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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

2327 - caçador de casada


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4127                             Data: 09  de fevereiro de 2013
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80ª VISITA À MINHA CASA

Un bel di vedremo...
-Puccini?!...
-Meu nome é tão extenso quanto os da nobreza, eu até me esqueci dele todo. - demonstrou modéstia.
-Giacomo Puccini, você descobriu que nasceu para compor óperas quando assistiu a uma representação da  Aída  de Verdi em Pisa?
-Foi como uma epifania... Eu tinha dezessete anos de idade e, com meu irmão Michele, caminhamos trinta quilômetros até o teatro de Pisa.
-Não foi um footing, como muitos atletas praticam hoje?...
-Foi falta de dinheiro, mesmo. - confessou com um sorriso na comissura dos lábios.
-O que eu conheço da sua biografia, eu aprendi na Rádio MEC, a escola que eu acompanho dos treze anos de idade até hoje, ou por publicações. Sei, por isso, que você pertencia a uma dinastia de músicos.
-Essa dinastia, toda estabelecida na cidade de Lucca, remonta ao início do século XVIII. Meu tataravô, que também se chamava Giacomo, foi mestre de capela da Catedrale di San Martino. Sucedeu-o seu filho, Antonio Puccini, meu bisavô; depois, Domenico, meu avô; em seguida, Michele, meu pai. Minha família ocupou o cargo de mestre de capela da Catedrale di San Martino por 124 anos ininterruptos.
-Você nasceu, então, com o destino traçado: ser mestre de capela.
-Quando meu pai faleceu, eu tinha apenas seis anos; com essa idade, nem Mozart teria condições de ocupar esse cargo. Mas não me afastei da Catedrale di San Martino, integrei o coro infantil e, mais tarde, substituí o organista.
-Então, a criançada que participa do primeiro ato da Tosca, na Igreja de Sant' Angelo, na Tosca, foi uma alusão à sua infância?
-Sim.
-E a sua educação musical?
-Recebi noções gerais de música no seminário de San Michele e no seminário da catedral. Nessa época, meu tio Fortunato Magi supervisionou meu aprendizado. Obtive meu diploma da Escola de Música de Paccini, com vinte anos de idade, mais ou menos.
 -Tudo isso na cidade de Lucca?
-Sim; estudava, então, com o Tio Fortunato. Eu fiquei por um bom tempo preso às raízes. Porém, uma doação da rainha da Itália e o auxílio de outro tio me permitiram o prosseguimento dos estudos no Conservatório de Milão.
-Em Milão se encontravam os maiores mestres da Itália. - intervim.
-Estive no Conservatório por três anos, onde estudei composição com Amilcare Ponchielli, Antonio Bazzini e Stefano Ronchetti-Monteviti.
-Ponchielli não se enquadrava na frase de Bernard Shaw, “quem sabe faz, quem não sabe ensina”; pois ele compôs uma grande ópera, La Gioconda.
Depois de concordar comigo, foi adiante.
-Com a bagagem que obtive, até então, compus uma Missa, que era uma espécie de obrigação minha pela duradoura ligação da minha família com a igreja, mas já sentia que não estava predestinada à música sacra.
-Para a tese final de composição do Conservatório de Milão, você compôs o Capriccio Sinfonica, que impressionou sobremaneira seus professores.
-O meu Capriccio  agradou a muitos, recebeu elogios em algumas publicações milaneses e obtive a reputação de um jovem promissor no mundo da música.
-Estava aberto o seu caminho como compositor de óperas?
-Discuti o assunto com Ponchielli, que me incentivou muito. Apresentaram-me, então, a um jovem libretista de nome Ferdinando Fontana. Compus, sobre o libreto dele, a ópera Le Villi, que participou de uma competição, mas não ganhou.
-A mesma competição que Pietro Mascagni participou, poucos anos após, com a Cavalleria Rusticana, venceu, mas depois não obteve sucesso maior, mesmo tendo composto óperas por mais cinquenta anos?
-Esse mesmo; eu tinha vinte e cinco anos, quando competi, e o meu colega  Mascagni, também.
-Depois, veio a ópera Edgar com o mesmo Ferdinando Fontana como libretista.
-Um fracasso!... Edgar quase custou a minha carreira.
-Sugeriram a Ricordi que não editasse minhas óperas, mas ele confiou em mim, e bancou a minha próxima ópera com o seu próprio dinheiro.
-Você tinha de acertar dessa vez. - dramatizei.
-Para isso, afastei o Fontana. Giulio Ricordi me sugeriu o Ruggiero Leoncavallo que comporia o estrondoso sucesso, Os Palhaços, libreto e música. Ele, porém, não me agradou como letrista. Apareceram quatro, levei-os à loucura com as minhas exigências e as mudanças que eu mesmo fazia na estrutura da ópera, no fim, entendi-me com dois desses libretistas, Luigi Illica e Giuseppe Giacosa.
-E a sua terceira ópera, Manon Lescaut conseguiu um sucesso extraordinário.
-Tornei-me o líder operístico da minha geração.
-É uma ópera que nunca me canso de ouvir, não me satura. - afirmei.
-Com o regalo financeiro, eu, que passava meu tempo em Torre del Lago, a vinte e quatro quilômetros de Lucca, aluguei uma casa lá, trabalhando na minha quarta ópera e espairecendo com as caçadas.
-De mulheres?...
Sorriu com a minha indiscrição.
-Eu me envolvi com uma mulher casada, Elvira Gemignani, depois casamos.
  -Voltando à sua quarta ópera, La Boheme, é uma das mais encenadas da história da música lírica. - enalteci.
-Trabalhei três anos nela.
-Nessa ópera, não há como negar que você retratou a sua própria pobreza, o tempo em que tinha de andar trinta quilômetros para assistir a Aída, no poeta, no pintor, no filósofo e no músico.
Puccini confirmou com um sorriso e um gesto de cabeça, e eu continuei:
-Até Bernard Shaw, temido pela sua crítica ácida, da qual não escapou nem o consagrado Fausto de Gounod, derreteu-se em elogios diante de La Boheme.
-Arturo Toscanini, meu grande amigo, regeu a sua estreia em Turim, em 1896.
-A ópera seguinte foi Tosca.
-Eu assisti a uma peça de teatro de Victorien Sardou, com Sara Bernhardt, em 1889, chamada Tosca. Eu via a peça e a música vinha à minha cabeça. Isso em 1899, no ano seguinte, a ópera era encenada.
-Tosca foi a sua primeira incursão no “verismo”, a representação das muitas facetas da vida real, incluindo a violência, como a tortura de Mario Cavaradossi. - tagarelei.
-Eu trabalhava duro, mas queria também viver. Eu era apaixonado por carros. Fui um homem do meu tempo; personagens de Proust se queixavam dos carros substituindo as carruagens, eu não.
Abruptamente, volatizou-se, dizendo que retornaria logo, enquanto eu gritava, quase histérico, que ainda faltavam muitas óperas para ele falar,

