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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

3143D - Placa de Descanso


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O BISCOITO MOLHADO

Fundador: Carlos Eduardo Nascimento                        3 de outubro de 2023
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MORGADÃO


Preguiça, substantivo feminino com origem no termo em latim pigritia, é uma característica ou atitude que demonstra pouca disposição para o trabalho, ou aversão ao trabalho. Está também relacionada com negligência, indolência, mandriice, demora ou lentidão em praticar qualquer ação.

Preguiçoso - eu.

São tantas as sonolências que este título desperta, que pensei em escrever boa parte no modo copia e cola. Fosse usando o Tio Google, a wikipedia, ou que talvez até estas letras viessem do ChatGPT... Mas, antes que os leitores se acomodem em suas poltronas e durmam, sem serem levados a acompanhar o texto, explico que é uma história real, com sabores e odores que remontam aos decalques da vida de adolescente.

Decalque é um plástico, tecido, papel ou substrato cerâmico que tem impresso nele um padrão ou imagem que pode ser movido para outra superfície em contato, geralmente com o auxílio de calor ou água. A palavra é abreviação de decalcomania, que é a versão da palavra francesa décalcomanie. E lá vou eu para os anos 60; eu só falava decalcomania, um termo, agora percebo, galicista e elegante, e eu refutava usar o nome decalque. E depois, quando me chamavam de nariz em pé, eu queria saber o por quê.

Daí vêm os cheiros da Hobbylândia, uma sobreloja apertada na Avenida Almirante Barroso, 2, em pleno Tabuleiro da Baiana, que hoje seria uma séria ameaça à saúde pública, pois cheirava a plástico, tinta, combustível, dope, uma série de elementos inflamáveis que caçariam qualquer alvará pós-moderno.

Mas também dali vinha a diversão de um garoto de 12 anos, com a vantagem de ser muito próxima à Estação dos Bondes de Santa Teresa. Havia praticamente uma visita diária à caverna dos Morimoto, a família japonesa que vivia entre os pequenos trens das vitrines, com passageiros minúsculos habilmente pintados com gravatas e bigodes, e os aviões dependurados pelo teto do salão - uma profusão de aeromodelos, a motor e a elástico, amarelos, asas vermelhas, lemes azuis, Paulistinhas, Tamanco A e B, T-6, Vespa, Abelha, estes eram para combate - não seria exagero contar 30 aviões no ar.

Para chegar no livro das decalcomanias, eu caio neste instante em cima da mesa de jantar da minha casa, com a planta da asa de um avião esticada, onde você ia fixando as ripas e as nervuras, primeiro com alfinetes e depois com cola-tudo. 

Cola-tudo - 
produto ou substância adesiva com grande poder aglutinante, que se usa para colar fragmentos dos mais diversos materiais. Cola-tudo DUCO, uma bisnaga amarela com tampa vermelha, vejo no Google uma reprodução de propaganda na revista O Pato Donald, de julho de 1961, e deduzo que crianças e adolescentes quebravam muitas coisas.

Era incrível que, daquele monte de madeirinhas ali espalhadas, mais cola e paciência, você terminasse com uma linda estrutura de asa de avião, bastante rígida. Tinha que fazer entre a hora do almoço e do jantar, de preferência sem testemunhas, porque alguns alfinetes "precisavam" furar de leve a mesa. Depois você entelava - aqui o dicionário não ajuda, mas trata-se de esticar um papel de seda sobre as nervuras e ripas molhadas de cola - grudou, tá pronto! Ao cheiro da cola e das madeiras adiciona-se então o cheiro do dope misturado com talco.

Hoje, o dicionário trata dope como narcótico; talvez fosse, pois era agradável, mas tinha uma função: uma vez dopado, o papel de seda se encolhia, esticando sobre a estrutura e pegava um belo brilho esbranquiçado e já apropriado para receber tinta; neste momento, eu já tinha os dedos também grudentos, sua pele endurecida e cheirando a dope, mas nada que não passasse em uns dois dias.

Montado e pintado, o avião ganhava sua forma e você voltava na Hobbylândia. Pedia o livro das decalcomanias e escolhia entre cores e tamanhos, as letras e símbolos que ornariam a sua obra de arte.

