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segunda-feira, 30 de abril de 2012

2138 - o tic-tac sem canto


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3938                                          24 de abril de 2012
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O RELÓGIO

Quando eu me preparava para os concursos de admissão numa escola ginasial do governo, ganhei, de meu pai, um relógio de pulso. Fiquei encantado; ele era encorpado, tinha um fundo negro com ponteiros das horas e dos segundos de cor azul fosforescente. Era também o meu aguardado primeiro presente de homenzinho, de quem começaria a lidar com os seus compromissos.
Coloquei-o no pulso, ajustando bem as tiras escuras e só o tirava na hora de tomar banho e dormir. Antes, fui orientado pela minha mãe:
-Coloque-o no pulso esquerdo.
Por que tem de ser o pulso esquerdo? Eis uma pergunta que só fiz algumas décadas depois. Em 1960, era um dogma para mim os relógios no pulso esquerdo. Hoje, recebo textos de neuróbica – o exercício que ativa os neurônios depois, ou antes, de a aeróbica cuidar do sistema cardiovascular – que preconiza o uso do relógio também no pulso direito. Como adquiri a minha precisão britânica (*) usando o relógio presenteado pelo meu pai do lado esquerdo, não traio meus princípios.
No Visconde de Cairu, desfilava com ele orgulhosamente, mas não o exaltava. Para quê? Ele brilhava por si próprio, as palavras nada acrescentariam, além de eu não ser dado à verbosidade. Dei sorte, pois entrei no Visconde de Cairu justamente no ano em que deixou de ser colégio municipal e passou a ser estadual, ou seja, as camisas não eram mais de mangas compridas. O que tem o relógio com a camisa? - perguntarão, imagino, um e outro leitores do Biscoito Molhado. Explico: com a manga curta, não havia risco de o meu relógio ficar oculto por um pedaço de pano em momento algum.
Nas práticas de Educação Física (lembro-me que havia uma aula nas tardes de sábado), sempre que possível, eu não me desfazia do meu suíço... digo, do meu brasileiro, não alterarei a sua nacionalidade para valorizá-lo. (Aprenderia mais tarde, em Economia, que o bem de estimação não tem preço como os outros bens, com exceção do bem livre, como o ar).
No início da ginástica, éramos levados para um gigantesco banheiro coletivo e lá, tínhamos de nos despir dos nossos uniformes para calçar tênis e pôr meia, calção e camiseta regata. Eu não trocava de roupa totalmente porque o relógio, insisto, permanecia grudado em mim.
Certa vez, julgando-me já vestido para a aula de Educação Física, fui advertido pelo professor:
-Tire o relógio, porque hoje vocês vão subir na corda.
Como a advertência não foi só dirigida a mim, eu me conformei, e também deduzi que caso houvesse um gatuno na escola, ele teria várias opções de relógio. Aqui vai um parêntese: só muitos anos depois eu assistiria aos filmes de François Truffaut sobre crianças na fase escolar.
Maldita corda! Eram várias, elas caíam do teto do ginásio como se fossem serpentinas de um salão de baile carnavalesco. Nós tínhamos de escalá-la até uma altura exagerada para nós, meninos de 12 e 13 anos, para, em seguida, descer. O professor nos ensinou o que chamou de truque para subir na corda: apertar um ponto da corda com as plantas dos pés, obtendo um apoio, e, assim, impulsionar o corpo para cima, repetindo, em seguida, tudo de novo. Que sacrifício! Mil vezes as flexões de braço, os pulinhos de galo, os cangurus e todo o jardim zoológico.
O professor não nos avisou que deveríamos descer vagarosamente, omissão imperdoável. Assim, quando cheguei lá em cima, afrouxei as mãos agarradas na corda e desci celeremente, resultado: fiquei com as minhas patas esfoladas a ponto de sangrar. Coloquei em dúvida, a partir daquele momento, o velho truísmo que diz que para baixo todos os santos ajudam.
De volta ao vestiário, consolei-me quando vi que o meu relógio, enfiado por dentro do sapato e protegido por duas meias, estava são e salvo. Não esqueci, porém, a ardência que a água fria do banho provocou em contato com a carne viva das minhas mãos.
Nas aulas do professor Admilton Chirol (**), técnico que antecedeu o Zagalo nesse cargo no Botafogo, seis anos depois, eu também tinha de me separar do relógio, pois ele insistia em formar times de rúgbi, entre seus alunos.
Mas não foi numa aula de Educação Física em que o meu relógio me deixou constrangido, Para ser fiel aos fatos, nem me recordo em que aula isso ocorreu, se foi de história, francês, matemática, desenho, artes manuais... Sei apenas que todos estavam devidamente uniformizados na sala de aula, quando o extraordinário aconteceu: todos, sem exceção, fizeram silêncio para ouvir a professora. Ouvia-se apenas o voo de uma mosca... e o tic-tac do meu relógio.
-O que é isso?... O Carlos tem um despertador de pulso. - apontou-me um perverso colega.
Logo, choveram as piadas:
-O seu relógio é mais barulhento do que a bateria da Mangueira.
Outro piadista foi mais imaginativo:
-Você não pode passar perto de um hospital, que exige silêncio, com esse relógio.
-Fiquem quietos. - reagi.
-Se ficarmos quietos, vamos ficar surdos com esse tic-tac. - devolveram.
Apesar dos exageros, eles não estavam errados: o silêncio denunciava os estrondosos tic-tac que saíam dos mecanismos do presente que meu pai me dera no ano anterior. Eu estava tão fascinado pelo mimo que, até então, não notei que ele podia chamar a atenção de uma maneira desagradável. Isso, porém, não me afastou dele; não o arranquei do pulso e, nas vezes que um colega vinha com gozações, eu não me portava como a planta sensitiva-pudica, defendia o meu relógio com rispidez ou indiferença.
Risco de vida o meu relógio passou mesmo quando caí do estribo do bonde. Era uma questão de masculinidade os alunos do Visconde de Cairu saltarem do bonde andando quando ele fazia a curva da rua Arquias Cordeiro para entrar na rua Carolina Meyer.  Filhinho de mamãe, apenas no mês de setembro de 1961 obtive liberdade para ir sozinho à escola. Assim, pensei em me mostrar mais adulto e, em vez de sair do bonde de maneira segura no ponto defronte do Cine Paratodos, resolvi encurtar o caminho, saltando na mencionada curva. Foi um desastre: caí no asfalto, e a minha pasta de livros, cadernos e caneta Compactor, despencou a uns cinco metros de mim. Enquanto eu pegava a minha pasta, um rapaz me socorria.
-Você deu sorte; não se machucou, o relógio não quebrou....
Sim, o relógio não se quebrou; mas a sua decadência física começou muito cedo. Deu para atrasar, o que me levou a chegar atrasado nas sessões das 3 horas da tarde no Cine Cachambi. Eu já não confiava nele como antes. Depois, o vidro caiu; desprotegidos os ponteiros, um deles entortou quando eu esbarrei em alguma coisa que não soube identificar.
Chegara o momento de eu me despedir do meu relógio como o filósofo Colline se despediu do seu capote na ópera La Boheme, e eu cumpri a minha dolorosa missão. Pena que a minha voz não estivesse à altura do momento.

