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domingo, 4 de agosto de 2024

3157 - HISTÓRIAS DA ZONA SUL

        


                                

O BISCOITO MOLHADO


Volume 2949                     Data: 20 de novembro de 2007 


UMA HISTÓRIA SOBRE O ARNALDO


-Posso ser o pai. - anunciou o Arnaldo no Bureau de Fretes alegremente.

-Mas como? - perguntaram quase ao mesmo tempo a Glória e a Ana Luiza, expressando na inflexão da voz e no rosto a mesma perplexidade.

-A Lidoca está grávida.- informou.

Lidoca, uma das “Frenéticas”, estreitara a amizade com o Arnaldo na novela “Dancing Days”, de 1983.  “Dancing Days”, que fora um dos maiores sucessos da história da TV Globo, traziam a moda das discotecas para a novela. Na abertura de cada capítulo, ouvia-se o tema musical cantado pelas “Frenéticas”, e via-se dançarinos, alguns deles ex-integrantes dos “Dzi Croquetes”, como o Arnaldo, em plena ação.

-Então, esse seu tão decantado amor pela Cacao era da boca para fora?

Arnaldo não notou a maldade da pergunta da Ana Luiza, e explicou:

-Cacao se encontra em outro contexto. Nós nos conhecemos, como já contei, lá no Espírito Santo, com uns doze anos de idade. Namorei a Cacao, e seguimos depois os nossos caminhos, mas não a esquecerei nunca. Com a Lidoca é outra história; ela é só uma grande amiga minha.

-E vai ser mãe do seu filho? - perguntou a Glória.

-Como eu gostaria que o filho fosse meu... - devaneou o Arnaldo.

-Arnaldo, você vai ou não vai ser pai? - perguntei.

-Charles Brown, a Lidoca está em dúvida; não sabe se o filho é meu, do Petit ou do Gilberto Gil.

-Poxa!... - mesclou a Ana Luiza crítica e perplexidade na sua exclamação.

-Lidoca é uma mulher que transa muito pouco. - defendeu-a o Arnaldo.

-Estamos vendo... - ironizou a Glória.

-Ela se encontrava em período fértil, quando esteve comigo, o Petit e o Gil, mas o ginecologista desvendará a dúvida dela. Lidoca reza para que seja o Gilberto Gil.

-Aquele sujeito horroroso?!... - assustou-nos a Ana Luiza, pois sobressaía, na sua voz estridente, mais a questão racista do que a estética.  

-Lidoca é apaixonada pelo Gil; e um filho dele era tudo o que ela queria. Ela até conversou com a Sandra, a mulher do Gil, sobre o assunto, e a Sandra aceitou numa boa.

-Confesso que a atitude dessa gente do mundo artístico foge à minha compreensão.

A Glória concordou com a Ana Luiza, enquanto eu me omitia.

-Mas é claro que a Lidoca não vai se decepcionar se o filho for meu. 

No outro dia, Arnaldo apareceu no trabalho com umas fotografias.

-Arnaldo, o que é isso?... Você está sentando no colo do Fernando Bicudo?!...- arregalou ainda mais os olhos a Glória.

-Deixa-me ver.- morreu a Ana Luiza de curiosidade.

-Ar...nal...do. - separou bem as três do seu sílabas para esparramar o seu veneno em cada uma delas.

-Você olha a foto e vê que não há maldade nenhuma. Fernando Bicudo mostra  o rosto com  que aparece na televisão, e eu mostro o rosto com que apareço aqui. Onde está a maldade?

A polêmica fotografia se encontrava agora nas minhas mãos. Os rostos dos dois estavam, de fato, serenos, mas a questão não eram os rostos...

-Já viram?... Agora vou recolher as fotografias.

Arnaldo só nos devassava parte do outro mundo em que vivia; mas as vezes não se continha e deixava transparecer o que não devia.  Recolheu as  fotos com suspiros de arrependimento.

-O pai certamente não é ele.- comentou-se na sua ausência.

-É o Petit...- anunciou ele um dia com o ar de desapontamento.

Conformado, prosseguiu:

-Depois dos exames da Lidoca, não ficaram mais dúvidas: Petit é o pai.

-Petit é a paixão do Caetano Veloso?... 

-Não é que seja a paixão, Ana; ele inspirou as músicas “Menino do Rio” e “Leãozinho”.