Metade - Cada uma das duas partes iguais, em peso, número ou extensão de um todo (ex.:  Se quiser derrubar uma árvore na metade do tempo, passe o dobro do tempo amolando o machado. Provérbio chinês)

O tempo passa e depressa, passam dias e o que tanto apreciamos também muda; isso é tão real que há definições do tempo da democracia original, aquela verdadeira, a grega.

Enquanto Khrónos é a personificação do tempo calculado, aquele subordinado ao relógio e do qual não conseguimos fugir, Kairós é a qualidade do tempo vivido. Kairós é o tempo oportuno, que faz um acontecimento ser especial, memorável, não em seus números, mas em sua significância. Ou seja, você tem algum poder de estender o prazer - que é o que me interessa e é aí que a preguiça acaba - desde que você faça um fato exceder a sua significância.

Em 1971, o jornal mais lido era o JB, podia não o ser em distribuição, mas era em número de leitores alfabetizados funcionalmente; do Jornal do Brasil, o caderno B era o queridinho dos acadêmicos, era bom mesmo e tocava uma diversidade de assuntos bem ampla e o interesse do leitor era quase sempre alcançado.

Como todo impresso, as capas são sempre lidas antes do miolo, muitas vezes desprezado como se fosse um pão de segunda classe. Num sábado do fim do ano, a contracapa aludia aos alunos do 4º ano de Engenharia Naval e Kairós se incumbiu de me fazer ler com toda a atenção, pois eu era um dos 14 alunos em tamanho destaque.

Dizia o entrevistado que os alunos jogavam futebol a tarde toda, no espaço entre os estacionamentos; dizendo assim e sendo 14 o total de alunos, pouco faltou para dar a escalação nominal de cada time. Isso dito, justamente no final do ano e próximo do vestibular, certamente incentivaria os candidatos a evitar o nosso Fundão, tão querido a ponto de apararmos o mato entre os estacionamentos, para podermos jogar bola durante os imensos intervalos da grade de aulas. E note, caro leitor, que todos nós ainda estagiávamos, pois faltavam braços e cérebros na indústria naval de então e não iria ser uma peladinha vespertina que nos traria um rótulo desabonador. 

Todos nós lemos a contracapa com a entrevista e fomos para as férias do verão aprovados, mas com um travo amargo da injustiça nas bocas. Entretanto, nada de útil poderia ser feito. 

Voltam as aulas e aparamos a grama-mato do estacionamento, como de hábito. Com o aparato formal de inauguração, cravamos uma placa de madeira em frente aos imensos corredores abertos, coberta com um pano de chão imundo; na hora do intervalo, mais ou menos comum a todo mundo e quando os pipoqueiros e sanduicheiros vendiam seus produtos a um mundaréu de gente, espocamos um foguetório digno de copa do mundo.

Foguetório na universidade, pouco depois de 1968, não era entendido como um fato corriqueiro e todo mundo correu para olhar. Estávamos, se não os 14, pelo menos dez de nós, perfilados junto à placa e ainda envoltos pela fumaça dos morteiros, em nosso uniforme atlético, calça sem camisa. Sem maiores delongas descerramos o pano de chão e lia-se em letras decalcadas da Hobbylândia, vermelhas e amarelas, e de bom tamanho: 

ESTÁDIO UNIVERSITÁRIO 
MORGADÃO

Creio que muita gente entendeu a sutileza da nossa deferência ao entrevistado professor Augusto Morgado, que lecionava no térreo do mesmo nosso bloco C. E até que essa gente riu bastante, mas nós não ligamos. Batemos o par-ou-ímpar, escolhemos os times e partimos pro jogo em nosso novo estádio. Como se fosse um dia qualquer. 

Mas não era. Nossa placa, o foguetório e a cerimônia fizeram o fato exceder a sua significância e até hoje render muita risada. Da mureta do segundo piso, ouvindo Penny Lane no cassete, um debruçado Kairós parecia dizer, coçando a barba branca plena de sabedoria: "bem feito!"