  (*) Há controvérsias. Precisão, britânica ou de qualquer origem, é chegar na hora. Normalmente o Sr. Biscoito chega antes da hora.

(**) Não há dúvida de que o redator sabe do que está falando. Entretanto, o Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, procurou, em vão, na internet a relação de parentesco entre Admildo Chirol e Admilton Idem. Crê o distribuidor em questão que são irmãos, pois embora ambos sejam falecidos não deixaram o parentesco e sim o mundo. Fica a curiosidade sobre a imaginação pouco criativa da cabeça do casal que gerou esta dupla, se realmente forem irmãos. Nada disso, um atento leitor e torcedor da malfadada estrela solitária esclareceu: o irmão de Admildo Chirol é Achilles Chirol. Portanto, o Biscoito Molhado delirou quando gerou esse Admilton.



sexta-feira, 27 de abril de 2012

2136 - sueco tropicalista


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3936                                         Data: 22 de abril de 2012
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MAJORARAM O TAXÍMETRO

Pensava em Ingmar Bergman.
Fiquei por mais de vinte anos sem assistir aos seus filmes. Agora, o canal a cabo Telecine Cult anunciava um festival com as obras do celebrado cineasta sueco. Será que os seus filmes envelheceram? - perguntei-me. Só vendo, para obter uma resposta e não era só isso: eu estou bem mais escarmentado, hoje, para analisar do que no início dos anos 70.
Assim, revi “Persona” e “Sétimo Selo” e fiquei encantado. Obras que se aprofundam na natureza humana nunca ficam datadas, haja vista as peças de Shakespeare, que sempre estão em cartaz.
Quando o Telecine Cult anunciou “Gritos e Sussurros”, a minha reação foi indecisa: passo por essa experiência de novo, ou não?... Explico-me: lá pelo ano 1972/1973, a fita foi para a tela do extinto cinema Para Todos, no Méier. Sabendo que eu vira o filme, minha irmã, que pretendia ir com meu cunhado ao cinema, pediu a minha opinião sobre a fita do Para Todos.  Ora, eu não me desfazia da minha pose de intelectual nem quando tomava banho e, por isso, afirmei que “Gritos e Sussurros” não deviam ser perdidos por ninguém. Dias depois, eu me arrependia da minha sugestão ouvindo os seus comentários:
-Enquanto ela sofria com a dor do câncer, urrando desesperadamente, eu arranhava os braços do Julinho de agonia.
-São cenas fortes. - limitei-me a dizer.
Minha irmã prosseguiu:
-Eu pedia ao Julinho para sair no meio do filme, mas ele dizia que, quando paga por alguma coisa, só sai no fim. Saiu, mas todo arranhado.
Eu não me mostrei frágil, mas em “Gritos e Sussurros” se encontra, para mim, uma das cenas mais fortes da história do cinema, aquela em que uma das três irmãs, Karin, não suportando as mentiras do seu relacionamento conjugal, enfia na vagina um caco de uma taça de vinho, que se estilhaçara no jantar, e aguarda o marido para mais uma relação sexual. Eu não tinha, no cinema, ninguém para arranhar, nesse momento, mas quase despreguei a cadeira  do chão,  com o impacto da cena.
Agora, com o Telecine Cult programando “Gritos e Sussurros”, titubeei, mas decidi revê-lo por causa da “Mazurca opus 17 n° 4, de Chopin”. Não sei se era a fotografia espetacular do filme, o clima angustiante das três irmãs, Agnes, Maria e Karin, e a generosidade da criada Anna, que fazia com que essa joia de Chopin, nos dedos de Vladimir Horowitz, brilhasse com um fulgor inesquecível.
Depois de revisitar essa fita de Bergman, constatei que estivera diante de uma obra cuja intensidade só foi alcançada pelos grandes nomes da arte universal.
