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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4111 Data:11 de janeiro
de 2013
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76ª VISITA À MINHA CASA
Parecia que a música do tempo chegava
aos meus ouvidos. O dia e a noite soavam aparentemente com monotonia, mas
repletos de sortilégio.
-Cole Porter. - identifiquei-o logo,
pois já conhecia um pouco a sua alma pela sua música.
-Como você vê, depois de morto,
devolveram-me a minha perna.
-Belíssima a sua música.
-A que escutamos... Sim, “Night and Day”
fez muito sucesso.
-Acusam Tom Jobim de ter copiado a
introdução do seu “Night and Day” quando compôs “O Samba de Uma Nota Só”.
Alguns estudiosos discordam e afirmam que o modelo do Tom Jobim foi o Prelúdio
nº 15, de Chopin.
-Aquele que também é chamado de
“Prelúdio da Goteira, porque a inspiração veio a Chopin no momento em que ele,
doente, deitado na cama, ouvia as gotas da chuva batendo na janela?
-Essa mesma.
-Tenho predileção por essa peça;
toquei-a inúmeras vezes. Chopin ouvia o tempo escorrendo e o transpôs para o
piano maravilhosamente.
-A sua formação na arte dos sons é
sólida, poucos compositores a tiveram.
-Minha família era rica. Meu avô materno
especulou com carvão e madeira amealhando uma fortuna. Meu pai era farmacêutico
e, como o dinheiro fala mais alto, meu avô era quem dava as cartas na família.
-Você era muito ligado à sua mãe.
-Mamãe me iniciou no mundo da música.
Aprendi a toca violino e piano, quando as crianças da minha idade jogavam
beisebol. Com 10 anos, compus “The Bobolink Walz”, no seu idioma, algo coma “A
Valsa do Papa-arroz”.
-Para mostrar o quanto você era precoce,
a sua mãe diminuiu em dois anos a sua idade.
-Ela me julgava um Mozart. - disse com um
sorriso triste na comissura dos lábios.
E prosseguiu:
-Meus pais me enviaram para uma escola
de meninos ricos, em Massachussets, com o objetivo de eu desenvolver o meu
talento de músico. Depois, a pressão do
meu avô, que me queria advogado, se fez presente e fui para a Universidade de
Yale. Lá, eu lia mais partituras do que livros de direito; compus o hino do
time e outras canções estudantis.
-Soube que algumas delas são cantadas
até hoje na Universidade de Yale. - interferi.
-Também passei um ano em Harvard e me
transferi para a Faculdade de Artes e Ciências. Ainda estudante, criei o meu
primeiro show, “America First”, mas foi um fracasso, saiu de cartaz com
115 apresentações, somente.
-E quando você se mudou para Paris? -
não contive a minha curiosidade.
-Os franceses entenderiam a minha obra
melhor do que os americanos, esse foi o meu pensamento. Meu avô e minha mãe
bancaram e eu saí por alguns anos dos Estados Unidos. Em Paris, conheci e me
casei com Linda Lee Thomas, considerada por muitos a mulher mais bonita do
mundo. Algo parecido aconteceu com o economista britânico Keynes.
-Linda Lee Thomas, uma divorciada
endinheirada. - acrescentei.
-A minha companheira por 35 anos. -
frisou com orgulho.
-Na capital da França, você vivia
rodeado por amigos, em festas, animando-as como pianista e compositor.
-Muitos deles não percebiam meu interesse pela
música, acreditavam que eu não conduzia essa arte com seriedade e se
surpreenderam quando, em 1923, escrevi a partitura do balé jazzístico “Within
the Quotta”. Apesar de vivermos os frenéticos anos 20 de Paris, eu e Linda
resolvemos voltar para a América.
-Chegou a sua hora de enfrentar a
Broadway pela segunda vez. - afirmei.
-Na primeira vez, eu estava preparado,
mas agora eu me sentia inteiramente seguro.
-Sim; desenvolvia-se o seu estilo único
de autor de canções que eram uma mescla de humor, sensualidade e malícia.
-Comecei, ou recomecei, com o musical
“Paris”, de 1928, em que se destacou a canção “Let's Do It”, Let's Fall in
Love”.
-Foi gravada recentemente no Brasil pelo
Chico Buarque e Elza Soares em dueto. - informei.
-Em 1930, criei a revista “The New
Yorkers”, em que estava incluída a canção “Amor à Venda”, “Love For Sale”, que
foi considerada sofisticada demais para ser tocada nas rádios. Depois, outros compositores
seguiram o caminho que abri.
-E “Night and Day”, Cole Porter?
-Esta se encontra no meu show para o
teatro “Gay Divorcee”, de 1932, com o Fred Astaire como dançarino.
-Os anos 30 foram o seu apogeu, afirmam
os admiradores da sua criação.
-Trabalhei bastante nessa década para o
teatro e o cinema. Hollywood me contratou e eu escrevi as partituras de “Born
to Dance” e “Rosalie”. De “Born to Dance”, o público gostou mais das árias,
digamos assim, “Easy to Love” e “I' ve Got You Under My Skin”.
-A sua esposa sempre o incentivou a
compor?
-Sim, mas ela me deixou porque não
suportava mais a minha inclinação por rapazes. Era o início do fim da minha boa
vida. Sofri uma queda de um dos meus melhores cavalos e parti as duas pernas.
Uma pesada cruz foi posta nas minhas costas desde então.
-Mas Linda voltou pra ajudá-lo nesse
calvário.
-Ela era mais do que esposa, era minha
amiga e minha enfermeira. Os médicos queriam amputar uma das minhas pernas, mas
eu me coloquei contra e a Linda me apoiou com a minha mãe.
-Você sofria muitas dores,
inevitavelmente.
-Eu afogava as dores nos copos de
uísque.
-Ainda assim, suas canções compostas
depois do acidente continuaram ótimas. Assisti, recentemente, um filme em que Marilyn Monroe
canta e dança o seu “My Heart Belongs to Daddy”.
-Sim, houve alguns êxitos, mas depois de
eu lançar dois musicais que fracassaram, os críticos afirmaram que a magia da
minha música se foi.
-Eu imagino como era manter a inspiração
para criar obras alegres, enquanto se é submetido a mais de trinta operações.
-Não, ninguém consegue imaginar.
-Então, você surpreende o mundo, em
1948, com o maior dos seus triunfos, o musical “Kiss me, Kate”, baseado na
“Megera Domada”, de Shakespeare.
-Foram mais de mil apresentações. -
animou-se.
-”So in Love”, desse musical, é uma das
peças que mais me comove, principalmente na voz do soprano Kiri Te Kanawa. -
revelei.
-Compus ainda outras obras para a
Broadway e Hollywood, mas nada que se comparasse a “Kiss me Kate.”
-Mas o destino cruel o espreitava.
-Perdi a minha querida mãe em 1952 e,
dois anos depois, a minha adorável Linda, que não suportou um enfisema
insidioso. Em 1958, entreguei os pontos e permiti que amputassem a minha perna
direita.
-A partir de então, não compôs nada?
-Nada. Vivi mais oito anos, em reclusão
e morri em 1964, com 73 anos de idade. Fui enterrado na minha terra natal entre
os túmulos da minha mãe e da minha esposa.
Sem dizer mais nada, foi-se, mas a
introdução do “Night and Day” permaneceu soando.