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

3142 - Memória de Elefante

   

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2129                                Data: 03 de Agosto de 2004       

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LEMBRANDO O QUE SE DEVE ESQUECER...


Não era permitido a ninguém entrar na Capela Sistina com qualquer material de anotação, porque era terminantemente proibida a divulgação do Miserere da missa de Allegri; pois Mozart, com quatorze anos, dirigiu-se a tal igreja, ouviu a missa e, chegando no seu quarto, em Roma, reproduziu a missa nota por nota. Possuía ele a chamada memória de elefante. 

Falando em elefante, vem-me à mente a Belinha que, na época do espelho no banheiro das mulheres do Departamento de Marinha Mercante, cismara que o dito cujo, por poderes mágicos imponderáveis, a engordava. Belinha, no entanto, longe estava da silhueta ou do talhe de um elefante; e estava, principalmente, ainda muito mais longe da sua memória. Depois de muito reclamar dos seus esquecimentos, comunicou a seus colegas de trabalho, incluindo nós, que passara a tomar remédios para a memória. Passaram duas, três semanas, e soubemos que ela, depois de  esquecer por diversas vezes de tomar o tal remédio para a memória, abandonara o tratamento. Isso aconteceu antes do curso de Regulação Econômica da Fundação Getúlio Vargas que se iniciara em novembro de 2001 e se estendeu até julho de 2002.

Num dos módulos mais interessantes desse curso, o professor mal olhou para a Belinha e deteve-se nela, que, sob o seu olhar de verruma, mostrou-se constrangida e desnudada. O professor revelou-lhe, então, que ela fora sua aluna, e ainda lhe disse em que ano e em que matéria. Fora o primeiro e único caso, dentro de uma sala de aula, que eu testemunhara na vida,  de um professor que se lembrara do aluno, e não o inverso. É verdade que o professor era o Fernando Pinto, o lembrudo, e a aluna a Belinha, a Esquecidinha. 

Ele possuía um método mnemônico que deixava os seus alunos estarrecidos e, com a nossa turma de 25 alunos, não foi diferente. Colocou o seu método mnemônico em prática logo depois de ministrar uma prova de Orçamento Público de um outro professor – esse fora o seu primeiro contacto conosco. Antes de dar início à sua primeira aula, propriamente dita, dirigiu-se a um por um dos vinte e cinco alunos citando sem um erro o nome de cada um; decorou os nomes  depois de receber as provas de Orçamento Público encerradas em tempos distintos, olhar para nós, e nos pedir para confirmar o nome escrito no cabeçalho. Do estarrecimento, todos passaram ao entusiasmo e daí à admiração. Belinha, que vibrava, quase lhe pediu o nome do remédio que tomava. Ele, porém, não se alongou em explicações; declarou apenas isso:

- “Eu trabalhei desde os quatorze anos com o meu pai, e ele me aconselhava a não anotar nada.”

Muitos anos antes do curso de Regulação Econômica, mais precisamente em 1981, no curso de inglês do Brasas, na avenida Graça Aranha, encontrei um aluno que se lembrara de mim da escola primária; além de guardar a minha fisionomia, eu tinha onze anos de idade, ainda citou o nome dos meus dois irmãos, da mesma escola, que tinham dez e oito anos. Sem dar-me tempo para felicitá-lo, acrescentou:

- “Para umas coisas, a minha memória é muito boa, mas para os estudos é uma merda.”

Na celebração dos oitenta anos do crítico literário Agripino Grieco, ele declarou numa entrevista: “infelizmente a minha memória é tão boa que eu até me lembro dos versos do Osvaldo Orico”.  O problema da boa memória é que ela não é seletiva; ainda assim é fundamental para quem escreve lembrar-se até do que se deve esquecer. 

O biscoito molhado, não o nosso, mas o de Marcel Proust, é o exemplo mais significativo na literatura universal da memória involuntária. Ao contrário da memória voluntária, que obedece ao comando da consciência, Proust distinguia a memória involuntária como o despertar prodigioso e cheio de significados de incidentes passados da  vida tão logo a nossa sensibilidade seja atingida. Ao degustar, já adulto, um biscoito madeleine molhado numa xícara de chá – o que costumava fazer quando criança -  a memória afetiva de Proust se aguçou, e foi a razão principal de ele sair em busca do tempo perdido. 