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

2340 - Rádio Memória, logo de quem 2

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4140                                  Data: 27 de fevereiro de 2013
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DIECKMANN NA ROQUETTE PINTO
PARTE II

Antes de reiniciamos com a hora do Dieckmann na Roquette Pinto, houve protestos porque um dos seus filhos foi arrolado no etcétera, aqui vai, então, o seu nome: Bernardo.
Também nos esquecemos da primeira intervenção do Sérgio Fortes no programa, que foi uma pergunta ao Jonas Vieira:
-Você vai participar do conclave do Vaticano como candidato a papa?
Temos de registrar esse instante, porque o Jonas Vieira prometeu que teria revelações assustadoras para fazer, como veremos depois.
Naquilo que o Dieckmann denominou de sua biografia musical, depois de comparar os seus sete anos com os sete anos de Shakespeare, ele pediu “Chega de Saudade”, como registramos, mas não dissemos (falha nossa), que o magistral arranjo era do próprio Antônio Carlos Jobim.
Também cabe citar que a canção interpretada pela Nara Leão foi “Você e eu.”
Apesar de o Dieckmann ter afirmado que quem trabalhava ali era ele, pretendendo de uma maneira folgazã tomar as rédeas do programa, foi interrompido pela voz apreensiva do Jonas Vieira, que se disse acachapado.
Sérgio Fortes reagiu prontamente:
-Acachapado?!... Deixe-me ver a hora. Oito horas e dezessete minutos. Você ainda pode se acachapar.
Agora, com a voz acachapante, Jonas Vieira prosseguiu:
-São as centúrias XI, XIII E XXX de Nostradamus de uma atualidade estarrecedora.
E prosseguiu com os vaticínios das centúrias que tentaremos reproduzir com a nossa fraca memória:
-O homem de rosa deixará seu posto.  A fé humana se cobrirá com um véu. A morte revelará seu rosto erguendo rocha e fogo do céu. O reino do czar sentirá o primeiro corte. No mundo todo se revelará a morte. O morto abandonará o caixão para devorar a carne do irmão.
Em seguida, Jonas Vieira partiu para a decifração dos enigmas.
-Homem de rosa que abandona o posto é o papa que renuncia. A fé humana se cobrirá com um véu representa as muitas pessoas que abandonaram a igreja com os escândalos do Vaticano.
-Ainda mais agora que você avisou. - interferiu o Dieckmann sardonicamente, provocando risos até no intérprete de Nostradamus.
Ele voltou à seriedade.
-Erguendo rocha e fogo do céu... O reino do czar sentirá o primeiro corte...
E comentou, em seguida terrificado:
-Gente, o fogo do céu é o meteoro que caiu agora na Rússia.
-É espantoso. - disse o Sérgio Fortes, sem a mesma ênfase.
-O que eu não entendi ainda foi “O morto abandonará o caixão para devorar a carne do irmão.” 
Dieckmann se referiu aos zumbis. Cá comigo, pensei, numa tentativa de entendimento daquele simbolismo, que na bola de cristal do Nostradamus houve interferência de algum filme do Boris Karloff.
Depois os três passaram a discutir o nome correto do chapéu do papa, quando, na minha visão, deveriam discutir essa cor rosa que o papa veste. Rosa?... Seria o vidente daltônico?...
A palavra foi para o Sérgio.
-Ontem, eu apanhei o meu carro (de décadas passadas, naturalmente), que estava há dois anos na oficina.  Dirijo por São Cristóvão com a maior tranquilidade, quando enguiço num túnel, que eu viria saber, chamado de Rufino Pizarro.  Aparece, então e em 5 segundos, um guarda municipal com a maior educação do planeta. Chamou pelo rádio uma prancha que, rapidamente, levou o meu carro. Eu tenho de registrar isso aqui.
-Esse enguiço não foi previsto por Nostradamus. - não perdeu a piada o Dieckmann. (*)
Mais tarde, Dieckmann reviu sua posição; escreveu-nos que lá está na centúria XIV: “Pagarão caro os talentos multifacetados que no fundo com suas bigas.”
E esclareceu: “fundo é o túnel, biga é o Porsche, e o talento multifacetado é o Sérgio Fortes.
Mas retornemos à sua biografia musical. Com a palavra o ouvinte que fala mais do que ouve.
-Encerrada a fase da Bossa Nova, nós entramos na fase da dancinha de salão. E, como o assunto é dança, não há como não falar de Ray Conniff. Dancei muito ao som de Ray Conniff, digo, por mais ciúmes que eu venha causar...
Então, Dieckmann citou o filme “Oklahoma”, que reviu recentemente e solicitou que tocassem um trecho musical da fita com a orquestra do maestro mencionado. Antes o Sérgio Fortes perguntou quais eram os artistas, reportei-me, então, às sabatinas do Sabadoido. A resposta veio imediatamente; ele, de fato, se preparou muito bem para aquela hora na Roquette Pinto.