Falando certa vez sobre a preferência sexual do Caetano Veloso, disse-me o Odilon, também funcionário do Bureau de Fretes e grande amigo do empresário Guilherme Araújo:

-Caetano Veloso tem a fama, sem tirar o proveito.

-Que proveito é esse, cara-pálida? - foi a minha pergunta que se calou, porque eu  respeitava o seu caráter e comportamento discreto.

Nas poucas palavras que deixou escapar, em anos de convívio no trabalho, a sedução de um padre, no seminário, quando menino, o afastou das mulheres quando chegou à puberdade. História que guarda similitudes com a do cineasta Pedro Almodóvar. Mas deixemos o Odilon e prossigamos com o Arnaldo.

-Com dragão tatuado no braço, surfando todo o dia, como o Petit sustentará o filho? - quis saber a Glória.

-Mais uma razão para eu ser o pai; ou, então, o Gil.

-Gilberto Gil?...- fez uma cara de quem mastigara um pedaço de jiló a Ana Luiza.

-Lidoca prometeu que o padrinho seria eu; ela me vê todo o dia, praticamente.

-E você a ajuda, não é Arnaldo?... - interveio a Glória.

Os dias de sucesso do “Dancing Days” ficaram alguns anos para trás. O grupo praticamente se desfazia com a mudança do gosto popular. As vacas magras chegaram, menos, talvez, para uma delas que casara com o Chico Anísio. 

-Se o pai fosse o Gilberto Gil, que deve ganhar um bom dinheiro com os shows...

Arnaldo não a deixou terminar.

-Isso não, Ana. A Lidoca é apaixonada pelo Gil sem essa história de ele ter ou não muito dinheiro. Ela não é fixada no vil metal.

-Não está mais aqui quem falou. 

Apesar dessas palavras, estava ali, com a sua incômoda presença, quem falara.

O garoto nasceu, era um menino e conforme o prometido, Lidoca escolheu o Arnaldo como padrinho. Petit não largara a prancha para embalar o filho, muito menos para contrariar a escolha da Lidoca. 

Passou um tempo e o pai do menino bateu com a cabeça no meio-fio depois de cair da motocicleta.

-Charles Brown, haverá um show para levantar recursos para o pagamento dos gastos do Petit no hospital, você pode me substituir amanhã aqui na CIPA? - pediu-me por telefone.

-Tudo bem, desde que você avise à Ana Luiza, pois o representante do Bureau de Fretes nessa Comissão, indicado por ela,  é você.

Pelo jeito, não avisou, pois a dita-cuja me olhou atravessado por uma semana.

-Petit saiu do coma. - informou um dia o Arnaldo sem muito entusiasmo.

-Petit ficou meio abobalhado.- informou num outro dia com tristeza.


Duas ou três semanas depois, o telefone soou no Bureau de Fretes: 

-Arnaldo não vem trabalhar, Petit se enforcou, e ele vai ao enterro.

No dia seguinte, Arnaldo narrou partes do enterro.

-Nunca senti tanto cheiro de maconha num cemitério. E os discursos à beira do túmulo... Um deles dizia entre uma e outra baforada no  baseado: “Você foi um exemplo, bicho...”

Ninguém se lembrou de perguntar se a Lidoca levara o filho ao enterro do pai.

Anos depois, o próprio Arnaldo caía doente. Um dia, o telefone tocou.

-Casei com a Lidoca, mas avisei que a minha pensão era para ajudar no sustento do meu afilhado, e que se ela desviasse o dinheiro para outra coisa, eu viria do além-túmulo para lhe puxar o pé.

E riu melancolicamente.























    





segunda-feira, 24 de junho de 2024

3156 - E a Grande Guerra? (R)

O BISCOITO MOLHADO


Volume 2984                     Data: 16 de janeiro de 2008 


    A  BATALHA  DAS  TONINHAS


Confesso que eu nada sabia sobre a Batalha das Toninhas. Sobre a participação do Brasil, na Primeira Guerra Mundial, conhecia alguma coisa de leituras de obras do historiador Hélio Silva. Na escola, então, nada foi dito. Lembro-me de que estudei História do Brasil no primeiro ano ginasial, História das Américas no ano seguinte, e História Geral, nas terceira e quarta séries. Aprendi alguma coisa sobre gregos, romanos, fenícios e até mesmo sobre os caldeus, mas nada sobre a Primeira Guerra Mundial e, muito menos, sobre a Batalha das Toninhas.

