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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3842 Data: 6 de setembro de 2011
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62ª VISITA DE ESCRITORES À MINHA CASA
-Há semelhanças, Simonsen, entre a sua trajetória e a de seu tio, Eugênio Gudin. Ele era engenheiro, mas tornou-se o decano dos economistas brasileiros e foi Ministro da Fazenda.
-Meu tio Eugênio chegou aos cem anos, bebia vinho e praticava algumas corridas, muitos anos antes de o Kenneth Cooper divulgar os seus benefícios para a saúde.
-Ele viveu trinta e sete anos a mais do que você.
-Calculei o número de cigarros que fumei, 800 mil, mas não tive variáveis para descobrir quantos baldes de uísque bebi. Fumava a toda hora, mas beber tinha limites; eu não admitia álcool na hora de meus trabalhos acadêmicos, escrevendo ou ensinando. Para não colocar um cigarro nas mãos, passei a andar com uma batuta de maestro, mas já era tarde.
-Eugênio Gudin afirmava que as duas maiores vergonhas do Brasil eram Brasília e o Lloyd Brasileiro.
-Brasília sugou um Everest de dinheiro do Brasil e não produziu um alfinete. O Lloyd Brasileiro apresentou um buraco tamanho, que não houve jeito de tapá-lo para, em seguida, privatizá-lo.
-Aqueles que não enxergavam o óbvio culparam os interesses internacionais pela liquidação do Lloyd Brasileiro.
-Ah, essa turma de nacionalistas!... - respirou ruidosamente.
-Eles criaram um personagem, o Brasilino, lembra-se?... “Brasilino acorda cedo, ainda escuro, e acende a luz da Light, que é canadense, barbeia-se com uma lâmina Gillette, americana, escova os dentes com creme dental Colgate e se ensaboa com Palmolive, tudo dos Estados Unidos...”
-Eu transcrevi isso num livro de coletânea de artigos meus para a imprensa.
-Eu li, Simonsen.
-Mas o que eles queriam?... Queriam que o Brasilino acordasse e acendesse uma vela e se barbeasse com um caco de vidro?...
-Também li sua resposta.
E continuei:
-Eu assisti à sua polêmica, na televisão, sobre a conjuntura econômica, com a Maria da Conceição Tavares.
-Que polêmica?!... Ela monopolizou a palavra e não me deixou dizer uma letra, quanto mais uma frase. Ela falava aos borbotões.
-Eu me lembro do seu olhar desesperado para o mediador do debate, mas nem ele conseguiu uma brecha na garrulice da economista portuguesa. - recordei com um sorriso.
-Ela foi aluna de Economia do Roberto Campos, mas nem preciso dizer que não seguiu o mestre. - riu.
-Era uma intelectual passional, se podemos conciliar a razão com os arroubos apaixonados e isso a levou à cadeia no regime militar. Você lutou para que ela fosse libertada e teve êxito.
- Era uma colega. Nossas ideias eram diferentes, mas nosso objetivo foi o mesmo: o melhor para o Brasil. Maria da Conceição Tavares na cadeia era um absurdo.
-Ela dizia: “o Mário é ético, o Delfim, não.” - recordei.
-O Delfim... - repetiu com a expressão enigmática.
-Se você tivesse vivido tanto quanto seu tio teria visto os admiradores da Maria da Conceição Tavares se aliarem ao ex-czar da Economia, mas ela não – manteve sempre a honestidade.
-Coerência.
-Eu ratifico: honestidade.
-Eu e Conceição tínhamos algumas coisas em comum: a formação dela era a Matemática.
-A facção malfeitora da esquerda intentou conspurcar sua memória, falando de uma pretensão sua em anexar o AI-5 à Constituição do Brasil. Jornalistas, como Elio Gaspari e a ensaísta e pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda entraram em ação e neutralizaram essa vilania.
-No plebiscito de 1993, eu apoiei a monarquia parlamentarista.
-Lembro-me de vê-lo no horário eleitoral, Simonsen, exercendo esse apoio. Dom Pedro II bem que tentou trazer Wagner, com Tristão e Isolda, para o Brasil.
-Em meus últimos anos de vida, eu estava voltado quase que inteiramente para a música.
-Fechava-se o ciclo: dedicou o seu tempo a ela dos doze aos dezoito anos e, dos cinquenta ao sessenta e três anos, retornou.