Jonas Vieira pediu uma pausa para meditação, o que seriam os comerciais na televisão e retornamos ao programa uns dois minutos depois.
-A melhor música feita para se dançar é “Cheek to Cheek”. - garantiu o Dieckmann com a sua voz de “locutor da BBC”.
Depois de localizar a composição de Irving Berlin em 1935, disse que o “heaven”, o “i'm heaven” dão a impressão de que viria um ritmo arrastado, mas o artista surpreende e nos deparamos com momentos deliciosos. Cita, então, o filme Top Hat (Picolino), com Fred Astaire, o que mais divulgou a canção. Feita essa introdução, solicita que se toque “Cheek to Cheek” na voz do legendário dançarino com o som do seu sapateado. Não há como não se sentir inebriado.
-Acabamos e ouvir “Cheek to Cheek...” - e por aí vai o Dieckmann que, de fato, queria ser o único a trabalhar naquela manhã de domingo.
Ele anuncia, então, que acabou o seu tempo de dança de salão, Veio o rock - disse – e ninguém ousava dançá-lo em lugares de família. Depois, Nesse contexto, Dieckmann e Sérgio Fortes remontaram aos anos 30, ao Hot Music, quando houve gêneros musicais, fox trot, boogie woogie, e outros derivativos que resultaram no rock.
Prosseguindo com o programa em que o ouvinte escolhe o repertório, Dieckmann voltou ao Brasil. Não podia - como assegurou – não falar de Dick Farney.
-Meu xará. - aludiu ao fato de, algumas vezes, ser chamado de Dick. (**)
-Toda a família conhecida em Santa Teresa; Dick, Cyll Farney... Recordo-me do carro MG entrando na garagem. - animou-se o Sérgio Fortes.
-Sim e a mãe deles dirigindo com a frente do carro batida. - pilheriou o Dieckmann. (***)
-Havia grandes artistas como ele, como Bené Nunes, que ficaram, aqui no Brasil, subavaliados. - afirmou o Sérgio Fortes pensando, talvez, no pai.
-Sim; eles tinham grande potencial que não foram explorados, o que aconteceria certamente nos Estados Unidos. - concordou o Dieckmann.
Jonas Vieira, por um bom tempo, era o ouvinte, como nós.
-Bem, a música que vocês ouvirão é “Uma loura”. Tem um quê de cafajeste e é sensacional na voz do Dick Farney.
Tocado o pedido do Dieckmann, ele passou para o Sérgio Mendes.
-Um niteroiense de boa cepa, o único. - comprou briga com Niterói.
-Eu morava na Rua República do Peru e me enturmava com o pessoal do Fernando Leporace. Quando a Gracinha Leporace, futura esposa do Sérgio Mentes, foi para os Estados Unidos, nós a promovemos a “Greice Leporeice”.
Dieckmann riu desse caso do amigo e falou de países latinos extremamente nacionalistas que chamam o refrigerante Seven Up de Siete Arriba. Ele pede, então, que seja tocada “Day Tripper” dos Beatles com Sérgio Mendes.
Adiante, refere-se a um músico que considera fantástico, César Camargo Mariano. Vêm, então, aos nossos ouvidos as notas jazzísticas de “Samambaia”, que arrepiariam os poucos cabelos do José Ramos Tinhorão.
Dieckmann entra, agora, na fase dos seus 25 anos, quando detestava filme musical. Mudou de gosto (****) ao ver “Cantando na chuva”. Depois de enaltecer a fita, um hino ao otimismo e se referir ao excelente enredo sobre a transição do filme mudo para o falado. E surpreendeu o Jonas Vieira e o Sérgio Fortes quando informou que trouxe outra gravação para ser ouvida: Louis Armstrong e Bing Crosby interpretando um trecho do filme High Society.
-Tem tudo a ver. - ironizou o filho do barítono Paulo Fortes.
Na reta final do programa, perto das nove horas da manhã, o ouvinte especial daquele domingo enalteceu um artista fantástico: Stanley Holloway.
-Ele foi pai da Julie Andrews por mais de dez anos na Broadway.
E seguiu em frente:
-Trouxe uma gravação do Get me to the church on time, da trilha sonora do filme, gravada quando ele tinha 74 anos de idade.  Se ele, com essa idade fez isso, eu poderei jogar bola até os 75 anos.
E ouvimos, então, com o astro nada idoso, a instigante música da peça My Fair Lady.
O programa terminava. Jonas Vieira agradeceu ao Dieckmann, que inaugurava o “Ouvindo os ouvintes” e Sérgio Fortes desejou um memorável abraço para todos.
Valeu a pena atrasar por uma hora a ida à praia.

(*) A piada existiu, mas foi do próprio Sergio Fortes. Este Distribuidor faz a ressalva porque o Dieckmann detesta usurpar piadas alheias.

(**) “Dick Farney nasceu em 14 de novembro!” Disse-me estupefato, o Dieckmann.

(***) “Pilhéria, uma ova!” Bradou o Dieckmann, que acompanhou esta edição passo a passo, ou melhor, letra a letra. “O carro batido era um Jaguar e apareceu em “Amei um Bicheiro”, mas a mãe do Cyll, não.”