Por que pensei isso tudo? - Porque o motorista do táxi em que entrei, um desconhecido, só falou uma coisa: o preço da corrida.
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No dia subsequente, a corrida para a minha casa ocorrei no táxi do Flamenguista.
-E o metrô? Pego uns passageiros que reclamam muito das viagens do metrô.
-Eu antecipo em uma hora ida e volta do trabalho, para evitar a espremedura desumana nos vagões, que eles chamam de carro, mas, às vezes, inutilmente; basta o intervalo entre um trem e outro subir de quatro para oito minutos para os passageiros virarem sardinha em lata.
-Então, está a mesma coisa. - concluiu.
-A mesma coisa, não; por exemplo, ouvia-se música clássica nas estações, hoje, não se escuta mais nada. É verdade que, durante meses, tocava-se apenas trechos da Sinfonia de Mahler, creio que era o único disco deles.
-Além dos cabos de cobre, roubaram o disco. - comentou com uma risada o Flamenguista.
-Antes, mal a composição do metrô parava numa estação concorrida, como a da Carioca, o maquinista tocava a sirene de fechamento das portas, provocando atropelos no fluxo de entrada e saída de passageiros dos vagões.
-Um total desrespeito. - meneou a cabeça negativamente.
-Transportavam seres humanos como se fossem gado. Parece que essa página negra da história do metrô foi definitivamente virada.
-Eles prometem trens novos vindos da China que nunca chegam. - interveio.
-Desde 2010, que escuto que vai melhorar porque vêm os trens chineses e nada. Noticiaram, esta semana, que chegaram dezenove trens no porto do Rio de Janeiro.
-Chegaram mesmo? - duvidou.
-Quando desembarcaram o trem coreano para a SuperVia, em 2007, um colega meu, de trabalho, pegou o waiver dessa carga.
Antes de ele me pedir explicações, fui didático:
-Existe obrigatoriedade de embarcações de bandeira brasileira no transporte dessas cargas, mas como não há, muitas vezes, navios nacionais em posição, pede-se waiver, permissão para o embarque em outra bandeira, Nesse caso do trem coreano da SuperVia, falei com o meu amigo para liberar logo, pois a torcida do Botafogo precisava ir ao Engenhão.
-Quando os trens chineses rodarão no metrô?
-Em agosto.
-Em agosto de 2013. - entremeou as suas palavras com uma gargalhada, enquanto me deixava na Rua Modigliani.
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-Vou para Ipanema. - anunciou o 118 aos seus colegas, quando percebeu que eu entraria no seu táxi.
Pensamentos passaram celeremente pela minha cabeça. Será que ele é abusado?... Certa vez, passou o braço pelo meu ombro, quando eu ainda estava atravessando a Rua Domingo de Magalhães e me perguntou se o meu bolso estava abarrotado de dinheiro. Eu tinha de estar com muito dinheiro, segundo ele, porque o táxi aumentou. Soube, depois, que majoraram o taxímetro em alguns centavos.
Agora, mal ele acionou a primeira marcha, eu anunciei:
-Barão da Torre.
A gargalhada que ele soltou mostrou que o espírito dele era de galhofeiro, não de debochado. Assim, a corrida transcorreu saudavelmente.
-Você viu o cartaz no portão daquela casa lá de trás?
-Não; tenho de atualizar meu exame de vista.
-Dizia o cartaz: “Esqueça o cão, cuidado com a dona.” Nessa casa, mora minha ex-mulher.
E soltou uma gargalhada de provocar abalos na barriga de 9 graus na escala Richter.
-Sua ex-mulher mora ali, mesmo?- perguntei angelicamente.
-Não, é uma piada do José Simão. Eu costumo escutar o programa da Jovem Pan, quando ele comenta o nosso dia a dia.
-Você não acha que a frase ficaria melhor assim: “Esqueça o Pit Bull, cuidado com a dona.” - propus.
-Então, a dona tem de ser a Dilma.
E soltou outra estrondosa gargalhada.