Tive de me virar também, não nas páginas do Hélio Silva, para aprender sobre a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, pois até existe um monumento aos mortos nessa guerra, em Coimbra. Chegara a Portugal um pedido da Inglaterra para que apreendesse todos os navios alemães que se encontravam nos seus portos. Os portugueses sabiam que isso significaria a sua entrada no conflito, mas necessitavam do reconhecimento das principais nações sobre os seus direitos coloniais na África, Moçambique e Angola.

Como país aliado, Portugal, que não se achava belicamente preparado, teve de enviar tropas para a batalha de La Lys, na França, e sofreu uma perda terrível em uma só batalha: 7 500 homens. O país ainda penou com um grande número de feridos e inválidos. 

Após o desastre, a representação portuguesa, em Flandres, ficou reduzida a menos de uma divisão, perdendo comando e autonomia próprios. Foram, então, os soldados portugueses integrados ao comando inglês, que os enviou para a retaguarda, com a função de cavar trincheiras.

Antes, em 5 de janeiro de 1917, o major e lente de Matemática, Sidônio Pais, encabeçara um sangrento golpe militar e estabelecera a ditadura em Portugal até 1918.

Voltando ao Brasil, soube - repito - de alguma coisa sobre a nossa participação na Primeira Guerra Mundial, através de páginas do historiador Hélio Silva, que escreveu parágrafos como este:

-“O Brasil não pensava em guerra. Surpreendido pelo grande acontecimento, acabou envolvido por ele, com seus navios torpedeados, suas linhas transatlânticas de navegação ameaçadas e seu povo sobressaltado, levado à solidariedade com a causa dos aliados. Por outro lado, a Tríplice Aliança, de Alemanha, Áustria-Hungria e Itália, também tinha ligações afetivas e interesses comerciais no Brasil. Havia súditos desses países irmanados no esforço criador de nossa riqueza. Não foi fácil ao governo brasileiro separar o joio do trigo. Combater a guerra interna e preparar-se para participar, dentro de nossas modestas possibilidades, da guerra externa. E o fizemos com honra.”

Com honra?!... Será que um historiador do porte de Hélio Silva não soube da Batalha das Toninhas? Bem, ele escreveu que o Brasil não estava preparado para a guerra e seu presidente, Wenceslau Brás, vindo de Itajubá, menos ainda. Concluiu o óbvio: “A trajetória de Itajubá ao Palácio do Catete não favorecia a formação de um estadista de nível internacional. E acerta quando diz que o Brasil sairia do conflito menos preparado do que quando nele entrara. Refere-se depois às “sabinas”, que foram os títulos de crédito público lançados no mercado, pelo governo federal, para conter a crise financeira. Explicar a razão do nome “sabinas” nos levaria a uma vendedora de laranjas que, impedida de trabalhar perto da Academia de Medicina, provocou uma passeata estudantil pró-República e que, mais tarde, inspiraria uma peça de teatro de Arthur de Azevedo e o nome dos tais bônus, que acabaram não sendo resgatados e que jogaram o governo Wenceslau Brás no descrédito total, depois da guerra.

E a Batalha das Toninhas?... 

Apareceu recentemente, na Internet, o vídeo de uma aula de cursinho, dada por um tal professor Carlão. Para a turma memorizar bem o fato histórico, o professor recorreu ao humorismo; nem precisava, aliás. Ele explica o que são as toninhas: “uma bosta assim... (faz, com uma das mãos, uma curva que representa o dorso do bicho) que parece um flipper largo”. 

Mas há necessidade de que se expliquem mais coisas, não  em uma aula de cursinho de vestibular, é claro.

Houve, antes da entrada do Brasil na guerra, divergências diversas, entre o governo brasileiro e o alemão, e isso levou o nosso país a criar o D.N.O.G. - Divisão Naval em Operações de Guerra. Também foi declarado estado de sítio nos Estados do sul, onde viviam incontáveis imigrantes estrangeiros. O Rio de Janeiro e São Paulo ficaram também sob estado de sítio, por causa de agitações operárias. 

A iniciativa de uma divisão naval tinha sido apresentada pelo Brasil à Conferência de Paris, no final de novembro de 1917, com a oferta de dois cruzadores leves (“Bahia” e “Rio Grande do Sul”) e de quatro contra-torpedeiros, para operar na área entre Dacar – São Vicente - Gibraltar.  Acatada a oferta brasileira, a divisão naval foi criada em 30 de janeiro de 1918, com os citados cruzadores e os contra-torpedeiros Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina, sob o comando de um  contra-almirante. 