(****) Dieckmann conta que toda a sua iniciação musical – com suas tias-avós, as patroas das empregadas do rádio – incluiu um sem número de musicais da Metro, que passavam nos cinemas, nos anos 50. E esses, ele detestava. Quando viu “Cantando na Chuva”, aí gostou. Já tinha uns 25 anos e continuava detestando os ‘outros’ musicais. Não foi uma mudança cronológica e sim de ser apresentado a um filme realmente bom.






terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

2339 - Radio Memória, logo de quem, 1

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4139                                Data: 26 de fevereiro de 2013
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DIECKMANN NA ROQUETTE PINTO

No Sabadoido, avisei meu irmão que o Dieckmann iria falar amanhã, às 8 horas, na rádio Roquette Pinto. Ele quis saber sobre o quê ele trataria, respondi: a história do rádio.
-Mas o Dieckmann não fala sobre carros antigos?... - reagiu o Claudio.
-Rádio. - enfatizei.
Imaginei que ele acionaria os seus alfarrábios, reportando-se a Marconi e ao padre brasileiro Roberto Landell de Moura.
Sérgio Fortes também participaria do programa como anfitrião juntamente com Jonas Vieira, personalidade com muita vivência nas transmissões radiofônicas.
Sérgio Fortes me traz logo à lembrança a sua convidada que comentou a ópera de Verdi, A Força do Destino, antes de a mesma ser ouvida, na íntegra, na Rádio MEC. Referindo-se à viagem do compositor à Rússia para a estreia da sua obra, ela citou os acompanhantes: a esposa dele, Giuseppina Strepponi e a filharada. Filharada?... E a filharada fazendo algazarra no trem.
Dieckmann, certamente, estaria tão bem preparado quanto um aluno que se xinga se tira menos de 10 numa prova.
Depois que a voz alegre do Sérgio Fortes substituiu a não tão alegre do Jonas Vieira, comecei a perceber qual seria a tônica do programa.
 Sérgio Fortes fez as apresentações para o ouvinte: tratava-se de um amigo de muitos e muitos anos, tão maluco quanto ele, pois colecionava carros antigos, com uma agravante: ingleses; pai do Fred, Gagau, Carolina e Bernardo. Funcionário da Petrobras, não sei se isso era para ser dito...(*)
Vibrou, então, no éter, a voz de “locutor da BBC” (segundo o Faustão) do Roberto Dieckmann.
Dieckmann, depois das saudações de praxe, reportou-se à sua infância e não fez por menos, citou também esse período da vida de Shakespeare. Começaria a falar da sua vida de ouvinte de rádio desde os sete anos de idade, quando havia um relacionamento muito grande entre as crianças e as criadas da casa. Sérgio Fortes, assustado, interveio:
-Eu não sabia que o Dieckmann iria enveredar por esse lado... Não sabia dessa precocidade... (**)
Com os meus botões, eu dizia que o Dieckmann foi mais precoce do que o Elio Fischberg, que se iniciou com as costureiras da Rua Conde Lages com quatorze anos.
Veio-me, então à mente, uma frase do Professor Freud aos seus pares que se mostraram surpreendidos com as suas revelações: o que digo, todas as babás já sabem.
Ainda abismado, Sérgio Fortes prosseguiu:
-Com sete anos, eu ainda brincava de carrinho.
Um brinquedo do século XIX, provavelmente, pois a sua vocação de colecionador o acompanha desde o berço. - imaginei.
 Dieckmann entrou no assunto, dizendo que lhe desagradavam as músicas passionais, carregadas de desespero e citou “risque meu nome do seu caderno, já não suporto o inferno do nosso amor fracassado” do Ary Barroso. Para ele, o surgimento da Bossa Nova foi como o nascer do sol depois de uma noite tenebrosa (***) no cancioneiro nacional. E falou dos beijinhos e abraços, dos peixinhos e barquinhos, mas se esqueceu do pato. Tudo bem, a Bossa Nova é muito variada para que tudo seja lembrado.
Deteve-se no “Barquinho” de Menescal e Bôscoli, esclarecendo que a letra fala em manhã de sol, do azul do mar; música inteiramente luminosa, embora tenha sido inspirada por um instante de terror: falhou o motor do barco que, por momentos, ficou perdido, ao sabor das ondas.
Também ouvi o depoimento do Roberto Menescal sobre esse caso, que disse que procurou retratar na música o som do motor da embarcação que rateava.
Finalmente, Dieckmann solicitou que tocassem a sua primeira música: “Chega de Saudade”.
Jonas Vieira e Sérgio Fortes aprovaram e Dieckmann, inteiramente à vontade, aliás, já estava assim desde que comparou a sua infância com a de Shakespeare, acrescentou.
-Quero ouvir “Chega de Saudade” com a orquestra apenas, pois aprecio muito a música instrumental.
Uma beleza. Acertou em cheio; o arranjo era ótimo e qualquer voz, por mais bonita que fosse, atrapalharia. Acredito que a grande maioria das composições do Tom Jobim dispensa letras.
Dieckmann, depois de tocada a composição que deflagrou a Bossa Nova como gênero musical, identificou os músicos e prosseguiu com a sua admiração por esse período da música popular brasileira.
-“Wave” é a mais bela música da Bossa Nova. - afirmou com convicção.
E as inspiradas notas musicais da lavra de Tom Jobim atraíram inteiramente a nossa atenção.
Dieckmann não citou João Gilberto (ainda bem), mas não esqueceu Nara Leão.  Louvou a importância da cantora na música popular brasileira e, logo depois, a sua delicada voz chegava aos nossos ouvidos.
Até agora, o Dieckmann está acertando. - disse comigo mesmo. (****)

(*) Não era, pois sou contratado para prestar serviços e não sou empregado da Petrobras. Há uma diferença, mas no coloquial não há como se evitar.

(**) Eram só beliscões maliciosos; já as costureiras...

(***) Disse apenas que aquele palavrório era pouco assimilável por um garoto de 8-10 anos e que as letras da Bossa Nova foram muito mais compatíveis com o universo desse mesmo garoto. Fui contestado pelo Jonas Vieira, que aprecia muito o gênero, mas ele entendeu com as explicações o teor das minhas alegações.