quinta-feira, 26 de abril de 2012

2137 - desconhecido é sua avó torta


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3937                                              Data: 23 de abril de 2012
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LUCA

Meu primeiro contato mais próximo com o Luca se deu em 1970, antes da Copa do Mundo. Ele me levava no carro, com meu pai no banco da frente, a um consultório médico, quando comentou, antes de passar para o outro lado do Méier:
-Seu Amaury, este viaduto se chamaria Agripino Grieco, mas ele disse que, enquanto fosse vivo, ninguém passaria por cima dele.
-Enfim, alguém que se interessa por livros. - pensei, no banco traseiro.
Eu acompanhara, anos atrás, o suplemento literário do Diário de Notícias que dedicou várias páginas à efeméride que foi a comemoração dos 80 anos do implacável crítico literário. Na entrevista que concedeu, na ocasião, diverti-me muito com as suas ironias e discordei da sua implicância com o grande Machado de Assis. (*)
Ouvi o Luca, naquela ida ao edifício Mesbla da Rua Dias da Cruz e sabia que Castro Alves, o nome do viaduto, era uma indicação do Agripino Grieco, poeta da sua admiração, mas não me manifestei, talvez por timidez.
Quando nos mudamos da Rua São Gabriel para a Rua Chaves Pinheiro, em 1965, o nome Luca já repercutia lá por casa, isso porque, por volta da meia-noite, fomos acordados por um verdadeiro tropel. Um sujeito o acertara com uma paulada, houve a perseguição, com várias pessoas envolvidas, até que a voz trovejante de um senhor se impôs, enquanto o agressor, encurralado, tremia.
-Em que lugar eu vim morar... - lamentou o meu pai.
De 1970 ao final dos anos 80, eu via o Luca praticamente todos os dias, se não era ele que eu via, era o seu fusquinha de placa SW 3200, estacionado na casa em que moraram pais e irmãos da sua mulher.
Residindo eu na Avenida Suburbana, até 1990, o convívio não se rompeu porque ele e o Vagner administravam uma loteria esportiva na vizinhança.
Depois que fui morar em  Del Castilho, a presença do Luca se espaçou por semanas, até por meses. Um domingo e outro ele cruzou comigo no seu inseparável fusquinha SW 3200, mas justamente no momento em que eu me exercitava com uma disciplina castrense, assim não trocávamos duas ou três frases.
Eis que, depois de um pôr de sol de domingo, sou surpreendido por um telefonema.
-Carlinhos, o Arthur da Távora conhece mesmo música clássica?
Ele assistira ao programa da TV Senado em que se apresentou a violinista Sara Shang, com os comentários do ex-senador citado.
-Luca, ele é um excelente educador, mas, em matéria de música clássica, é um apreciador como eu. Conhece apenas superficialmente melodia, harmonia, ritmo, contraponto, polifonia e outros componentes de uma estrutura musical erudita. Usando uma imagem de Balzac: somos como as mariposas que rodeiam a luz sem conseguir penetrá-la.
A conversa se estendeu até o virtuosismo da Sara Shang que, muito novinha, tocara no Rio de Janeiro, na ECO 92, apresentada pelo Placido Domingo e o Jerome Irons, até que eu me lembrei do que a minha mãe me informara poucos dias antes.
-Luca, minha mãe me falou que o seu aniversário de 60 anos será no clube Pingo de Mel e que a Glória (sua esposa) nos convidou. Nós iremos, pois estou no rodízio de fim de ano no trabalho.
Por causa das minhas palavras acima, houve quem dissesse que eu contribuí para o vazamento da festa-surpresa, mas isso não aconteceu. Aconteceram, na verdade, tantas surpresas, que a própria promotora da festa, a Glória, se surpreendeu em  muitos momentos.
A festividade reuniu quase todos os amigos do aniversariante, recentes e remotos, vizinhos e distantes, esquerdistas e direitistas.
No final da comemoração, cada convidado recebeu um “kit-Luca”, ou “Kit-Bigode” (como ele é conhecido pelos colegas do Unibanco), que era um texto redigido pelo seu cunhado Reinaldo, envolto numa pasta amarela. O título, tirado da revista Seleções, “Meu Personagem Inesquecível”, já era uma provocação ao passado de leitor do Pasquim e Voz Operária do Luca.
Na epígrafe, seu cunhado citou uma frase de Gabriel Garcia Marquez, sem, contudo, dar crédito ao autor:
“A vida não é o que se viveu e sim o que a gente recorda e como recorda para contá-la.”
Em seguida, uma inspirada gravura onde se via CINE BIGODE e o nome do filme em cartaz: “60 ANOS ESTA NOITE” e  abaixo: 21.12.2004.  O título saiu da cabeça da sua sobrinha Tereza Luz, que parodiou o cineasta Louis Malle, mas como o Gabriel Garcia Marquez, também não recebeu o crédito.
Reinaldo citou então os inúmeros apelidos que o Luca ganhou pelos diversos lugares em que transitou, inclusive o “Perê” – sem aludir ao sábio Padre Perereca do Brasil dos séculos XVIII e XIX – e se fixou nos seus ídolos:
-“Para ele, Chico Buarque é a perfeição. É o seu alter-ego. Mas é o tal negócio.
Diz que é fã da Emilinha/
Não sai do César de Alencar/
Grita o nome do Chico e do Caubi
Mas é com o Caetano que mais parece se identificar.”