O contra-almirante... como era mesmo o nome dele, pois também foi esquecido pelos historiadores?... ah, sim!, Pedro Max Fernando de Frontin, solicitou a cessão de um navio para servir de “tender” (navio oficina), e lhe designaram o “Belmonte” (antes alemão, chamado Valesia), armado como cruzador auxiliar.

O rebocador “Laurindo Pita” completava a Divisão Naval de Operações de Guerra que, assim, era composta de um efetivo total de 1502 homens, sendo 75 oficiais, 4 médicos, 50 oficiais de máquinas, 5 oficiais comissários (intendentes), um farmacêutico, um dentista, um capelão, um sub-maquinista, 41 sub-oficiais, 43 mecânicos, 4 auxiliares de fiel, 702 marinheiros, 481 foguistas, 89 taifeiros, 1 padeiro e 3 barbeiros.

Em Dacar, onde a Divisão chegou em 26 de agosto, recebeu ordens de operar na área de Cabo Verde, patrulhada, até então, por duas canhoneiras inglesas.

Após algum tempo, nossos navios receberam ordens para seguirem para Gibraltar. 

O professor Carlão enfatizou bem essa ordem, em sua aula que agora viaja pela Internet:

-Uma única missão: fiquem em Gibraltar. Só isso: cuidem do Estreito de Gibraltar.

Deflagra-se, então, a Batalha das Toninhas. Tudo começou quando um cardume de toninhas foi confundido com o rastro de um submarino alemão e seu periscópio. 

O cruzador Bahia, então, disparou os seus canhões contra as toninhas.

-Matamos todas as focas do Mediterrâneo! - bradou o Carlão.

-Se o Greenpeace existisse naquela época, nós estávamos fodidos. - prosseguiu.

-Os alemães, com medo que o Brasil fizesse com eles o que fizeram com as focas, assinaram a rendição. - afirmou o incansável professor.

Um fato, porém, não foi citado nessa aula e mostrou o que não se vê na grande maioria dos livros de História do Brasil: o contra-torpedeiro Piauí acionou seus canhões contra o caça-submarino 190, da marinha norte-americana, pois também foi confundido com um submarino alemão. 

Acredito que interessava igualmente aos americanos o fim da guerra, pois o Brasil poderia dizimar a sua Armada. Digo isto sem os exageros do professor Carlão, é claro.




 







segunda-feira, 15 de abril de 2024

3155 - Artistas (R)

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O BISCOITO MOLHADO


Volume 2730                     Data: 13 de dezembro de 2006 

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MULHERES  DESEJADAS



Começo dos anos 70. Nosso grupo de seis ou sete pessoas se encontrava, sem cerimônia alguma, sentado na calçada da porta do beco que terminava na casa da dupla Cosme e Damião. Tédio não havia, pois sempre vinha um tema para nós discutirmos. Tonico, o português, nos viu da porta da sua casa, e se  juntou ao grupo. Os mais atentos percebiam que a sua intenção era outra: contemplar uma mulata baixinha, mas de pernas roliças e cintura de pouco diâmetro, que se mudara para a parte de cima da casa próxima a do nosso colega Wagner. 

A mulata já alucinava o Tonico, pois não eram nem quatro horas da tarde e ela só chegava em casa depois das nove horas da noite. Numa dessas suas vindas do trabalho, sem se importar comigo, com os gêmeos já citados, e o meu irmão Lopo, gritou a plenos pulmões uma quantia altíssima em cruzeiros. Foi um grito que atravessou a rua, chegou num ouvido da moça e saiu pelo outro, sem que a expressão simpática dela se alterasse. Certamente, não percebera que foi apregoada como uma prostituta. E se entendesse e viesse, um dia, a satisfazer àquele lusitano, o que ele faria depois... Contou-me o Tonico, num daqueles raros momentos de desabafo comigo, que um dia traíra a Rosinha, sua esposa também portuguesa. Viu-se obrigado, porque ela sentia o cheiro de uma rival a quilômetros de distância...