(****) Deus do Céu, parece haver uma continuação.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

2325 - padrinhos e apadrinhados


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4125                        Data: 06  de fevereiro  de 2013
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SABADOIDO AINDA SEM SISO
PARTE II

-Fui recebido pelo Claudio e pelo Vagner com uma pergunta dita quase em uníssono:
-Você sabe para onde foi o Luca?
Espantei-me, pois considero os dois melhores informados sobre o nosso amigo do que eu.
-Ele foi para Foz do Iguaçu.
-Pensei que tivesse ido para Paris. - comentou o Cláudio.
-Não; ele foi comemorar o aniversário da esposa, não do governador. A Glória não gosta de ficar aqui quando aniversaria.
-E acrescentei.
-Parece que ele foi com ela e a Kiara a Foz do Iguaçu, fronteira do Brasil com a Argentina.
-Lá é mais bonito, pelo que sei. - disse o Vagner.
-Lá está a Garganta do Diabo, mas que não fala mais do que o Luca. - alfinetaram.
Nossa conversa foi interrompida por um chamado no portão. Cláudio identificou logo a voz: era do Lopo.
Daniel, mesmo no interior da casa, reconheceu-a também, pois veio até nós aguardar a entrada do tio.
Lopo apareceu com uma sacola de compras e logo recebeu a gozação do Daniel pela derrota do Vasco diante do Flamengo.
-Você, como o Carlão deixaram de ser tricolores... Hoje, sofrem por virarem casaca.
-Quando nós éramos crianças, o papai exercia a ditadura clubística lá em casa: todos tinham de torcer pelo Fluminense. - manifestei-me.
Depois de mais algumas gozações, meu sobrinho se deu por satisfeito e se retirou para dentro de casa.
Aproveitando que o ambiente ficou menos folgazão, Cláudio se dirigiu ao Lopo.
-O Chico, que lê, no Ceará, o Biscoito Molhado pelo blog, disse que você errou: Luís Peru ficou assim conhecido pelo corte de cabelo.
-Não; ele ficou procurando a bola como um peru tonto. - rebateu o Lopo.
-O termo frango surgiu no futebol porque o Ubirajara, quando era goleiro do Bangu, foi agarrar uma bola como se fosse pegar um frango no galinheiro. - saí em defesa do meu irmão mais novo recorrendo à analogia das aves.
-Naquele tempo, nossas mães pegavam as galinhas no galinheiro para nós comermos. - interveio o Vagner.
-Olha, Lopo, que o Chico se recorda de tudo da Rua Chaves Pinheiro. - advertiu o Claudio.
-Quanto tempo ele trabalha nos Correios?
-Carlinhos, no Ceará ele se estabeleceu há mais de vinte anos...
O esforço de memória truncava a sua fala:
-Mais de trinta anos ele tem de serviço... Daqui a pouco, o Chico já pode se aposentar.
Em seguida, meu irmão falou do Jorge, tio do Chico, que também morou na nossa rua.
-O Jorge era bastante prestativo, o que eu pedia a ele, fazia, a única contrapartida era eu ter de votar nos candidatos dele.
-Jorge era gente boa. - assinalou o Vagner.
-Foi o Jorge que arrumou o emprego do Chico nos Correios, ele sempre foi agradecido por isso. Quando o Daniel passou na prova, o Chico me disse para eu não deixar a oportunidade ir embora.
-Um bom conselho, pois o Daniel aprendeu muito nos Correios. - interferi.
Claudio e Lopo, juntamente com o Vagner, trocaram reminiscências sobre os casos da Chaves Pinheiro, até que meu irmão se fixou no trabalho dele com o Seu Moura, um dos moradores mais destacados da rua.
-Como eu e Seu Moura andamos por Copacabana! - mostrou desalento
E prosseguiu:
-Seu Moura ainda se distraía da caminhada com as mulheres que passavam.
-E você,não?... - falou o Lopo com um sorriso irônico.
-Eu tinha de carregar uma mala pesada. Percorremos, certa vez, toda a Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
-O que o Seu Moura vendia?- expressei minha curiosidade.
-Vendia produtos de farmácia; nós passamos por todas as farmácias de Copacabana. Não posso negar: Seu Moura sabia vender.
Dito isso, rumou para a cozinha para trazer um copo d’ água para o Vagner, e dois de caipiroska de limão para ele e o Lopo.
-Carlinhos, o Seu Moura sabia vender, tinha um bom papo. - disse o Vagner.
-Possuía um bom discurso, uma oratória articulada. - exagerei.
-Isso. - ratificou ele.
Claudio, que retornava, disse.
-Seu Moura perdeu a perna, em São Paulo, o negócio das vendas passou para o Hélio (seu genro) e foi por água abaixo.
Lopo levou a conversação para o mundo do crime no Cachambi.
-Eu desci a Vlamink e vi os sujeitos, com as motocicletas estacionadas, que matariam o Dudu. Na volta para casa, não vi o assassinato, porque meu celular tocou e eu parei para falar com o meu filho.
-O medo da mãe de você estar no fogo cruzado e a mudança de hospital da cesariana da Verônica (neta), por causa da gripe suína, contribuíram para o AVC que ela sofreu. - comentei.
- Eles sabiam que o Dudu chegaria àquela hora. - acrescentou o Lopo.
-Muita gente chorou a morte do Dudu. - lembraram.
-O Dudu foi patrão do Zeca Pagodinho.
-O Zeca Pagodinho já escreveu o meu jogo no bicho. - disse o Claudio o que todos nós já sabíamos.
E reportou-se a outro bicheiro:
-O Osvaldo chorou, quando o Dudu morreu, mas me dizia que não suportava o Ratão (irmão do Dudu.
-Ratão bebia, drogava-se, fazia maldades contigo se não fosse com a tua cara, o Dudu não era assim. - interveio o Lopo.
-Mas quando mataram o Ratão, passou uma romaria, por aqui, de Del Castilho para a Rua Piauí, onde estava o corpo.
-Lembro-me disso, Claudiomiro. - disse o Vagner.
-Elu não sabia que ele foi morto perto da Rua Fernão Cardim, logo lá, perto do território inimigo. - manifestei-me.
-O Dudu, por outro lado, morreu no território dele. Sentiu-se, por isso, seguro, relaxou, não devia estar com seguranças... - comentou o Lopo.
Claudio voltou a falar no Osvaldo.
-O falecido Osvaldo não podia ver o Daniel que lhe fazia uma festa.
-Ele chamava o Daniel de “meu camarada”. - recordei.
Claudio mudou, em seguida, de assunto, mas de uma maneira indecisa, voltado para mim:
-Sabe o tempo que você levava o Daniel para o Norte Shopping?... Houve uma vez que a Gina levou e você não estava. Então, um funcionário de lá abordou a Gina para adverti-la sobre um senhor que trazia o menino dela todos os domingos lá e pagava tudo para ele: fichas de fliperama, lanches no McDonads...
-Eu nunca soube disso.  A Gina nada me falou. - disse inteiramente surpreendido.
-A Gina reagiu logo: “ele é padrinho do menino”.
-O sujeito até que teve boa intenção. - ponderou o Lopo.
-Falamos, Claudio, dos Miseráveis, em que Jean Valjean criou a filha de uma prostituta desde menina; se fosse hoje, ele seria pedófilo.  Charles Chaplin, no filme “O Garoto”, não escaparia também dessa calunia. - desabafei.
-A criançada adora o Daniel, mas eu já disse para ele conter os arroubos dessas crianças.
Mesmo consciente desta nossa época de erotização extremada, saí do Sabadoido pensando que esse funcionário “bem intencionado” era um bom filho da puta.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

