Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de agosto de 2011

2001 - Ocaso do cantor

--------------------------------------------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 3831 Data: 17 de agosto de 2011

----------------------------------------------------------------------------------------------------

60ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

Sérgio Fortes não se conformava com o fato de o Mario Del Monaco não ter dedicado alguns parágrafos, na sua autobiografia, às verdadeiras joias da Gabriella Besanzoni.

-É verdade, Del Monaco, que a mansão onde vivia a Gabriella Bensanzoni, hoje o Parque Lage, era extensa, mas, ainda assim, os Isotta- Fraschini dela ficavam à vista, pois não era um, nem dois, havia mais.

-Sim, o marido dela era armador; tinha uma fortuna.

-Quando Henrique Lage morreu, o presidente do Brasil, Getúlio Varfas, não permitiu que ela, uma estrangeira, herdasse os bens do industrial brasileiro, assim, a Navegação Costeira foi encampada pelo estado...

-E aquela mansão se transformou em parque, pelo que vocês já disseram. - interrompeu-me o tenor.

-Na semana em que você morreu, Mário Del Monaco, o programa “Ópera Completa”, de domingo, da Rádio MEC, agendou, em sua homenagem, o “Otelo”, de Verdi. Eu até me atrasei para chegar ao aniversário da minha sobrinha, porque tinha de ouvi-lo até a última nota emitida por você.

-Gracias.

-A sua voz fenomenal enriqueceu a arte da música; a sua e a de Beniamino Gigli, para citar duas. - manifestou-se o Sérgio Fortes.

-A voz do Gigli soava como um violino, a minha, como uma trombeta.

-O Sérgio Fortes, numa época da vida dele, pensou em ser tenor. - revelei.

-E por que não pisou os palcos dos grandes teatros do mundo?... Seu pai foi um barítono como poucos.

-Justamente meu pai, ao saber da minha pretensão, colocou a minha voz sob rigoroso teste; tive de emitir notas dificílimas... Minha garganta foi submetida a um sacrifício tão grande que, no dia seguinte, eu não conseguia falar. Desisti, então, de ser cantor.

-Eu atravessei mil dificuldades, no início, até encontrar a minha verdadeira voz.

-Del Monaco, eu já ouvi uma gravação em que você cantava no registro de baixo.

Ele sorriu às minhas palavras, e acrescentou:

-No registro de barítono, cantei inúmeras vezes. Apresentei-me em várias récitas de “Os Palhaços” de Leoncavallo, cantando o Prólogo, como barítono, evidentemente, e, depois, como Canio, o tenor.

-Como dizia o meu amigo Zé Maria, que assistiu a uma dessas suas apresentações: “Uma façanha!” - aparteou o Sérgio Fortes.

-Apesar da sua voz heroica, não me desagradava ouvi-lo nas óperas de Puccini. - manifestei-me.

-Puccini sofreu um grave acidente de carro em 1903; quebrou a perna e ficou meses numa cadeira de rodas.

-Não perdeu a inspiração com o acidente. - comentou o tenor depois dessas palavras do Sérgio Fortes.

-E os grandes artistas da ópera da sua época, Del Monaco? - perguntei-lhe.

-Ramon Vinay? - especificou o Sérgio Fortes.

-O tenor Ramon Vinay era um grande senhor do palco e da vida. Cuidava da indumentária com uma atenção minuciosa. Era inteligentíssimo e versátil. Lembro-me que em Dallas e em Nice interpretou o papel de Iago como barítono, enquanto eu fazia a parte de Otelo. Considerava-se um estudioso da ópera e foi um dos poucos estrangeiros capazes de aventurar-se no alemão, em Bayreuth, onde cantou o Tristão e Isolda na língua de Wagner.

-E Richard Tucker?- prosseguiu o Sérgio Fortes.

-Tucker era um judeu americano, gorducho, pequeno, de aspecto um pouco engraçado, mas era um cantor muito musical, de voz extremamente fácil, que se estendia por um vastíssimo repertório. Possuía uma técnica muito segura, que nunca lhe permitia comprometer uma récita. Na época da minha chegada a Nova York, era o primeiro tenor lírico do Metropolitan Opera House.

Entusiamado com a recordações, Del Monaco prosseguiu:

-Não posso esquecer-me, tampouco, de citar alguns entre os maiores colegas italianos da minha época; Gino Bechi, por exemplo, um artista especial, mestre do bel canto e da cena; Tito Gobbi, o insuperável Iago, refinado cantor-ator; Cesare Siepi, com uma esplêndida voz. E, com muita saudade, Ettore Bastianini, uma das mais belas vozes de barítono desse pedaço de século, um raro exemplo de dicção e de bel-canto, revelados através de uma voz de excepcional beleza.

As lembranças também afloraram em mim, e eu o interrompi.

-Você falou no Cesare Siepi... Ouvi, pela Rádio Ministério da Educação e Cultura, o Mefistófeles, de Arrigo Boito, que ele cantou aqui, no Teatro Municipal, no início da década de 60. A ária da Margarida, L' altra notte in fondo al mare, no terceiro ato, foi cantada de modo tão sublime pela Magda Olivero, que a plateia foi levada ao delírio. Todos nós estávamos maravilhados. Cesare Siepi, enciumado, arrumou as malas e abandonou a temporada lírica no meio.