Em seguida, a afirmação é justificada com as palavras que seguem:
-”É que ele, como o Caetano, adora polemizar, eles são do contraditório. E só pra confirmar a regra, ele vai questionar veementemente esse meu comentário sobre o Caetano e tudo que for dito por mim, como também os demais depoimentos dos amigos...”
Sobre o Luca mesatenista, Reinaldo escreveu:
“No ping-pong, sua melhor fase foi quando estudava no colégio interno e jogava com raquete de compensado e rede de ripa de madeira. Agora, depois que se “profissionalizou”, perdeu um pouco o encanto, o estilo de show-man que encantava as namoradas na Chaves Pinheiro.”
“Atualmente, seu ping-pong se sofisticou e virou “tênis de mesa”, sua raquete é “Butterfly”, só joga com campeão, dá 10 de vantagem numa partida de 12... É como diz aquela gíria popular “se melhorar, estraga”, passa do “ponto”, excede...”
Seguem mais algumas cenas do filme “60 ANOS ESTA NOITE” chamadas O EXIBIDO SEDUTOR:
“O cara inventou o vôlei de rua, cuja rede foi confeccionada num mutirão, com projeto do Itamauru da Dona Nalva. No futebol, era muito presepeiro e pelas pipas, cujo rei era o seu amigo Atilinho, nunca se interessou muito, pois pipa não tem plateia para se exibir, o que não motiva o ‘artista’ Luquinha”.
“Sedutor, dançava bem (só perdia pro seu irmão Geraldo), declamava versos inteiros de cor para encanto das meninas. Na minha primeira paixão platônica, eu ouvi compulsivamente o disco de vinil do poeta e político J.G. de Araújo Jorge com o qual presenteou a minha irmã e depois renegou (?).”
E segue o filme por mais algumas páginas até que o cunhado do Bigode o finaliza com as palavras que se seguem:
“Assim, fica aqui o meu “big ode” ao New Luca 6.0, meu personagem mais bacana da nossa velha comunidade tribalista cachambiana.”
Por que essas reminiscências no Biscoito Molhado? Bem, uma das razões é o fato de o Luca ser muito citado nas nossas páginas, mas só ser conhecido pessoalmente pelo Elio Fischberg (**). A outra razão é para anunciar que assistirei ao “70 ANOS ESTA NOITE”, na festa-surpresa de 21 de dezembro de 2014.
E desde já prometo à Glória que guardarei segredo.