-Presidi júri de festival de canto, escrevi críticas de discos clássicos e récitas de óperas e concertos no Teatro Municipal... Da música, só me vinham prazeres, diferentemente da política, que me trouxe dissabores.
-Eu li uma entrevista sua, em 1985, em que você revelava que tinha uns cinco mil discos LP.
-Sim, e a minha caixa de som era comparável à das boates que juntavam a juventude do rock. O maestro Sergiu Celibidache não gostava de gravar porque a reprodução em disco achataria o som, porém minha aparelhagem amenizava esse problema.
-A música só lhe deu prazeres?
-Divertimentos, também. Certa vez, em Bayreuth, o baixo Manfred Jüngwirt desafinou e foi vaiado, o diretor Wieland Wagner subiu ao palco para explicar que o baixo estava resfriado e também foi apupado. O maestro húngaro Georg Solti se atrapalhou com a partitura e o público não quis saber do seu talento, vaiou-o impiedosamente.
-O diretor que você citou, bisneto do compositor, esteve aqui em 1981, no Teatro Municipal, numa récita do “Tristão e Isolda”.
-Eu estava lá.
-Eu sei, Simonsen. Vi-o fora e dentro do teatro. Depois, li sua crítica na revista VEJA.
-Quando aquele doido apareceu para dirigir “O Navio Fantasma”, a minha saudade por Wieland Wagner apertou...
-E você não viu o que ele fez com “Tristão e Isolda”, em 2003. Mas deixemos para lá o Gerald Thomas!...
-Eu cantava trechos do Wotan e do Alberich de “O Anel dos Nibelungos”.
-Você, então, não cantava apenas as óperas italianas?!... - surpreendi-me.
-Eu também entoava trechos de Wagner, embora tivesse que olhar antes a partitura.
-Quais as óperas da sua predileção?
-”Don Giovanni”, de Mozart; “Otello”, de Verdi; e “Tristão e Isolda”, de Wagner. Sobre Mozart, considero-o o mais completo dos compositores, embora só tenha vivido trinta e cinco anos.
-Mozart chegou pronto, como músico, ao nosso mundo. - frisei.
-Assisti ao premiado filme “Amadeus”, em Bruxelas, antes de ele ser lançado no Brasil. Não é uma biografia e sim o retrato de Mozart, fornecido pela mente atormentada de um ancião.
-Nós sabemos que Salieri deu aulas a Beethoven, a Schubert e até ao filho de Mozart, além de ter sido um compositor de talento. Teatralizaram as vidas deles no teatro e, depois, no cinema.
-O mérito do filme é divulgar Mozart.
-Quais os melhores compositores para você?
-Bach, Mozart, Beethoven e Wagner, nessa ordem.
-E o maior tenor das últimas décadas?
-Em 1985, eu disse, numa entrevista, que a voz de Pavarotti se estrangulara. O maior tenor do mundo era Placido Domingo.
-Consideraram, recentemente, Placido Domingo o maior de todos os tenores. Ele mesmo protestou, citando Caruso.
-Placido é um gentleman. Eu me avistava com ele sempre que podia.
-Em suas andanças pelo exterior, atrás da boa música, o que o deixou mais extasiado?
-Foi um Festival, em Salzburg, onde assisti “As Bodas de Fígaro”, de Mozart, regida por Karl Böhm, “Boris Gudunov”, de Mussorgski, e “Parsifal”, de Wagner”, óperas regidas por Herbert von Karajan. Pérolas autênticas.
-Herbert von Karajan era seu maestro preferido, não é?
-Sim, Karajan era o regente mais completo, mas ralentava os andamentos nas óperas italianas, quando o certo é a vivacidade que Arturo Toscanini imprimia. Georg Solti era um maestro excelente, mas carente de ternura. Leopold Stokowski foi um regente de Hollywood, bom para a “Fantasia”, de Walt Disney.
-E o James Levine, do Metropolitan Opera House de Nova York?
-Ele era ainda jovem em meu tempo de crítico, mas sua regência da Sétima Sinfonia de Beethoven era simplesmente admirável.
-Parece que chega outra visita. - disse, depois de uma pausa.
E prosseguiu:
-Vou-me, porque meu tio Eugênio Gudin sempre me dá uma bronca, quando me vê, por eu ter encurtado a minha vida com tantos cigarros.
Foi-se, enquanto ficava no ar o allegretto, da Sétima Sinfonia, de Beethoven.
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