Sérgio Fortes não perdeu a piada, relacionando a voz da magnífica soprano com as agências de turismo, enquanto Del Monaco continuava na apreciação do desempenho dos seus colegas.

-Na Aída regida por Cleva, cantou comigo, naquela abertura da temporada do Met de 1951, Zinca Milanov. Uma cantora clássica, do estilo do século passado, gorda como uma beldade barroca. Era a típica prima-donna que fazia questão de manter a sua posição e que não aceitava nem conselhos nem interferências. Aborrecia-se se alguém obtinha mais sucesso do que ela. Naqueles anos, antes da aparição de Callas e da Tebaldi, era a primeira diva absoluta do Met.

-E Maria Callas?

A pergunta da Sérgio Fortes provocou uma pausa apreensiva, pois ela passou pelos maiores palcos do mundo como uma força da natureza.

-Conheci-a em Roma, logo que chegou da América, em casa do maestro Tulio Serafin, e lembro-me de que a ouvi em alguns trechos da Turandot. Tive dela uma impressão não muito positiva. Claro, a recém-chegada tinha muita facilidade vocal, mas a sua gama musical não me parecia homogênea. O centro e os graves eram vagamente guturais e os superagudos ligeiramente oscilantes. Mas com o passar dos anos, Maria Callas soube transformar aqueles defeitos em qualidades. Tornaram-se parte integrante da sua personsalidade artística e, de certa forma, aumentaram a sua originalidade de intérprete. Maria Callas foi capaz de impor o seu estilo.

-Vocês se estranharam numa récita da Norma no Scala de Milão...- provoquei.

Ela me chamou de “histérico”, e eu repliquei com “louca furiosa”, depois de um duelo de superagudos, que agradou o público, mas deixou o maestro Antonino Votto irritado.

Como eu lera as memórias do tenor, traduzido pela sua amiga brasileira, Ilza Correa, fui adiante:

-Não ficou só nisso...

-Ela continuou agressiva, e eu, então, lhe disse: “Vê se te acalmas que daqui a pouco chega a Tebaldi e te bota no teu lugar”; ela desferiu, em represália, um pontapé, mas não me atingiu.

-Del Monaco, e as suas últimas apresentações no Brasil? - quis saber o Sérgio Fortes.

-Eu vim para uma turnê com o San Carlo de Nápoles. Cantei no Rio de Janeiro e aluguei um carro para ir a São Paulo, onde me apresentaria. Rina, a minha mulher, dirigia. Ela esqueceu, infelizmente, a carteira internacional. Na estrada, fomos parados duas vezes em pontos de inspeção policial. Havia policiais por todo canto, porque o embaixador americano fora sequestrado. Na terceira parada, a coisa complicou, além do problema com a carteira de motorista da Rina, cismaram que eu era subversivo. Como eles não aceitavam a minha argumentação, soltei a voz. Cantei o Sole mio a plenos pulmões. Eles se convenceram que eu não era subversivo e nos deixaram seguir viagem.

-Eles sabiam que nenhum subversivo brasileiro aprendeu a cantar. - não perdeu a piada o Sérgio Fortes.

-Parece que o grande tenor Lauro Volpi, que escreveu “Vozes Paralelas” está chegando.- disse Del Monaco, volatizando-se à nossa frente.

Com a saída do grande artista, a palavra passou para o Sérgio Fortes. Em oposição ao “Prólogo” de “I Pagliacci”, ele era o “epílogo”:


-Fiquei em êxtase com essa visita nas edições do Biscoito Molhado. Misturado com meu ídolo maior Mario Del Monaco! A mais impressionante voz de tenor do século XX !

Quando Del Monaco cantou pela primeira vez no Municipal do Rio o tamanho de sua voz deixou a platéia atordoada. Se não me engano foi numa Aída.

No início dos anos 50 cantou um memorável Guarany com o velho. Que sempre repetia que passara tres dias com o ouvido zumbindo depois de ter seus ouvidos inflamados durante mais de duas horas por aquele vozeirão descomunal. Já no final da carreira de Del Monaco, os dois voltaram a se encontrar no Teatro Massimo De Palermo. Papai cantaria um Guarany com o elenco do Municipal de São Paulo. Sabendo que Del Monaco participava daquela temporada, fêz um enorme esforço para chegar ao Teatro a tempo de assistir a última apresentação do grande Mario em " I Pagliacci". Claro que Del Monaco, com muita idade, era uma sombra do fenômeno vocal que assombrara o mundo nas décadas de 50, 60 e 70. Terminado o espetáculo, Paulo Fortes invade o camarim do amigo. Cogita abraça-lo com todo vigor. Mas é contido por um gesto do tenor. Antes do abraço impõe-se indagar do amigo Fortes: " Comme stai il Vecchio Leone ? ". A resposta de Paulo Fortes não podia ser outra: "Magnífico ! " " Insuperável ! " Melhor do que nunca ! " . Obtida a resposta, Del Monaco finalmente abraça o amigo. Exclamando a plenos pulmões: "Mentiroso filho da puta !!! "


Nenhum comentário:

Postar um comentário