Hemingway, que era de caçadas na África, touradas na Espanha, pescarias em  Cuba, ou seja, um Proust às avessas, sabia da  importância da memória para escrever e parece que um dos motivos do seu suicídio foi senti-la terrivelmente prejudicada com a doença mental que o atacou.

Já ia terminar a edição de hoje do Biscoito Molhado por aqui quando me lembrei que, há algum tempo, Hemingway foi citado como exemplo do uso exagerado de vírgulas. Victor Hugo, uma instituição francesa, teve brigas homéricas com o seu editor belga, que cismava de acrescentar vírgulas aos seus textos. Quanto a Voltaire, considerava as vírgulas, também pela aparência, uns vermes.  A história da pontuação está caindo no esquecimento e, por isso, não vamos colocar ainda o ponto final. Antigamente, a leitura em voz alta era essencial para entender-se o que estava escrito, e além disso, eram poucos, também, os que sabiam ler. 

No século II A.C, Aristófanes de Bizâncio consolidou o alfabeto grego e introduziu o primeiro sistema de pontuação. A igreja católica representou um grande avanço para a pontuação e os copistas da Bíblia inventaram marcas sendo a mais comum a maiúscula em vermelho, de onde se originou a palavra rubrica – ruber (vermelho) em latim. No século VIII D.C, quando as palavras foram separadas por um espaço em branco, a pontuação adquirir mais importância sintática e semântica. Mas foram os editores, depois do surgimento da imprensa, que passaram a exigir a padronização das marcas da pontuação, enfrentando algumas relutâncias, como a de Voltaire que dizia não se preocupar “esses sinais pequenos que parecem vermes.” Como  voltamos a Voltaire, é hora de colocarmos o ponto final em toda esta falta de memória.

  











sexta-feira, 8 de setembro de 2023

3141 D - Dia dos Papais

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O BISCOITO MOLHADO

Edição M2         Data: 9 de agosto de 2023

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MEU IRMÃO DE COVENTRY  


Era para ser uma produção destinada ao Dia dos Pais; em uma conversa dois meses antes com o Jason Vogel, delineamos um passeio por Santa Teresa, com a Carolina dirigindo o meu carro. 

Uma interessante transposição, pois em vez de eu degustar alguma maravilha mecânica, como seria de se esperar para um pai no Dia dos Pais, eu é que ofertaria a minha maravilha de 50 anos de companhia.

Apesar do sabor estranho, topei na hora, afinal faço semanalmente um passeio curto em Santa Teresa, com a finalidade de não deixar as peças se acostumarem com a imobilidade, pois carro antigo preguiçoso é melhor não ter. Nesse dia mudaríamos o motorista, estava de bom tamanho.

O próximo passo era acertar a agenda com a Carola, que estava em final de gravação de uma novela, o que costuma complicar. Mas a novela acabou e antes da data limite em que o Jason deveria dar como finalizada a produção.

Jason é meticuloso, sabe muita coisa de automóvel antigo, mas, longe de pretender saber tudo, percebe que todo dono sabe daquele modelo, daquela marca, coisas que os livros não ensinam. E era de se esperar que, tendo comprado o carro em 1972, eu teria que saber muita coisa, ainda mais tendo levado o carro até Manaus e o trazido de volta; eu tinha que ter história pra contar. Mas eu falei carro?

Chamei o XK de carro? Claro que é, mas é algo mais, virou um irmão, ligeiramente mais moço do que eu em 9 meses e meio; e, dos setenta e poucos anos de cada um, já ultrapassamos os cinquenta juntos, um jubileu de ouro frequentemente comemorado. Como irmãos, já brigamos e fizemos as pazes, negócios de família.

Numa história dessas, em algum lugar tem que aparecer o começo. Eu já ganhava como engenheiro em 72, quase formado e meu salário era 5000 dinheiros da época. O XK (prometo falar dele como carro já-já) era de um sócio do Veteran, Edson, super simpático e atencioso com a nossa então "ala jovem" e me contou um dia suas dificuldades com o carro. Contou pra mim porque eu já tinha tido dois Jaguar e, certamente, saberia entender suas agruras.

