Total de visualizações de página

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

3148 - Restaurantes do Tempo Perdido

---------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO


Volume 1 Edição 1856                          Data: 16 de Junho de 2003 

----------------------------------------------------------


O FIM DO BAREBOAT


O espírito não se abre logo ao entendimento, quando o fato é marcante. Uma sabedoria instintiva prepara, como no teatro, os artistas e o cenário antes que a boca de cena abra, e se dê o espetáculo.  O  saber popular recorreu a uma metáfora telefônica, mais diretamente ligada aos orelhões, e cunhou a expressão “cair a ficha”. Na terça-feira passada, quando o Vergasta me garantiu que a minha pretensão de almoçar no Bareboat não se realizaria, porque o mesmo acabara, a “ficha não caiu”. De volta à ANTAQ, comentei com um e outro colega o fim do restaurante do Zé Luiz, e retornei à minha faina de separar por estados os portos, barrancos e terminais do Brasil, cadastrados no sistema Mercante.

Dois dias depois, assistindo a um canal de TV a cabo e ouvindo nas cordas de uma orquestra as plangentes notas do tango “Por una cabeza”, caía finalmente a ficha. Ou, saindo do popular para a esfera mais erudita, ecos proustianos, através da memória afetiva, me fizeram ver e sentir o espetáculo que foi vivido no Bareboat.  Em uma das centenas de vezes em que lá almocei, tocou “Por una cabeza”, pois uma das características da casa era a música ambiente. Antes de sair, comentei com o Zé Luiz:

-“É um tango do Carlos Gardel. E ele era adepto do turfe; como perdera a amada por uma besteira, lamenta a perda recorrendo à imagem de um cavalo em que apostara e que deixou de ganhar por uma cabeça.”

-“Eu também adoro tango, Carlos. Cheguei a estudar para cantor de óperas.”

Daí, a nossa conversa seguiu pelo passionalismo dos tangos e óperas, da predileção que Gardel nutria por Caruso, até terminar num freguês que se apresentava para pagar a conta.

Em decorrência do modo tão poético com que o meu espírito se abrira ao entendimento sobre o fim do Bareboat, naquela noite de quinta-feira, o meu primeiro impulso foi escrever um poema “Elegia a um resataurante”. Músico não sou, senão eu correria para um piano, e comporia “Pavana para um restaurante defunto”, com a pretensão que ela fosse tão melodiosa quanto a “Pavana para uma princesa morta” de Ravel, que até no enterro do presidente Tancredo Neves foi tocada (se tocassem a minha “Pavana para um restaurante defunto” apenas no enterro do Fernando Collor, eu já me daria por satisfeito). Descartado esse meu delírio musical, cuidei da elegia. Necessitaria, para isso, de rimas. Rimaria Zé Luiz com o quê?... “Chegou no Bareboat e comeu o que quis?...” E o Nil?... Com o quê eu rimaria o nome do mestre-cuca premiado da Bahia, o dengoso Nil?... “Cozinhava para mais de mil?...” Não; nada de composições poéticas consagradas ao luto e à tristeza. Lembraremos o restaurante Bareboat numa crônica hoje, outra amanhã; servindo os leitores como os garçons servem os comensais: um prato de cada vez, apesar de a característica do nosso restaurante extinto ser o “self service”.

Nessa retrospectiva gustativa, em primeiro lugar, ou como entrada, por que Bareboat, que diz respeito ao afretamento a casco nu? Porque era um restaurante performático. José Luiz, que pertencera à Aliança e a representava na Conferência Brasil/Europa/Brasil, não quis desatar de vez a sua ligação com a navegação, mesmo caindo para 3% a participação da bandeira brasileira no nosso comércio com as outras nações. Por ele, no restaurante, entraríamos pelo portaló e almoçaríamos no camarote do armador.

Há muito o que lembrar do Bareboat, apesar da sua passagem meteórica (pouco mais de dois anos). Houve, por exemplo, o garçom que sumiu no carnaval de 2002 e obrigou o Zé Luiz, com a família do dito cujo, que viera do Espírito Santos, a procurá-lo até no necrotério. Dias depois, o Zé Luiz saberia que o sujeito levara alguns cheques seus. Era um meliante. Substitui-o o Paulo. Paulo era o garçom que mais me perguntava pela “dona Glória”, apesar de ela o considerar amaneirado em demasia, com ou sem bandeja na mão. Outro que me abordava com perguntas era o Nil; a este preocupava mais o destino do estômago da Amelinha na hora do almoço:

-“Cadê a Amelinha, Carlos?”