2324 - Miseráveis


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4124                         Data: 03  de fevereiro  de 2013
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SABADOIDO AINDA SEM SISO

No momento em que inflo os pulmões como um tenor que prepara o dó de peito, vejo a mão branca do Daniel que tentava com a munheca dobrada abrir o portão pelo lado de fora. Oculto pelo muro, segurei-lhe a mão. Ele não se assustou, tinha algo mais importante para temer.
-Estamos indo ao dentista, Carlinhos. Daniel vai extrair o siso. - informou-me a Gina, enquanto o portão era aberto para a saída deles e para a minha entrada.
-Você já não havia arrancado esses dentes?
-Há os sisos de baixo, Carlão.
-Pode ir; o Cláudio está na cozinha. - disse-me a Gina.
Meu irmão levantara uma barreira de páginas de jornal e imaginei que se abalasse um pouco se me visse à sua frente de maneira repentina, como aconteceu comigo ao ser visitado por Voltaire, Ernesto Nazaré, Jane Austen e outras figuras ilustres, por isso, me anunciei com a voz mansa.
-Senta aí. - foi o que respondeu sem abaixar as folhas do Globo.
A leitura do noticiário o deixava com o humor avinagrado.
-Renan presidente do Senado de novo...
-Eu, enquanto caminhava, ouvi no radinho de pilha o discurso do Collor xingando o procurador-geral da República de prevaricador. Antes ficar só como o Robinson Crusoé sem radinho de pilha, do Nélson Rodrigues, do que ouvir tanto cinismo.
-O culpado é o povo. - afirmou.
-O povo coloca essa gente no poder, e são mantidos na ignorância para continuar servindo a esses calhordas.
Falei, enquanto meu irmão dobrava o jornal e o colocava sobre a mesa.
Saímos então dos miasmas da política brasileira e entramos num assunto mais prazeroso: o cinema.
-Claudio, assisti, ontem, no Telecine Cult, a “Os Miseráveis”.
-Eu li que aproveitaram o lançamento do musical, que concorre ao Oscar desse ano e puseram a versão de 1952 do romance do Victor Hugo na programação da TV a cabo.
-A versão a que assisti foi a de 1935. - esclareci.
-E então?
-Claudio, o filme não tinha legendas e eu conheço a língua inglesa escrita, compulsando muitas vezes o Michaelis.
-Mas você conhece a história.
-Dos romances que li, “Os Miseráveis” é a obra que exerce maior atração sobre mim. Não quero afirmar que seja a criação máxima da literatura universal.
-E o filme?
-As palavras não tinham importância fundamental para mim, que conheço de cor e salteado o enredo. Havia os atores, a abordagem que deram para as 800 páginas do livro. Eu tinha, enfim, mais interesse em ver do que em ouvir.
-Então, valeu a pena.
-Claudio, primeiramente, eu me espantei com o Frederic March, o galã da fita no papel de Jean Valjean: alto, bonito. Tenho na minha mente o Frederic March de “O vento será tua herança”, careca, barrigudo, feioso, polemizando com o Spencer Tracy no julgamento do macaco.
-Nós vimos esse filme no Cinema Cachambi.
-Perguntei a mamãe sobre o tempo de galã do Frederic March e ela confirmou. Mamãe me disse que a única pessoa que ficou mais bonita depois que envelheceu foi o Caetano Veloso.
-Graças à última mulher dele, a Paula Lavigne. - ressaltou.
-Outro grande ator desse filme de 1935 é o Charles Laughton no papel do inspetor Javert.
-Ele é dos melhores. - observou.
-Nesse filme, notam-se alguns trejeitos afeminados, uns ademanes.
-Carlinhos, naquele filmaço em episódios da casaca que passa de mão em mão, ele também não se mostra muito viril.
-De qualquer maneira, Claudio, ele escondeu a bissexualidade, pois, quando a esposa soube, o trauma foi tamanho que ela ficou por um tempo muda.
-Sobre o Cole Porter, a mulher sabia da preferência sexual dele; foi embora, mas voltou quando ele caiu do cavalo.
-Com o maestro e compositor Leonard Bernstein, aconteceu algo parecido; a mulher foi e voltou, a diferença é que ele não caiu do cavalo.
Como o meu irmão se mostrava interessado, eu me ative nos artista de cinema que procuraram, nem sempre com sucesso, esconder o bissexualismo.
-Vincent Price, Montgomery Cliff, Rock Hudson, Sal Mineo, James Dean...
-Não se esqueça do Randolph Scott, Carlinhos. Ele era ligado a outro artista...
-O Cary Grant. - interrompi.
-O Cary Grant, não. - meu irmão não aceitou que se pusesse em dúvida a masculinidade do ator.
-Talvez, fossem mesmo grandes amigos, Claudio.
-Cary Grant, Gary Cooper...  não creio que não fossem homens.
-Um dos primeiros filmes do cinetoscópio de Thomas Edison, mostra dois homens dançando.
-Não era o cinematógrafo, Carlinhos?
-Os irmãos Lumière aperfeiçoaram o cinematógrafo do Thomas Edison. Conheço pouco disso... Eu sei que, num canal de TV a cabo, eu assisti a um documentário sobre o homossexualismo no cinema e vi essa cena de dois homens dançando, quando Thomas Edison ainda fazia experiências com o invento. Se já era o cinematógrafo, não sei.
Adiantamo-nos até o filme de 1935, já citado.
-A fita é fiel ao livro?
-Em menos de duas horas nenhum roteirista consegue abranger um romance de quase 800 páginas. O repelente Thénardier não aparece, nem a mulher, muito menos o Gavroche, um dos melhores personagens do Victor Hugo. Mas a Eponine é personagem, e é mostrada salvando a vida do Marius, quando o protegeu de um tiro com o próprio corpo.
-Eu vou ver o musical que, aliás, entrou em cartaz.
-Na célebre cena em que Jean Valjean carrega o Marius ferido nos ombros pelo esgoto de Paris, é mostrado no filme o Javert atrás dele.
-Mas o Javert não persegue o Jean Valjean pelo esgoto.
-No filme, ele recua diante dos obstáculos, mas, não tenho certeza absoluta, ele, no livro, nem colocou o pé no esgoto.
-Imagina o fedor, Carlinhos.
-Victor Hugo escreveu esse trecho depois de ter conseguido a planta do esgoto de Paris.
Meu irmão ergueu-se da cadeira dizendo que ia jogar alpiste para as rolinhas.
-O Daniel deixou o computador ligado para você. - avisou.
Diante do computador, acessei o facebook, onde se posta muitas coisas boas e ruins, até que voltei ao meu provedor. Lá se encontrava um vídeo do Dieckmann sobre os anos 50. Foram dez minutos de deleite (*). Antes de sair do computador, pensei nesse vídeo e disse para mim mesmo:
-Dieckmann ficou com crédito para eu lidar com a sua fanfarrice por mais dez anos.
Daniel voltou sem a mãe do dentista, mostrando disposição.
-Não arrancou o siso?...
-Arranquei.
-E não sente nada?
-Carlão, tomei três anestesias, estou sob o efeito delas.