Bem, naquele grupo que empoeirava os fundilhos dos calções na calçada às quatro horas da tarde, Tonico se entendiou e lançou uma idéia que distrairia não só a ele como a todos os presentes, com exceção de dois deles: uma disputa de velocidade. Nas peladas do campo Cachambi, chamavam a atenção a pressa, para não dizer velocidade,  com que o Toninho Maluco e o Cabrita chegavam à bola quando a mesma se achava distante. Toninho Maluco tinha pressa para fazer bobagem; disparava em direção da bola e, alcançando-a, saía uma jogada bisonha. Cabrita, cuja posição de destaque era a de goleiro,  já sabia entregá-la para alguém que gozasse de mais intimidade com ela, alguém do seu time é claro.  Mas passemos logo para a proposta do Tonico.   

Ganharia uma coca-cola quem fizesse o circuito que envolveria a rua  Chaves Pinheiro, a avenida Suburbana, a rua Cachambi, a rua Honório e a rua Chaves Pinheiro de novo até o ponto de partida. Ou seja, os dois partiriam em sentido contrário para retornarem ao mesmo lugar o mais velozmente possível. Toparam e, ao grito de “já” do Tonico, dispararam. Quando sumiram, Cabrita na esquina com a Suburbana e Toninho Maluco na esquina com a Honório, as nossas especulações começaram. Especulações que, impregnadas de simpatia, previam o Cabrita vencedor. Toninho Maluco, uma das pessoas mais aborrecíveis da rua (daqui a três ou quatro edições volto a ele), só contava com a simpatia do Tonico, porque o pai dele também era português. Nessa competição, Cabrita levava uma desvantagem: subia uns cem metros da rua Honório, enquanto Toninho Maluco descia esse trecho. Nada reclamamos, porque contávamos com a sua vitória, mas o Toninho Maluco venceu com cinco ou seis metros de vantagem. 

Tonico gastou dinheiro apenas com a coca-cola do Toninho Maluco; não pagou um litro de gasolina para se banhar porque aquela mulata nem notou a sua presença no pouco tempo em que morou na nossa rua.   

Maninho era presença quase que assídua dos grupos que se formavam na Chaves Pinheiro. Viveu uma paixão alucinante pela Leila Diniz, e repetia à exaustão a sua fantasia libidinosa: “dar um banho de gato na sua musa”. Mais de uma vez o surpreenderam contemplando um bichano vagabundo de telhado na sua prática de higiene. Com toda certeza, estudava a técnica do bicho caso a Leila Diniz correspondesse à sua paixão. 

Luca repetia para a turma da Chaves Pinheiro uma das frases da atriz na sua célebre entrevista ao Pasquim “Homem não esquenta lugar na minha cama”, mas Maninho não se intimidava com essas palavras, pois ele não esquentaria simplesmente  o lugar da sua cama, o arderia em chamas que só água de mangueira apagaria a muito custo  - fato que só seria imaginado muitos anos depois por Pedro Almodóvar no filme “Mulheres à Beira de um Ataque Nervoso”.

No carnaval de 1972, correu a notícia que a Leila Diniz desfilaria em três escolas de samba; Império Serrano, como Carmem Miranda, Imperatriz Leopoldinense, se a memória não me trai, e a terceira eu não cito, pois a memória me trairá com toda certeza. Maninho anunciou que não dormiria para assistir à Leila Diniz nos três desfiles, pela televisão.

Lamberia, na certa, a tela da sua televisão todas as vezes que o Cameraman localizasse a musa - comentei. O comentário do Wagner, como tornou o meu aristocrático, comparado com o dele, não será aqui reproduzido.

Império Serrano venceu, com um sambinha sem-vergonha, aquele carnaval de 1972 com a sua Carmem Miranda que, assinalamos, além da Leila Diniz, ainda teve a Marília Pera, a Míriam Pérsia, a Maria Pompeu, a Zélia Hoffman e mais uma sétima atriz. Foram sete  caracterizando a mais famosa das cantoras da nossa música popular.

Saltemos dois anos: 1974.  Depois de o Brasil se classificar com uma sofrida vitória contra o Zaire por 3 a 0, a conta do chá para conseguir o saldo de gols suficiente, não se falava em outra coisa que não fosse o frango do goleiro africano nos minutos finais da partida. Bem, um motorista de táxi foi exceção. Tentarei trazer esse fato para os dias de hoje com a maior fidelidade que puder à verdade.

O Luca trabalhava, nesse tempo, com oficiais de justiça. O seu  carro, um Volkswagen novinho, praticamente, de 1973, se achava na oficina. Luca precisou de um táxi e, comigo e um dos meus irmãos, o Lopo, seguramente, rumamos para a oficina. Bill e Moacir, seus mecânicos, depois trabalhariam na própria Chaves Pinheiro.