Evidentemente, que não eram só as duas que mexiam com esses dois funcionários da Casa. Paulo também me perguntava sobe “aquela moça que às vezes vem almoçar com o senhor”...

-“A Lourdinha?...”

-“Isso mesmo. A dona Lourdinha não vem?”

Em poucos dias, já decorara o seu nome:

-“A dona Lourdinha não vem, seu Carlos?”

Quanto ao Nil, com uma memória mais cultivada, ao ver-me (esse era o problema de eu chegar cedo para almoçar), desfiava quase toda a lotação feminina da ANTAQ:

-“Cadê Amelinha?... Inês?... Nanci?... Cláudia?... Lourdinha?... Glorinha?... “

Glorinha... Com a sua afetuosidade baiana, chegara aonde o Paulo não ousara: Glorinha. Percebo agora que foi, no Bareboat, os últimos dias em que se podia almoçar com a Glória sem a desagradável presença da mosca que voeja ao seu redor. Continuasse o Bareboat vivo e hoje as perguntas seriam outras:

-“Cadê a Glorinha ?”

-“Está no banheiro.”

-“E a mosca que voeja ao seu redor?” 

-“Está lhe passando o papel.”




sábado, 18 de novembro de 2023

3147 - Trotes e Raparigas


---------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO


Volume 1 Edição 1855                          Data: 13 de Junho de 2003 

----------------------------------------------------------


TROTE NA SUNAMAM


Alguma coisa até que acontece por aqui. Temos, por exemplo, desde que o Talma deixou de ser o gerente da Fiscalização,  um “reality show”, onde todos os ocupantes dos espaços apartados por vidro tornaram-se uma platéia compulsória.  E o espetáculo não cai no agrado do público; talvez porque os apreciadores desses espetáculos prefiram casais mais perfumados pela flor da idade; embora intelectualmente insuficientes, como Sabrina e Dhomini,  como outros  casais de TV dos quinze minutos de sucesso do Andy Warhol, que, por já transcorrerem  esse espaço de tempo, eu já esqueci os seus nomes. Talvez esse descontentamento da platéia seja pela falta de um animador como Pedro Biau, para incentivar a dupla de artistas.  A platéia compulsória reage... ou melhor, não reage:  são muitos os bocejos e o tédio é interminável, como observa a reportagem do Biscoito Molhado nas suas idas ao banheiro.

Mas alguma coisa acontece, como afirmamos acima;  não com a mesma intensidade do Departamento de Marinha Mercante que, ao que parece, agora é Departamento do Fundo da Marinha Mercante. Explica-se:  o DMM é inflamado pelo calor tropical, ainda mais inflamado  com o “Fundo” que ganhou no nome, enquanto na ANTAQ, somos desanimados pelo frio glacial. Nessa terça-feira, por exemplo, quando atravessamos a geografia e a avenida Presidente Vargas, e lá estivemos, deparamo-nos com o Adelino que, beijocando as moças e apertando as mãos dos homens, como se esses fossem portadores da pneumonia asiática,  declarava:

-“De homem quero distância. Quanto às mulheres, podem subir sobre mim, me montar, fazer o que desejarem...”

Pretende o Adelino colar dois adesivos no corpo: um no tórax e outro nas costas com os mesmos dizeres: “Mantenha a distância, se você for homem”. A diferença é que as letras do adesivo nas costas serão garrafais. Não sei se enxergarão...

Poucas horas depois, quando já nos achávamos  na ANTAQ, Dieckmann que desancava os anões de jardins (para ele um gosto kitch dos novos ricos da Barra da Tijuca)  ao saber da aversão do Adelino, garantiu que o seu problema com os anões de jardins nada tem de pessoal com o ex-diretor do DMM.

Falando no Dieckmann, ele viera, nessa oportunidade, à Seção de Estatística, para pegar gazeteiros na sala de relax Cíntia Martins e, ao perceber que a Cíntia se molhara, quis saber o porquê.

Nós, que antes da chegada do nosso amigo, já ouvíramos a reclamação dela, porque o frasco com o corretivo à base d'água esparramara-se sobre ela, examinamos a reação do Dieckmann com a  resposta da Cíntia.     