De agrura em agrura, ele acabou se aborrecendo seriamente, deu um chute no carro e me ofereceu por 7000; topei desde que o motor tivesse solto. Fui, com meu amigo de jardim-de-infância Francis, que depois virou Tom Murray, no estacionamento da Rua Camerino, onde o XK, vermelho e sujo, estava em repouso; eu levava gasolina e bateria, e em cinco minutos o felino estava ronronando. Fechei o negócio, só faltava levar pra casa.

Mas fala-se em XK, Jaguar e não se conta duas palavras sobre esse felino enigma? Antes da 2ª Guerra Mundial, em Coventry, havia uma fábrica de automóveis chamada SS; em 1935, fizeram um novo modelo e, à cata de um nome interessante, o batizaram de SS Jaguar. Logo logo, o nome SS ficou ligado demais aos inimigos dos ingleses e rapidamente cortaram o SS, ficando só Jaguar. Durante as hostilidades só se fabricava munição, avião, mas nada de automóvel e os técnicos principais da Jaguar, com tempo de sobra, desenvolveram um motor com tudo o que pudesse haver de mais moderno, entre um bombardeio ou outro.

Terminada a guerra, a Jaguar retomou a produção do sedã anterior à paralisação, como
 fizeram todas as fábricas do mundo e desenvolveu seriamente o tal motor moderno. Entretanto, como faziam sucesso com as vendas desse sedã, acharam que seria muito arriscado oferecer o novo motor e perder o mercado, caso não desse certo. Fizeram então um carro de dois lugares, um carro esporte com produção limitada, que poderia ser interrompida sem maiores sequelas. Ou seja, não faziam muita fé no projeto.

Mesmo assim, capricharam no desenho e, no Salão de Londres de 1948, foi apresentado como XK-120, onde o X era de experimental, o K substituia o número sequencial do projeto e o 120 correspondia à velocidade máxima, de 120 milhas por hora, um nome sem maiores apelos, portanto. Diz-se que houve uma histeria coletiva em torno do recém nascidoo que encorajou a fábrica a correr com a produção, sem tempo para rebuscar um nome. Era um tempo em que sobrava alumínio (das sucatas de aviões) e faltava aço, as fábricas precisavam racionar seu uso, pois só teria aço quem exportasse. Por tais motivos, toda a carroceria dos primeiros XK era de madeira e alumínio. Uma panela sem cabo.

O XK-120 foi justamente um sucesso na exportação para os Estados Unidos, muitos foram vendidos para os ex-combatentes americanos que, enquanto estavam aquartelados na Inglaterra, se maravilharam com os carros esporte ingleses, como o MG. Logo a fábrica pode ter todo o aço que quisesse e aumentou a produção, atingindo números de venda jamais esperados para um modelo esportivo.

Mas chega de papo técnico, que é chato pra quem não entende e superficial para os iniciados.

Volto ao "levar para casa". Mais uma vez com a ajuda do Tom Francis Murray. Sem muita dificuldade, alimentamos os carburadores por gravidade, o Tom segurando um botijão de 5 litros sobre o painel, o carro pegou e chegamos tranquilamente em casa antes de acabar a gasolina e o ano de 1972, embora eu não tenha dados mais precisos. Encontrei o defeito, que, de tão simples, me obriguei a esconder do amigo Edson...

Usei o XK, fui tomar sorvete no Moraes, andei no Sumaré meio na terra, meio no asfalto, retirei umas "melhorias" estéticas no capô e nas saias traseiras, achei um estofamento de couro vermelho debaixo do plástico preto - essa é embatucante, pois o carro nasceu verde, com estofamento verde - vai ver um dono anterior trocou de estofamento com outro dono de XK, porque era um estofamento original. Como saber?

Casei, saímos da Igreja nele, depois mandei o carro de navio para Manaus e fui várias vezes ao Estaleiro com ele, onde o pessoal chamava carinhosamente de carro do Batman; não sei se a semelhança era com o Batmóvel, ou se a coisa era comigo.