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO adere a Agripino. Talvez seja um privilégio dos irônicos.
(**) Tomara que o Luca não leia, ou não perceba esta frase. É o absurdo total. Até o Distribuidor do seu tra-lá-lá, trá-lá-lá – que é uma das poucas pessoas que ainda não conhece o Luca – sabe que todos os missivistas conhecem o Luca. É o que se poderia dizer: uma pessoa conhecida.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

2135 - A Kombi do América

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3935                                          Data: 21 de abril de 2012
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SABADOIDO DO GRAMADO AO PALCO
PARTE II

-É impressionante o número de obras que o Oscar Niemeyer tem espalhadas pelo mundo. - admirou-se o Cláudio.
-Niemeyer encolhe com a idade. - enveredou a Gina pelo humor negro.
Meu irmão permaneceu sério nas suas observações sobre o arquiteto.
-Pode-se citar construções do Niemeyer em grandes cidades.
-Ele fez o sambódromo com aquele “M” do Mc Donald’s. - pilheriou minha cunhada.
-Esculhambaram  o Brizola, por causa da ideia do sambódromo, mas todo o mundo imitou.
-Apenas São Paulo imitou. - devolveu a Gina.
-A Rosinha Garotinho mandou construir um sambódromo em Campos. - manifestei-me.
-Não falem mal da Garotinha porque ela é tricolor. - brincou meu irmão.
 -O que não dá para engolir é o comunismo do Oscar Niemeyer, ele até afirmava que o Gorbachev era agente da CIA porque mudou as coisas na União Soviética. - comentei.
-Ele pertence ao esquerdismo festivo; há muito artista por aí que só gosta do bom e do melhor e que se diz socialista.
O Cláudio foi aparteado pelo Luca.
-Esses artistas não exploram ninguém, diferentemente de muitos empresários...
-Muitos empresários estão gerando empregos.
-Sim, concordou comigo.
-Eu sei que não moraria numa casa construída pelo Oscar Niemeyer. - insistiu minha cunhada na sua aversão pela sua arquitetura.
-Você, Gina, talvez pense igual ao Otto Lara Resende, que dizia preferir morar defronte a uma obra do seu conterrâneo para admirá-la, não mais do que isso. - lembrei.
-Nem assim. - mostrou-se ela ainda mais cáustica.
-Eu não gosto da arte arquitetônica de Gaudi, em Barcelona; parece que vejo um cenário de filme de enredo estrambótico. - entrei também no clima de critica.
-Gaudi, aquele que constrói prédios derretidos?...
-Quem viu o premiado filme do Arnaldo Jabor “Eu sei que vou te amar”, com a Fernanda Torres e o Thales Pan Chacon, se recorda, certamente, da casa dos dois, com rampas e outras modernices, pois foi criada pelo Niemeyer.
-Por isso, a relação do casal não deu certo. - não perdeu a piada a Gina.
Luca tirou um recorte de jornal de um envelope, era um artigo do Ruy Castro.
-Alguém sabe quem foi campeão carioca em 1913?- sabatinou.
-O hino do América diz: “campeão de 13, 16 e 22.”
-Carlinhos não deixou quicar. - elogiou.
-Escreveu o Ruy Castro... - prosseguiu.
-Ele já voltou?... quis saber, pois sofrera de fortes espasmos, que causaram fratura de um  dos seus ombros, enquanto assistia ao desfile de escolas de samba pela televisão.
Luca confirmou e foi em frente.
-Ele escreveu que, num jogo do América em 1913, o jogador Belford Duarte colocou a mão na bola dentro da área e, para o desespero dos americanos Lamartine Babo, Oscarito e Sílvio Caldas, denunciou a sua falta e fez questão que o pênalti fosse cobrado.
Villa Lobos, Paulo Fortes e Max Nunes. - mais três ilustres torcedores.
-Por isso, existe o troféu Belford Duarte para os jogadores que nunca foram expulsos dos gramados. - esclareceu meu irmão.
-Existiu o prêmio, pois não se fala mais nele.