-Vocês viram a Eliana Pittman na televisão, ontem? - nem nos deixou conversar o motorista, quando mal nos acomodamos no banco.

Por coincidência, um ou dois de nós vira a Eliana Pittman e respondera a pergunta.

O motorista passou, então, a pintar a cantora com tintas carregadíssimas de pornografia. Dos lábios, seios, ancas do seu objeto de desejo e de consumo, passou para o Kama Sutra que praticaria com ela. Não me esqueço das gargalhadas do Luca, e do meu medo que o sujeito batesse com o carro.

Felizmente, a corrida foi curta. Pagamos, enquanto ele, puxando o troco da carteira, ainda babava:

-Que mulher!

Seguimos eu, Luca e meu irmão em frente, imaginando o que aconteceria a Eliana Pittman se, por um azar, pegasse aquele táxi.

   


terça-feira, 5 de março de 2024

3154 WM - O golpe da cafeteria

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O BISCOITO MOLHADO


Volume 3023                     Data: 05 de Março de 2024 

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A GAROTA DA CAFETERIA


Estava sentado na cafeteria. Na mesma cafeteria que sempre frequentei, no bairro do Rio Tavares, tomando o mesmo café de sempre. Cappuccino italiano com adicional de canela.

A cafeteria encontrava-se quase deserta, com apenas eu e um homem trajando roupas sociais, ambos imersos em mundos próprios, situados em extremos opostos. Em meio ao ambiente tranquilo, eu apreciava a arte de não fazer nada enquanto degustava o meu café. Optava por não utilizar nenhum dispositivo tecnológico ou mergulhar em leituras. Embora seja um amante dos livros, reservava o horário do café para uma prática contemplativa, uma espécie de mindfulness – a aclamada ferramenta predileta dos coachs digitais. Ao que tudo indica, já vinha adotando essa prática intuitivamente, sem sequer estar ciente do termo. Para não afirmar que minha mente estava completamente vazia, ao saborear o café, concentrava-me em direcionar meu foco para apreciar suas nuances através das papilas gustativas, especialmente o sabor adocicado e amadeirado da canela, com suas impressões cítricas.

Pois bem. Eu estava lá, sem pensar em nada. Apenas focando na temperatura do líquido ao passar pela minha garganta e em como meus sensores de sabor reagiam às suas essências. Sem ler, sem nenhum gadget, sem nada, praticamente um psicopata. Foi quando, de forma abrupta, minha atenção foi capturada por uma presença inesperada. Uma jovem desconhecida surgia diante de mim. Uma ruiva, aproximadamente vinte e cinco anos, trajada inteiramente de preto. Seu figurino compreendia uma legging preta e um moletom preto adornado com um delicado desenho de uma caixinha de música. Num dia de verão, o clima abafado contrastava com sua escolha de vestuário, divergindo muito do estilo do executivo imerso em seu notebook, que ostentava uma camiseta branca lisa e uma calça caqui de tecido fino.

Meu mindfulness foi para o espaço sideral quando ela entrou. A música ambiente que tocava uma bossa nova instrumental, pareceu aumentar de volume, e voltou a estabilizar conforme ela ostentava passadas firmes por entre as mesas da cafeteria. Uma mulher determinada.

E foi aí que aconteceu uma coisa absurda. ABSURDA, repito, em maiúsculo.

Ela andou na minha direção e se sentou na mesa que eu ocupava. Isso mesmo que você leu: na minha mesa, na cadeira bem em frente da minha. Como assim? Com tantas mesas vazias, por que se sentar logo na minha? O que ela queria comigo?

Achei o fato de uma gravidade descomunal. Sempre considerei um ato absurdo, desrespeitoso, interromper um ser humano que contempla o nada. Abalar o ócio alheio deveria ser incluído na lista de pecados capitais.

Eu estava nervoso, me sentindo invadido, mas não queria ceder. Não seria o primeiro a falar. Ignorei sua presença e continuei tomando meu café, fingindo que nada estava acontecendo. Tratava de evitar qualquer contato visual, mesmo me corroendo por dentro, como se parasitas devorassem meus órgãos internos. Podia sentir a quentura do olhar da ruiva me fitando. Eu derretia naquela cafeteria.

