pai, o Rei George V. Depois, ele pressentiu a possibilidade de substituir o irmão, como rei, pois este se mostrava demasiadamente enfeitiçado pela Srª Simpsons, uma americana que se divorciou duas vezes.

O filme mostra uma cena de festa em que a Duquesa de York evita ser recebida pela americana divorciada e, em seguida, comenta que ela prendeu o futuro rei Eduardo VIII com técnicas aprendidas num bordel de Xangai.

Lionel Logue, andando pelas ruas com o seu cliente, mostra-lhe a possibilidade cada vez mais factível de se tornar o rei e o Duque projeta nele todo o seu medo do futuro, de forma agressiva, mas sabe que não poderá fugir ao seu dever. Tem que seguir em frente e a proximidade do terapeuta da palavra se torna imprescindível, é a sua muleta emocional.

Albert, era esse seu nome, pois nasceu em 1895, no aniversário da morte do marido da Rainha Vitória, que ainda reinava nesse ano, vacilava, mas seu irmão também titubeava. Quando o Rei George V morre, o sucessor, apaixonado pela americana divorciada, chora compulsivamente no ombro da mãe, a Princesa Maria de Teck, que não sabe o que fazer, pois nunca houve exageros emocionais na família. Chorou mesmo, na vida real, de medo das exigências do cargo que teria de assumir.

A Princesa Maria de Teck foi vivida por Claire Bloom, uma das musas de Charles Chaplin: a bailarina de “Luzes da Ribalta” que não conseguia dançar por problemas psicológicas. Ela estava com 19 anos nesse clássico do cinema, e Charles Chaplin, com 61.

Depois que o irmão Eduardo VIII renuncia ao trono, fala-se no seu nome, Albert, mas o consideram germânico demais naquele tempo em que a Alemanha ameaçava a Europa com uma nova guerra e, assim, o Duque de York, que se chamava Albert Frederick Arthur George, tornou-se rei com o nome de George VI. Segundo alguns historiadores, a Rainha Vitória havia pedido que, em homenagem ao seu esposo morto, nenhum monarca recebesse o seu nome.

O “Discurso do Rei” contém várias cenas que dignificam a arte cinematográfica, e uma das mais marcantes ocorre quando o rei se dirige ao povo britânico e o seu terapeuta o rege, com o som do allegretto da Sétima Sinfonia de Beethoven.

As filmagens já haviam iniciado quando se soube que o neto de Lionel Logue, que faleceu em 1953, havia descoberto nos guardados dos pais o seu diário e cartas trocadas entre paciente e clínico. Assim, o roteiro teve de ser reescrito. Quando o Rei George VI termina o discurso ao povo sobre a entrada da Inglaterra na guerra, Lionel lhe diz que ele gaguejara no “w” e o rei se justifica:

-Eles tinham que saber que era eu.

Pinçaram tal diálogo do diário.

Há alguns anos, assisti na TV a cabo a um documentário que mostra o embarque da filha mais velha do Rei George VI com o marido, o Príncipe Philip para a Austrália. Esse fato ocorreu no dia 31 de janeiro de 1952, e o rei, que se encontrava doente, se fez presente no aeroporto, contrariando as recomendações médicas. Seis dias depois ele morre, e a filha volta às pressas da Austrália, como a Rainha Elizabeth II, que até hoje reina na Inglaterra. Desejamos que ela passe dos cem anos, como a mãe, que tanto ajudou o marido a superar a gagueira.

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