A volta de Manaus foi épica: com Maurício Piquet, meu chefe e amigo, arranjamos três vagas com um armador que gostava de nós e que levava carretas sobre suas chatas entre Belém e Manaus. Cada chata era amarrada a contrabordo de um navio e lá fomos nós, eu e Maurício, a bordo do navio e o XK, mais o meu 2CV e o Chevette do Maurício bem travados no convés liso da chata.

O navio chamava-se Almirante Alexandrino, que foi um importante oficial da Marinha do Brasil, tendo sido responsável pela modernização da frota na primeira década de 1900. Na internet acha-se tudo e o Alexandrino de Alencar foi revoltoso na Revolta da Armada em 1893, contra o Floriano Peixoto. Como tudo passa por aqui, os sucessores do Floriano empastelaram seu passado e reabilitaram o nosso Alexandrino que virou o Ministro da Marinha mais longevo da História do Brasil ( 4 presidências) e também a mais longa rua de Santa Teresa, onde residia o almirante.

É necessário dizer que o navio foi construído em 1900, de casco todo rebitado, já tinha motor diesel e não mais a máquina a vapor original. Era o Cap Roca da Hamburg Süd até 1922, quando foi oferecido ao Brasil como reparação da Grande Guerra, a primeira mundial que então se chamava assim, pois ninguém sabia que haveria a Segunda.

Após alguns anos sem maiores melhorias, reformei o carro, voltando ao verde por fora e verde por dentro dos seus dias de 1950. O verde original da pintura não era muito interessante e havia boatos de que desbotava bastante, de modo que adotei o verde-inglês de competição, um verde garrafa muito bonito. Era um tempo em que carro de corrida defendia a Pátria e os alemães eram prateados, os franceses azuis e os italianos, vermelhos. Nós, brasileiros usávamos o amarelo, mas como não sou piloto, optei pelo verdão.

O motor, que era meia boca, foi refeito na lendária Rio-Londres da Rua Assunção, então a meca dos carros ingleses e, fora uma troca de cabeçote feita nos anos 2000, é ele que ainda puxa o XK com boa disposição.

Marcamos o dia, o Jason chegou com a equipe bem cedo para discutirmos o trajeto e onde posicionar as câmeras. Na hora justa, chegou a Carolina, que entrou em casa para pegar uma tangerina; ali, na rua mesmo, enquanto se preparavam os microfones e a sempre presente GoPro, entre um copo d' água e outro, bateu-se um papo gostoso, onde a risada prevalecia, quase sempre em torno da minha ultra-super-avaliada severidade e de como todos os filhos burlavam regras, leis, regulamentos e pulavam muros, o típico papo normal do Dia dos Pais, quando eu sou o pai.

Severidade derrubada pelos mesmos muros, ali quietos, mas testemunhas caladas de um tempo sem câmeras de sgurança de alta definição, bem que eu queria ver isso agora...

Partimos então de acordo com o script, saí dirigindo até o Curvelo e eu havia combinado com o cinegrafista uma arrancada logo após o Pimenta. Deu tudo certo, cabelos esvoaçaram e, como a Carola de nada sabia, passou para a câmera uma impressão real de surpresa, que alguns interpretaram como pânico. Eu conheço cada uma das muitas cicatrizes da nossa atriz e sei bem que é difícil apavorar a figura; na segunda arrancada, combinando o vento e o som do motor, mereci da gentil senhora comentários sobre torque e carro de corrida... acho mesmo que eu é que fiquei surpreso.

Aí cedi o assento para a motorista que saiu como se sempre dirigisse um Jaguar... nenhum tremelique, nem insegurança, fazendo sinal com o braço como se estivesse em 1952 e viemos batendo papo como se fosse a coisa mais natural do mundo... sucesso total, diria o Rasta!

Na chegada, mais conversa sobre o bonde que apareceu de papagaio de pirata e 
sobre a experiência, um papo 
entremeado de frases antológicas como: "Não tem como eu não achar bonito, eu vejo este carro desde que eu nasci!". Saiu assim mesmo, com a naturalidade da verdade rara, sem acréscimo, sem retoque, sem maquiagem.

E eu, de boca aberta.