Conseguimos manter a competição por cerca de uns três minutos, e confesso que fiquei aliviado quando ela disse a primeira palavra, me tornando um campeão do jogo da “Vaca Amarela”, no qual o primeiro a falar é eliminado e insultado. Vocês sabem, né? Enfim... fui o vencedor e, no caso, a palavra que a fez ser derrotada foi:

– Oi.

– Oi – respondei, virando o rosto com calma para o primeiro contato visual. Parecia uma cena clichê de novela mexicana em reprise.

Seu rosto era delicado e os cílios longos. A boca era pequena, como de uma gueixa. A pele tão clara que era possível ver, além das pintas típicas das ruivas, pequenas veias verdes circularem pela testa. Apesar da delicadeza, o olhar passava um tom imperioso.

– Seu café tem cheiro de canela.

– Sim. Eu peço com dose extra de canela – respondo e dou mais um gole enquanto volto a observá-la.

Ela parece ser ruiva natural. Posso dizer pela raiz do cabelo, pelas pintas no rosto e pela sobrancelha também avermelhada. Ou isso, ou ela se esforça muito para se parecer a uma ruiva natural.

– Eu não gosto de canela – diz a ruiva natural, ou que esforça muito para se parecer a uma ruiva natural.

– O problema é seu – respondo, malcriado.

Ficamos mais um tempo em silêncio. Diria que mais uns dois minutos. Ainda tinha um resto de café na xicara que já estava em temperatura ambiente. Entretanto, eu não estava disposto a dar o último gole para finalizar o café. Sempre acontece alguma coisa depois que o café acaba e, naquele momento, eu estava com receio do que estava por vir. O futuro poderia ser sombrio. O inverno poderia chegar antes da hora.

Foi quando o garçom passou e perguntou se queríamos algo. Para o garçom parecia muito natural duas pessoas uma na frente da outra. Afinal, é a configuração mais clássica quando falamos de disposição em uma cafeteria. Ele pode ter achado que éramos amigos, ou um casal, ou empresários discutindo o orçamento de uma empresa startup de tecnologia, ou qualquer coisa. Não pareceu nenhum momento suspeitar que éramos dois estranhos, sendo um deles com sua intimidade invadida, com seu ócio desrespeitado, atirado às traças.

A ruiva pediu um cappuccino.

– Sem canela, por gentileza. Eu não gosto de canela – fez questão de frisar, talvez apenas para me provocar.

Será que ele anotaria tudo numa única comanda? Estaria eu a financiar o café da mulher que se sentou na minha frente sem o meu consentimento?

– Para mim mais um cappuccino italiano, com a dose extra de canela – pedi para não ficar para trás.

Não é do meu feitio repetir o café matinal, porém, senti a necessidade de fazê-lo para continuar firme no jogo. Assim ganharia tempo até me preparar para a próxima jogada. Meus bispos e minhas torres estavam intactos e atentos para defender o rei.

– Ontem foi o meu aniversário – disse a ruiva.

– Parabéns – respondo, blasé.

– Eu não ligo muito para aniversários. É só mais um dia.

Respondo com os olhos algo como “tanto faz” e giro a xícara com o gole que resta do café que não tomarei.

O garçom chega com os novos cappuccinos. “Sem canela para a madame, e com canela extra para o amigo.” – diz o simpático garçom, prestativo, que quase nunca erra os pedidos, e que provavelmente anotou tudo numa única comanda. Nós dois agradecemos uníssonos.

A ruiva segurou o café com as duas mãos e o sorveu ainda quente. Ela parecia saber o que estava fazendo. Ao sorver o café, a bebida é pulverizada na boca, fazendo o líquido entrar junto ao ar, o que ativa as papilas gustativas da língua, aumentando a percepção de sabores.

– Bom – ela elogia num tom sério, como uma sommelier de cappuccinos sem canela.

Repito o olhar de “tanto faz”, percebendo que minha má educação forçosa veio como defesa à ruptura do meu precioso ócio. Foi então que escutei um pedido um tanto peculiar.

– Me fale da sua avó paterna.

Quase me engasguei. Com o cappuccino entalado na garganta, respondi:

– O quê?

– Isso mesmo que você ouviu. Me fale da sua avó paterna.

– Não vou falar da minha avó paterna. Por que falaria?

– Te entendo. O pedido pode parecer meio estranho mesmo. Mas... por favor. É importante para mim. Você poderia falar da sua avó paterna? Por favor – repete a suplica me encarando com olhar pidão. Seus olhos sabiam fazer um ótimo olhar pidão.