(*) Curioso, o Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO consultou o Dieckmann, que informou não ter a mais pálida ideia (em termos de Dieckmann, foi um assombro de resignação e humildade, talvez em função da entrevista que o Jonas Vieira e o Sergio Fortes marcaram com ele e que irá ao ar no domingo 24.02.2013, às 8 horas (**) do filme, visto que os filmes sobre os anos 50 são geralmente bem curtos.
Passamos então ao redator, o que significa uma espera de cerca de 6 a 7 dias, mas ele responderá.

(**) Na Rádio Roquette Pinto, FM 94.1

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

2323 - suicídios, acidentes e outros fracassos


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4123                             Data: 03  de fevereiro  de 2013
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FRASES ORIGINAIS E COMENTÁRIOS  IX

Só existe um problema filosófico realmente sério: o problema do suicídio.
Essa frase foi cunhada por Albert Camus, conhecido como um dos maiores intelectuais franceses do século XX, embora fosse argelino e só tenha ido para a França em 1938, quando tinha 28 anos de idade. No seu romance, um dos mais representativos do século, “O Estrangeiro” e no seu ensaio “O Mito de Sísifo” proclama o absurdo do destino humano e não foge dessa diretriz na sua vasta obra, considerando o pouco tempo em que viveu.
O início de “O Estrangeiro” é um dos mais amargos da literatura universal: o protagonista, cuja mãe acabara de falecer, mostra-se tão indiferente ao infausto acontecimento, que não sabe determinar o dia exato da morte.
Camus, apesar da tuberculose e da sua filosofia, não ficou encapsulado numa sala lendo e escrevendo, ele viveu. Atuou como goleiro de futebol, na Argélia, e, durante a ocupação nazista na França, escreveu para um jornal clandestino. A sua vida se foi num estúpido acidente de automóvel em Villeblevin (*), Yonne, em 1960, três anos depois de ter ganhado o Nobel de Literatura.
Albert Camus apresentou, nos seus escritos, as hesitações do homem que, através de seus heróis, adotou uma atitude de revolta, sem perder, contudo, os mais altos valores espirituais.
Roberto Pompeu de Toledo, cujas crônicas na VEJA são sempre instigantes, recorreu à frase de Camus para escrever sobre o suicídio do ator Walmor Chagas. Refere-se no seu texto, citando a esposa do ator, Cacilda Becker, que foi surpreendida por um letal derrame no intervalo da peça “Esperando Godot” e finaliza: “Walmor não foi surpreendido entre o primeiro e o segundo ato porque não havia segundo ato a representar. A peça já tinha terminado. Ele próprio assim determinara, ao tomar nas mãos a autoria do desfecho.”
A crua realidade era que Walmor Chagas, com o avanço do tempo, estava com 82 anos de idade e a sua qualidade de vida se esvaía, quando a sua visão se deteriorou com a diabetes, tirando-lhe um dos poucos prazeres que ainda possuía, o de ler. A ideia de suicídio intensificou-se até o lamentável desfecho.
David Niven escreveu sobre o mundo de Hollywood em que conviveu como ator. Uma das suas melhores páginas dele é sobre o ator George Sanders, que possuía uma das melhores locuções do cinema. Conta David Niven sobre o casamento do amigo com Zsa Zsa Garbor, que o traiu com o playboy Porfírio Rubirosa, o fragrante de adultério que ele deu na esposa e o término humorístico que  preferiu, em vez do dramático.
Quando eram dirigidos por John Ford, em 1937, George Sanders, ainda jovem, disse a David Niven que estaria farto da vida com 65 anos de idade e, então, daria cabo da vida. Ele se matou, de fato, com essa idade, escreveu David Niven.
Nos dois casos citados, o pessimismo, em maior ou menor grau, falou mais alto, era como se sentir derrotado depois das vitórias no passado.