-“Tomei um banho de corretivo.” 

-“Ninguém,  Cíntia, pode dizer, agora,  que você não é uma mulher correta.”

Ali estava o mesmo Dieckmann que, nas aulas do curso da Fundação Getúlio Vargas, ora agia como um jogador de vôlei (se a bola subia, ele cortava), ora agia como um jogador de futebol (se a bola quicava, ele chutava), ora agia como um jogador de basquete (se a bola vinha no rebote, ele encestava). Nunca, porém, Dieckmann agia como um jogador de beisebol – se arremessam a bola, mete-se o porrete. Nada de piadas grosseiras, nada de mau gosto, nada de anões de jardim. Dieckmann é gentil, embora confesse que, às vezes, controla a vontade de calçar os borzeguins do seu tempo de Colégio Militar, que dona Jurema o obrigava a lustrar diariamente, e chutar algumas bundas e bundões. 

-“Mulher correta...” – falou o Dieckmann, nesse meio de tanta incorreção.  Recordo-me de uma mulher que estava correta, apesar da sua atividade para ganhar dinheiro. Não!... A sua atividade para ganhar dinheiro era menos sutil. Tratava-se de uma profissional do sexo que apareceu na SUNAMAM no tempo da avenida Rio Branco 115.

-“Lá vai o redator-chefe do Biscoito Molhado descambar  outra vez pelo passado.” – reclamará um e outro assinantes, já prevejo.

Fazer o quê? Pouca coisa acontece por aqui; o máximo que pode sair do nosso “reality show” talvez sejam uns ensaios de nus para a revista Portos e Navios ou Fairplay. Voltemos, então, no tempo. Todos devem reconhecer que tento ser mais historiador do que passadista.

O diabo é que solicitaram os serviços da profissional do sexo dando o telefone da Ana Luiza.      

-“Nunca um funcionário meu faria  uma molecagem dessa.” – insurgiu-se a Ana Luiza.

Era um trote, sem dúvida. A moça, a princípio, ficou  emburrada, mas  depois  reagiu com preocupação, pois teria de se apresentar ao seu patrão sem a  parte dele do michê. Ana Luiza, menos nervosa, explicou ao cafetão, no telefone, a situação deplorável da sua funcionária. Ele teria que compreender.  Em seguida, neurastênica de novo, pois correra a notícia que o boy Zé Grandão da diretoria de Cabotagem fora o autor do trote, Ana Luiza rumou para a sala do doutor Pacheco:

-“Ela, com  uns óculos enormes, estava mais assustadora do que nunca.” – lembra-se ainda hoje o Lampier do arrepio que lhe percorreu a espinha com a súbita aparição da chefe do Bureau de Fretes no lugar onde trabalhava.

-“O comandante Pacheco tinha verdadeiro horror à voz da Ana Luiza.” – diz ainda hoje a Regina, também funcionária do comandante.

Lá, na Diretoria de Cabotagem, Ana Luiza queixou-se mais da  canalhice que foi darem o número do telefone da sua sala para uma chamada dessas, do que da covardia que fizeram com a moça.

De volta ao Bureau de Fretes, esculhambava agora o comandante Pacheco, porque sempre passou a mão pela cabeça desse “compridão ordinário” (o Zé Grandão).

-“Funcionário meu não faz isso!” – berrou com toda a estridência da sua voz.

Nesse tempo, ainda não haviam aparecido o Nilo e o Volto Já na SUNAMAM, mas já trabalhava o Marcos. Ele, funcionário da Cabotagem, sem histerias e correrias, e com seu profundo conhecimento da natureza humana, tirou do bolso o provento da profissional (ela ganhava por hora),  entregou-lhe e o caso foi resolvido. Isto é correção de rumo.

   






terça-feira, 7 de novembro de 2023

3146 - Traduções



---------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO


Volume 1 Edição 1815                          Data: 15 de Abril de 2003

----------------------------------------------------------


 TRADUZINDO E TRAINDO




“Tradutor, traidor” – reclamam os críticos das traduções, traduzindo a célebre máxima italiana “tradutore, traditore”.