– Minha avó paterna faleceu há mais de vinte anos. – Eu sei.

– Como assim você sabe?

– Quis dizer... eu imaginei. É normal na nossa idade já não termos mais a presença dos avós.

Interessante ela ter usado o termo “nossa idade”, estando eu próximo aos quarenta. Tomei como elogio e cedi:

– E o que você quer saber sobre minha avó?

– Qualquer coisa. Fale qualquer coisa.

Foi quando comecei a recordar da minha avó. Ela era uma boa mulher. Carinhosa, divertida, boa cozinheira. Me chamava de uns apelidos engraçados, típicos da cidade onde ela nasceu no sul do país. Gostava de contar umas histórias do folclore local, algumas que me aterrorizaram por anos, como a lenda do minhocão – uma espécie de serpente monstruosa com língua de fogo que morava na lagoa da cidade e que perseguia crianças malcriadas. Enquanto pensava na minha avó, ia soltando palavras que pareciam ser devoradas com atenção máxima pela mulher ruiva, de quem nem o nome eu sabia.

Falar da minha avó paterna ativou algo dentro de mim que não soube bem explicar. Só sei que comecei a falar sem parar, a entregar histórias e sentimentos com um nível de detalhes que não imaginava recordar. E a mulher na minha frente não piscava um olho. Que tremenda ouvinte estava ali, cem por cento atenta e presente. Seria ela uma psicóloga com a capacidade de atenção plena bem apurada?

Confesso que não percebi o momento que ela se comunicou com o garçom, mas sei que na mesa chegou uma porção de pão de queijo, brioches, manteiga e uns croissants. Enquanto ela comia e esparramava manteiga sem desgrudar os olhos dos meus, percebi uma certa emoção quando comecei a detalhar o amor da minha avó pela culinária. Contei que era especialista em fazer arroz de carreteiro, e o preparava com a carne bovina bem picada que sobrava do churrasco, além de linguiça e tomate. Fazia tudo refogado em bastante gordura, sempre caprichando nos temperos. O cheiro-verde salpicava com fartura para dar o toque final. As lágrimas caiam com discrição dos olhos da ruiva, que já havia dado conta de finalizar todos os carboidratos da mesa.

Interrompi minha narrativa para perguntar se estava tudo bem.

– Então é isso. Agora eu tenho certeza – disse ela, convicta, enxugando as lágrimas com o guardanapo.

– Certeza do que?

– De que eu te conhecia. Eu sabia que eu te conhecia desde o momento que te vi entrar na cafeteria.

– Desculpa, mas eu não tenho a impressão de ter te visto antes. Sou bom em reconhecer e guardar fisionomias.

– Mas eu te conheço – afirmou, plena.

– Você me conhece ou conheceu a minha avó? Ou as duas coisas?

– É muito mais do que isso.

– O que é então?

A ruiva respirou fundo e soltou algo que eu não estava preparado para escutar:

– Eu sou a sua avó!

– Ahn? – respondei incrédulo, tentando digerir o absurdo que havia escutado.

– É isso mesmo. Eu sou a sua avó. Sua avó paterna. Óbvio que não nessa encarnação, porém na última.

– Na última?

– Sim, sou muito sensível a esse tipo de coisa. Fiz uma regressão e consegui enxergar quatro gerações para trás. Na última, fui uma senhora de família aqui do Sul, que amava cozinhar. E adivinha qual era a minha especialidade? Isso mesmo: arroz carreteiro, com cheiro-verde como toque final.

– Você tem certeza disso?

– Absoluta. E estou feliz por encontrar o meu netinho.

– E por acaso você consegue lembrar do seu nome na última encarnação?

– Lembro sim – afirmou, resoluta.

– Maria Eugênia, não é mesmo?

– Exatamente. Maria Eugênia. Fui muito feliz sendo a Maria Eugênia. Obrigado por ser parte importante da minha vida. Agora preciso ir, é muita coisa para digerir. Adeus, meu neto.

A mulher ruiva se levantou, passou a mão no meu cabelo como num afago de vó e, assim como entrou decidida, saiu sem olhar para trás.

Obviamente a conta ficou comigo. O cappuccino sem canela e todos os pães foram parar na minha comanda. E tudo bem. Minha avó teria ficado feliz de eu tê-la convidado para um café da manhã, pena que ela se chamava Ignácia.