-Posso ser o pai. - anunciou o Arnaldo no Bureau de Fretes alegremente.
-Mas como? - perguntaram quase ao mesmo tempo a Glória e a Ana Luiza, expressando na inflexão da voz e no rosto a mesma perplexidade.
-A Lidoca está grávida.- informou.
Lidoca, uma das “Frenéticas”, estreitara a amizade com o Arnaldo na novela “Dancing Days”, de 1983. “Dancing Days”, que fora um dos maiores sucessos da história da TV Globo, traziam a moda das discotecas para a novela. Na abertura de cada capítulo, ouvia-se o tema musical cantado pelas “Frenéticas”, e via-se dançarinos, alguns deles ex-integrantes dos “Dzi Croquetes”, como o Arnaldo, em plena ação.
-Então, esse seu tão decantado amor pela Cacao era da boca para fora?
Arnaldo não notou a maldade da pergunta da Ana Luiza, e explicou:
-Cacao se encontra em outro contexto. Nós nos conhecemos, como já contei, lá no Espírito Santo, com uns doze anos de idade. Namorei a Cacao, e seguimos depois os nossos caminhos, mas não a esquecerei nunca. Com a Lidoca é outra história; ela é só uma grande amiga minha.
-E vai ser mãe do seu filho? - perguntou a Glória.
-Como eu gostaria que o filho fosse meu... - devaneou o Arnaldo.
-Arnaldo, você vai ou não vai ser pai? - perguntei.
-Charles Brown, a Lidoca está em dúvida; não sabe se o filho é meu, do Petit ou do Gilberto Gil.
-Poxa!... - mesclou a Ana Luiza crítica e perplexidade na sua exclamação.
-Lidoca é uma mulher que transa muito pouco. - defendeu-a o Arnaldo.
-Estamos vendo... - ironizou a Glória.
-Ela se encontrava em período fértil, quando esteve comigo, o Petit e o Gil, mas o ginecologista desvendará a dúvida dela. Lidoca reza para que seja o Gilberto Gil.
-Aquele sujeito horroroso?!... - assustou-nos a Ana Luiza, pois sobressaía, na sua voz estridente, mais a questão racista do que a estética.
-Lidoca é apaixonada pelo Gil; e um filho dele era tudo o que ela queria. Ela até conversou com a Sandra, a mulher do Gil, sobre o assunto, e a Sandra aceitou numa boa.
-Confesso que a atitude dessa gente do mundo artístico foge à minha compreensão.
A Glória concordou com a Ana Luiza, enquanto eu me omitia.
-Mas é claro que a Lidoca não vai se decepcionar se o filho for meu.
No outro dia, Arnaldo apareceu no trabalho com umas fotografias.
-Arnaldo, o que é isso?... Você está sentando no colo do Fernando Bicudo?!...- arregalou ainda mais os olhos a Glória.
-Deixa-me ver.- morreu a Ana Luiza de curiosidade.
-Ar...nal...do. - separou bem as três do seu sílabas para esparramar o seu veneno em cada uma delas.
-Você olha a foto e vê que não há maldade nenhuma. Fernando Bicudo mostra o rosto com que aparece na televisão, e eu mostro o rosto com que apareço aqui. Onde está a maldade?
A polêmica fotografia se encontrava agora nas minhas mãos. Os rostos dos dois estavam, de fato, serenos, mas a questão não eram os rostos...
-Já viram?... Agora vou recolher as fotografias.
Arnaldo só nos devassava parte do outro mundo em que vivia; mas as vezes não se continha e deixava transparecer o que não devia. Recolheu as fotos com suspiros de arrependimento.
-O pai certamente não é ele.- comentou-se na sua ausência.
-É o Petit...- anunciou ele um dia com o ar de desapontamento.
Conformado, prosseguiu:
-Depois dos exames da Lidoca, não ficaram mais dúvidas: Petit é o pai.
-Petit é a paixão do Caetano Veloso?...
-Não é que seja a paixão, Ana; ele inspirou as músicas “Menino do Rio” e “Leãozinho”.
Falando certa vez sobre a preferência sexual do Caetano Veloso, disse-me o Odilon, também funcionário do Bureau de Fretes e grande amigo do empresário Guilherme Araújo:
-Caetano Veloso tem a fama, sem tirar o proveito.
-Que proveito é esse, cara-pálida? - foi a minha pergunta que se calou, porque eu respeitava o seu caráter e comportamento discreto.
Nas poucas palavras que deixou escapar, em anos de convívio no trabalho, a sedução de um padre, no seminário, quando menino, o afastou das mulheres quando chegou à puberdade. História que guarda similitudes com a do cineasta Pedro Almodóvar. Mas deixemos o Odilon e prossigamos com o Arnaldo.
-Com dragão tatuado no braço, surfando todo o dia, como o Petit sustentará o filho? - quis saber a Glória.
-Mais uma razão para eu ser o pai; ou, então, o Gil.
-Gilberto Gil?...- fez uma cara de quem mastigara um pedaço de jiló a Ana Luiza.
-Lidoca prometeu que o padrinho seria eu; ela me vê todo o dia, praticamente.
-E você a ajuda, não é Arnaldo?... - interveio a Glória.
Os dias de sucesso do “Dancing Days” ficaram alguns anos para trás. O grupo praticamente se desfazia com a mudança do gosto popular. As vacas magras chegaram, menos, talvez, para uma delas que casara com o Chico Anísio.
-Se o pai fosse o Gilberto Gil, que deve ganhar um bom dinheiro com os shows...
Arnaldo não a deixou terminar.
-Isso não, Ana. A Lidoca é apaixonada pelo Gil sem essa história de ele ter ou não muito dinheiro. Ela não é fixada no vil metal.
-Não está mais aqui quem falou.
Apesar dessas palavras, estava ali, com a sua incômoda presença, quem falara.
O garoto nasceu, era um menino e conforme o prometido, Lidoca escolheu o Arnaldo como padrinho. Petit não largara a prancha para embalar o filho, muito menos para contrariar a escolha da Lidoca.
Passou um tempo e o pai do menino bateu com a cabeça no meio-fio depois de cair da motocicleta.
-Charles Brown, haverá um show para levantar recursos para o pagamento dos gastos do Petit no hospital, você pode me substituir amanhã aqui na CIPA? - pediu-me por telefone.
-Tudo bem, desde que você avise à Ana Luiza, pois o representante do Bureau de Fretes nessa Comissão, indicado por ela, é você.
Pelo jeito, não avisou, pois a dita-cuja me olhou atravessado por uma semana.
-Petit saiu do coma. - informou um dia o Arnaldo sem muito entusiasmo.
-Petit ficou meio abobalhado.- informou num outro dia com tristeza.
Duas ou três semanas depois, o telefone soou no Bureau de Fretes:
-Arnaldo não vem trabalhar, Petit se enforcou, e ele vai ao enterro.
No dia seguinte, Arnaldo narrou partes do enterro.
-Nunca senti tanto cheiro de maconha num cemitério. E os discursos à beira do túmulo... Um deles dizia entre uma e outra baforada no baseado: “Você foi um exemplo, bicho...”
Ninguém se lembrou de perguntar se a Lidoca levara o filho ao enterro do pai.
Anos depois, o próprio Arnaldo caía doente. Um dia, o telefone tocou.
-Casei com a Lidoca, mas avisei que a minha pensão era para ajudar no sustento do meu afilhado, e que se ela desviasse o dinheiro para outra coisa, eu viria do além-túmulo para lhe puxar o pé.
E riu melancolicamente.