Cito, então, como contraponto, o maior físico da atualidade Stephen Hawking que, entrevado numa cadeira de rodas, recebeu, em 1963, o diagnóstico de que viveria por mais dois anos apenas. Há poucos meses, o físico comemorou 71 anos mais vivo do que nunca. Sem ter conhecido o lado doce da vida, escarmentado pela doença, Stephen Hawking teve a têmpera forjada para suportar qualquer revés que lhe aparecesse.

A arte suprema não é ter sucesso, é saber parar.
A frase acima foi escrita pelo intelectual francês, ministro da Cultura do governo De Gaulle, André Maurois, quando se deteve na biografia de Napoleão Bonaparte, aos 78 anos de idade, depois de redigir resenhas, ou mesmo biografar Benjamin Disraeli, Ivan Turgueniev, Voltaire, Proust, Balzac, Dumas, Chateaubriand e Victor Hugo.
O fim do império napoleônico se encerrou quando o seu criador invadiu a Rússia, em 1812. E se ele tivesse parado antes?... Se as ferozes batalhas contra os russos e o interminável sofrimento com o inverno daquele país não tivessem acontecido?... A França continuaria, por mais tempo, sendo o país mais respeitado do mundo, a maior potência bélica, com os parentes do imperador ocupando os tronos de reinos espalhados pela Europa.
Referimo-nos há pouco tempo à frase da mãe de Napoleão quando viu a sua filharada no topo do mundo: “Contanto que isso dure”.
Não durou mais porque o imperador não soube parar a tempo, encontrava-se cego pelo sucesso.
André Maurois ainda reproduz, na sua biografia, uma carta de Napoleão Bonaparte endereçada ao irmão Joseph: “Preciso de solidão e isolamento, a grandeza me aborrece, as emoções secaram, a glória é insípida, aos 29 anos estou saciado.”
Não estava saciado, sem o saber, mentia para si mesmo, o que lhe seria fatal.
Mudando as épocas, as personalidades e os mundos, mas dentro desse tema, reportamo-nos ao pugilista Cassius Clay, no Quênia. Lá, ele obteve a maior vitória da sua carreira quando ganhou pela segunda vez o título mundial dos pesos-pesados, derrotando o jovem e temível George Foreman. Já veterano, o campeão deveria fazer mais uma ou duas lutas e encerrar a sua gloriosa trajetória, mas não: lutou várias vezes ainda, sofrendo duras derrotas (foi praticamente massacrado pelo seu sparring da luta, no Quênia, Larry Holmes).
Depois de largar o boxe, passou a sofrer do Mal de Parkinson que, acreditamos, foi decorrência de tantas pancadas que recebeu, mormente no fim da sua carreira.
Um jornalista americano evocou uma frase de Nietzsche para definir todo esse drama, aquela que dizia que se você não destruir aquilo que ama, aquilo que ama o destruirá.
Napoleão Bonaparte amava as batalhas.

Não há consolo mais refinado na velhice do que a sensação de ter concentrado toda a força da juventude em obras que jamais envelhecerão.
Assim escreveu Schopenhauer, cujo pessimismo da sua filosofia foi tão absorvido pelo compositor Richard Wagner, que ele o transformou em música na sua obra magna, Tristão e Isolda.
Por outro lado, Fausto, do celebrado romance de Goethe, já velho, lamenta tanto ter perdido a sua juventude com estudos, que vende a alma a Mefistófeles em troca do gozo de ser jovem. Arrepende-se no final.
Saindo da ficção para a realidade, Voltaire declarou que Beaumarchais nunca se tornaria um autor de teatro do estofo de Molière porque amava a vida demasiadamente. Beaumarchais, de fato, viveu rocambolescamente, mas escreveu peças de teatro que foram musicadas por Mozart, Paiselo e Rossini; e ainda editou toda a profícua obra de Voltaire, que se encontrava dispersada pela Europa.
Quanto a Shakespeare, trabalhou duro, escrevendo mais de vinte peças e atuando no palco, até 51 anos de idade.
Quando parou, morreu.

(*) Camus iria viajar de trem, mas foi convidado e convencido a viajar com o amigo Michel Gallimard no seu possante Facel-Véga. Camus morreu na hora do acidente e Gallimard 5 dias depois. Era mesmo possante o FV, mas a árvore era mais. Nas revistas francesas dos anos 50, impressiona o número de acidentes rodoviários contra árvores que margeavam quase todas as estradas da época. Guard-rail é invenção recente.