-Lembra-se, Carlinhos, do Moisés que afirmava que zagueiro que se preza não ganha o Belford Duarte.
-Ele disse isso depois que entrou com um pedido para receber o troféu e chamou a atenção, assim, para a impunidade que existia, pois ele foi um dos beques mais carniceiros que já jogou. Passou, então, a ser expulso de algumas partidas.
Enquanto transcorria essa conversa paralela entre mim e o Cláudio, Luca reproduzia trechos da mencionada carta.
-Alguém viu a entrevista da Bárbara Heliodora no Sem Censura da Leda Nagle?
-Dos que davam quorum para a sessão do Sabadoido, só eu não vi.
-Ela não só é filha do Marcos Carneiro de Mendonça como tinha parentesco com Eugênio Gudin.
-Além, Luca, de ela ser filha da Ana Amélia Carneiro de Mendonça,  tradutora do primeiro Hamlet que li.
-A Bárbara Heliodora é a maior shakespeariana do Brasil.
-Ela deve estar com 85 anos. - calculei.
-89 anos. - frisou o Luca.
-A Bárbara Heliodora com aquele cabelo penteado para trás, aquele buço que já se transformou em bigode, era um homem autêntico. - mostrou-se a Gina ainda mais demolidora na sua irreverência.
-Com a idade, aumenta o hormônio masculino nas mulheres.
-Não é assim, não. - desgostou da minha observação.
-A Bárbara Heliodora, com 89 anos de idade, e a Leda Nagle pergunta se ela joga tênis?- indignou-se o Luca.
-A Leda Nagle, uma vez ou outra, vem com cada pergunta... - disse a Gina.
-E ela tem momentos em que age com grosseria. - acrescentou o Cláudio.
-Em determinado momento da entrevista, ela se refere à cozinha com a Bárbara Heliodora, que nada entendeu. Ficou, então, uma cozinha solta no ar, durante um tempo. Descobriu-se depois que a mãe do Wilson Simonal trabalhou na cozinha da casa da Bárbara Heliodora. - falou o Luca.
Cláudio se reportou a crônica em que Cora Ronai narrou o pavor que o Millor Fernandes tinha de baratas e ratos, o que levou o Luca a se opor peremptoriamente contra um texto que se deteve em assuntos menores. Pouco depois, ele se referia a tabela de preços elaborada pelo octogenário escritor Victor Hugo, para apreciar as partes íntimas das criadas e prostitutas. Nada, porém, que o igualasse ao tarado do FMI, Dominique Strauss Khan.
Gina já havia se retirado para dentro de casa.
 Luca, que havia esquecido no sábado passado de trazer uma fotografia do meu tempo de curso primário, trouxe duas. Lá estava eu, pequerrucho e baixinho, nas turmas do terceiro e quarto anos.
Eu era quase tão mulatinho quanto o Fernando Henrique Cardoso. - pensei sem me manifestar. Numa foto, estava a Dona Arlete, na outra, a Dona Eunice. A professora do curso de admissão, já mencionada num sabadoido, foi a Dona Dulce, e a do primeiro ano, a Dona Teresa. Ficou um elo perdido para mim, em termo de professoras, aquela que foi do meu segundo ano. 
 Os retratos foram temas de reminiscências pós-sabadoido.
 Sem buracos na memória, minha irmã e também colega de turma, se reconheceu nos instantâneos (o que não aconteceu comigo), quando os mostrei, e ainda indicou mais colegas.
-Esta é a Lúcia Goulart?
-Uma de quem o Luca tanto fala, que morou na Rua Chaves Pinheiro? - perguntei.
-Sim; este é o Albino, que morreu afogado na Barra da Tijuca.
-O papai leu a notícia no jornal, e os comentários dele foram os mais trágicos possíveis.
-Isso mesmo, Carlinhos; depois desse afogamento, só nos permitiram tomar banho de baldinho nas nossas idas às praias.


terça-feira, 24 de abril de 2012

2134 - futeboladas


O BISCOITO MOLHADO
Edição 3934                                   Data:  19 de abril de 2012
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SABADOIDO DO GRAMADO  AO PALCO