O acadêmco Raimundo Magalhães Júnior – nome hoje lembrado porque era o pai da carnavalesca Rosa Magalhães – traduziu a peça de Tennessee Wiliams, Cat on a hot tin roof, como Gata em teto de zinco quente. Millor Fernandes não perdeu tempo ao saber dessa tradução,  representou numa charge uma gata (ou seria um gato?) de cabeça para baixo, andando sobre um teto, desafiando a lei da gravidade. Teto esse que nem quente era, pelo  menos na charge. Passaram trinta anos, e quando a peça é encenada no Brasil, permanece o título:   Gata em teto de zinco quente. Se ainda fosse uma peça surrealista...

Outro erro de tradução – esse mais escondido dentro da obra – ocorreu num livro sobre guerra vertido do inglês para o português. O editor do mesmo, ao ler os originais, intrigou-se com os encontros que Hitler mantinha com um tal de General Staff; em certo momento, mandou chamar o tradutor, o famoso escritor Marques Rabelo.

-“Você não sabe que General Staff é Estado-Maior?”

-“Eu nem sei inglês.”- respondeu Marques Rabelo.

Há, contudo, as traduções praticamente impossíveis. Dia desses, pelo telefone, Léozinho enveredou pela infância de Napoleão Bonaparte:

-“Ele era chamado pelos seus colegas de escola de Napadonez.”

Como traduzir esse trocadilho para a nossa língua sem perder o nariz (nez, em francês)? Impossível.

O próprio Léozinho, agora no restaurante Tarantino, tratou das traduções indiretas; obras redigidas em alemão, por exemplo, e que conhecemos em português através de traduções do francês.

-“O Feliciano de Castilho fez uma boa tradução do Fausto de Goethe, mas do francês.”

Sem nada falar, para não interromper o Léozinho, lembramos que essa obra máxima da literatura alemã inspirou algumas óperas, entre elas a Danação de Fausto de Berlioz. A Canção do Rato, recitada por Mefistófoles, que comprara a alma de Fausto, ganhou na ópera de Berlioz um formidável acompanhamento orquestral;  não fez, porem, sucesso, o que levou o compositor Rossini a comentar:

-“A Canção do Rato não fez sucesso porque não havia um só gato pingado na platéia.”

Bem, prossigamos com a peroração do Léozinho sobre as traduções, naquele nosso erudito almoço no Tarantino:

-“A tradução, Carlinhos, tem de ser também uma obra de arte, e não uma simples mudança de um idioma para o outro. Veja as obras de Dostoievsky: sempre nos chegaram através de traduções indiretas,  principalmente do francês. Agora, há um tradutor que tem familaridade com a cultura, a língua e a literatura russa, e que nos indica muitas contrafações que houve ao passarem as obras de Dostoievsky para o português.”

Sem tomar fôlego, prosseguiu:

-“O conto do Dostoievsky, Noites Brancas, por exemplo; trata-se do branco que se vai tornando mais transparente no fenômeno típico de São Petersburgo entre 21 de junho e 1° de julho.”

Outra questão que o Léozinho chamou a atenção, baseado nesse profundo conhecedor da língua russa e de Dostoievsky, é a relação muita profunda entre o estado de espírito das personagens e a sua linguagem. Esse ponto é interessante, como os assinantes do Biscoito Molhado poderão constatar, e até mesmo identificar exemplos próximos, como veremos:

“...Mas, na medida em que as personagens vão entrando em conflito com seu universo social e consigo mesmos, a linguagem fica mais complexa. Há momentos em que a personagem se torna quase que incompreensível...”

Não parece o Sílvio Carello?... Só falta mesmo o farol de milha... Alguém, talvez, resmungue:

-“Sílvio, um personagem de Dostoievsky?!...”

Ora, o autor russo foi o primeiro grande escritor a trazer o povo miserável para o primeiro plano, para o proscênio da literatura, e o Sílvio Carello, mesmo hoje, não apaga da nossa memória a sua choradeira pelo seu escasso salário no passado recente.

Como o assunto é vasto, e mais vasta ainda é a erudição do Léozinho, não tivemos tempo, na nossa conversa, de tratar das traduções faladas, ou seja, das dublagens. Como sempre encontramos lugar no Biscoito Molhado para qualquer assunto perdido, aí vai um trecho, ou melhor, uma frase de um dublador do Robert Mitchum, num filme que assistíamos na TVA.

-“Me dá um chopis.”

Mudei de canal sem esperar que ele pedisse dois pastel.