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quinta-feira, 13 de maio de 2021

233 - Quebra-dente (reedição)

O BISCOITO MOLHADO

Edição 2107                                                            Data: 01 de julho de 2004

BEBEDEIRA E HUMOR

Bem antes do New York Times, o Biscoito Molhado fizera referências às carraspanas do Lula em algumas edições. Não houve maiores repercussões porque o nosso divulgador, apesar da fama de democrata do nosso presidente (democrata borracho), evitou que tais edições chegassem ao Palácio do Planalto e à Granja do Trôpego... digo: Granja do Torto. Como o New York Times não tem um divulgador com a mesma perspicácia que o nosso, o jornal americano caiu nas do presidente que, por sua vez, caía de porre. Assessores do Chefe da Nação dublaram, então, a página do jornalista Larry Porter, e Lula, entendendo tudo, ou quase tudo pois a ressaca não passara de todo, quis expulsar o “ofensor” do Brasil. 

Nós, do Biscoito Molhado, que nos bons tempos líamos “Ofendidos e Humilhados” de Dostoievsky, e hoje participamos de leituras míopes sobre ofendidos e ofensores, acompanhamos o caso com as opiniões que pipocaram por toda parte. Alguns opiniáticos, pretenderam buscar erudição nessa dose exagerada do jornalista americano que não desceu bem pela goela do presidente brasileiro, e dois deles compararam o caso a um episódio de “Os Maias” de Eça de Queirós. Essas comparações que saíram no Globo através de um cronista e de um leitor não estavam corretas, pois falavam de ofensa de bebedeira através de um jornalzinho, “Corneta do Diabo”. Ora, de ofensas por jornalzinho, dizem (disseram até no Diário Oficial) que nós entendemos e, por isso, repetimos que na obra-prima do Eça de Queirós, ninguém ofendeu ninguém com alusões a bebedeiras via imprensa. Os fatos da ficção eciana foram mais ou menos os que seguem no parágrafo seguinte.  

Dâmaso, rejeitado por Maria Eduarda, que vive uma paixão por Carlos, procura o jornalzinho de Palma Cavalão, “Corneta do Diabo”, para arremessar lodo sobre essa paixão por meio de um artigo. Antes de essa cornetada ser ouvida por toda Lisboa, João Ega, amigo de Carlos, age. Carlos lê o artigo, e é tomado pela indignação. E, indignado, pensa: 

- “Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira de bom senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.” 

Com a ação do Ega, Palma Cavalão é procurado, cem mil-réis lhe são oferecidos, a tiragem é suspensa, o caluniador Dâmaso é descoberto, e o caluniado quer sangue. João da Ega vai, então, com Vitorino Cruges, que seria com ele a testemunha de um “duelo inevitável”, abordar um rotundo e acovardado Dâmaso Salcede. Nessa abordagem, Ega aproveita para também se vingar, pois o ofensor posava em público de amante da mulher de um banqueiro, o Cohen, que também fora amante sua, Raquel, “a amada hebréia”. Vingou-se, ditando ao ofensor uma carta de retratação em que este se confessava um bêbado. Narrar essa cena, só mesmo com as palavras de Eça de Queirós: 

- “E desenvolveu a sua idéia, mostrando quanto era generosa e hábil – enquanto o Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem ele queriam que o Dâmaso, numa carta (que se podia tornar pública) declarasse “que caluniara por ser caluniador”. Era necessário, pois, dar à calúnia uma dessas causas fortuitas e ingovernáveis que tiram a responsabilidade às ações. E que melhor, tratando-se de dum rapaz mundano e femeeiro, do que estar bêbado?...Não era vergonha para ninguém embebedar-se... O próprio Carlos, todos eles ali, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma higiene e um luxo, muitos homens da história bebiam demais. Em Inglaterra era tão chic, que Pitt, Fox e outros nunca falavam na Câmara dos Comuns senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bêbado! Enfim, a História, a Literatura, a Política, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que Dâmaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhara uma carraspana e que cometera uma indiscrição... Nada mais!” 

Dâmaso assina a carta e, depois, se enreda com um tio sóbrio que chegara da França, mas isso fica para outra vez. Está claro, portanto, que não houve ofensa alguma de bebedeiras através do jornalzinho dos Maias de Eça de Queirós, como andaram citando nessa polêmica toda. 

Voltando às piteiras do nosso presidente Lula, sopraram por aí que, na festa dos vinte e quatro anos do PT, no Hotel Glória, ele foi fotografado pela revista Veja aos bordos, isto é, ziguezagueando. A revista preferiu não divulgar as fotos pois, na mesma ocasião, estourava o escândalo do Waldomiro. 

Para nós, do Biscoito Molhado, chamar alguém de bêbado, tanto pode ser calúnia como humor, depende do tempo transcorrido. Tentaremos nos explicar nos parágrafos seguintes sobre esse tempo transcorrido. 

No inverno de 1999, por volta das cinco horas da manhã de uma sexta-feira, praticava eu minha aeróbica pelas ruas quando, na vizinhança do Dudu, nosso colega do DMM, hoje da ANTAQ, mais precisamente na Praça Avaí (sem “h”), tropecei num quebra-mola, caí de boca no chão, perdi o dente coroado de jaqueta da frente com raiz e tudo, e parei numa clínica com um pequeno vaso sanguíneo rompido. Na segunda-feira seguinte, de beiçola inchada e lenço na boca para esconder o humilhante buraco na dentição, sou abordado pela Ana Maria, então chefe da Divisão de Acordo sobre o meu drama. Conto-lhe, visivelmente desconfortado, aquilo que ela já sabia por terceiros, com toda certeza. No momento em que chego à parte em que tropeço no quebra-mola, ela intervém: 

- “Carlos Eduardo, você não estava bêbado?...” O riso, mais para gargalhada, que soltou em seguida, indicava, para quem a conhece, que a sua pretensão era humorística. Vinguei-me na edição do Biscoito Molhado do dia seguinte, lembrando o personagem do Alan Alda do filme “Crimes e Pecados” do Woody Allen que afirma que o humor é a tragédia mais o tempo, e dizendo que a “engraçadinha” Ana Maria já apressava o humor quando a tragédia ainda se fazia presente. Ou seja, não transcorrera ainda o tempo em que a tragédia se transforma em humor. Ela não lia sempre o Biscoito Molhado, mas a sua leva-e-traz, hoje gerente de Afretamentos, era leitora assídua e, assim, ela tomou conhecimento da minha reação. Olhou-me por alguns dias com desconfiança, e depois a coisa parecia superada entre nós dois. Parecia, mas isso é assunto para a edição do Biscoito Molhado de 9 de julho, quando comemoraremos um ano desde que foi lacrado o meu computador na ANTAQ. Comemoraremos com muitos brindes. Até lá.