 Minha intenção era das melhores quando saquei de um envelope uma mídia de DVD.
-Daniel, trago-lhe um filme que gravei ontem sobre os 100 anos do Santos Futebol Clube.
A reação de desdém da Gina foi imediata, até então, tudo normal, mas o Daniel repetiu as palavras e expressão da mãe.
-O Santos?!... Não é lá grandes coisas...
Daniel, é um filme que cobre o centenário do Santos, relembra o título de 1935, com Araken, passa pela equipe que começou a ser formada em 1955, com Pepe, Zito e se detém na era Pelé por milhares de fotogramas.
-Aguentar o Pelé falando não dá. - manifestou-se o Cláudio que minutos antes, criticava, com razão, a entrevista que o Édson Arantes do Nascimento concedera dias atrás.
-Cláudio, não é o Pelé falando de si próprio e sim do Santos Futebol Clube. - esclareci.
Sem mostrar entusiasmo, Daniel pegou o disco da minha mão estendida.
-Depois que o Muricy Ramalho trocou o Fluminense pelo Santos, menosprezando nosso clube, quero ver a caveira do time dele. - disse a Gina apoiada pelo filho.
-Mas isso é passageiro. - argumentei pensando nos 100 anos.
-Passageiro nada, Carlinhos. - insistiu ela.
Contra-ataquei citando passagens da história do futebol protagonizada pelo Santos, mas só o Cláudio se entusiasmou um pouco.  Meu sobrinho, que se interessa pelos jogadores e times de destaque do passado, surpreendeu-me com o seu silêncio.
-Daniel, o apaixonado por um clube vai ter momentos de felicidade e depressão, pois o futebol é um perde e ganha, mas quem olha esse esporte porque o admira, certamente gostará de ver os campeonatos paulistas levantados pelo Santos e os dois títulos mundiais conquistados contra o Milan e o Benfica, que estão neste filme. - chamei-lhe atenção.
-Cometeram um erro quando consideraram aqueles títulos passados, da Taça Brasil, como do campeonato brasileiro, aumentando consideravelmente as vitórias do Santos. - criticou.
-Discordo, Gina, pois assim ficou retratado que, nos últimos 60 anos, não houve clube no Brasil mais vitorioso do que o Santos.
-Foi um erro.- repetiu.
-Gina, o Botafogo em 1961/1962 foi bicampeão carioca, venceu o torneio Rio-São Paulo, derrotou o Santos completo, ou seja, com o Pelé, por 3 a 0. O Brasil se tornou campeão do mundo com cinco titulares do Botafogo, a saber: Nilton Santos, Garrincha, Didi, Amarildo e Zagalo, feito esse que só foi igualado agora pelo Barcelona que deu mais da metade do time para a seleção campeã de 2010.
-E daí?
-E daí que, nesse período que eu citei, o Botafogo teve o maior time do mundo. Se o Botafogo tivesse uma torcida como a Fla-Imprensa, esse feito estaria repercutindo por toda a eternidade.
Os presentes não me olharam como um torcedor exaltado e, por isso, a conversa fluiu dentro do diapasão da racionalidade.
 -Daniel, quando você tiver tempo, assista a esse filme, você verá lances no gramado que até hoje não se repetiram. - reincidi na minha sugestão.
-A seleção húngara era quase o time inteiro do Budapest Honvéd.
-Sim, Cláudio, a legendária seleção húngara de 1954 era composta por quase todo o elenco do Budapest Honvéd, mas não venceu a Copa do Mundo.
-Sabe-se hoje que o time da Alemanha se dopou.- interveio o Cláudio.
-Falam que intrometeram a política na Copa de 54, que interessava a vitória alemã para reerguer o moral do povo depois da destruição da Segunda Grande Guerra. Documentários mostram gente andando pelos telhados das casas para saudar o escrete na volta para a Alemanha. Quanto ao jogo final, os alemães venciam por 3 a 2 quando Puskas empatou, o que daria o título aos húngaros, mas o juiz marcou impedimento só visto por ele. - tagarelei.
Depois que o tema futebol esfriou, Daniel liberou o cybercafé, e eu cliquei, por desatenção, um e-mail que eu já vira dias atrás. Nele, aparecem Garotinho, mulher e filha juntos com César Maia e filho. A política desmoraliza tudo, principalmente a amizade, que transforma em sinônimo de interesse – pensei.
Na fotografia, a beleza da Clarisse Garotinho se destacava. Ela, ultimamente, protagoniza com a Cidinha Campos as cenas de baixaria da Câmara Legislativa Estadual. Uma xinga a outra de filha de malfeitores, e a réplica vem com o ressurgimento da história em que a vereadora tentou dar fim à própria vida. “Suicidinha Campos” - grita a Clarisse, e aquela que não suportou a rejeição do Carlos Manga (“manga não, manga é um perigo, quem provou quase morreu) reagiu com um elenco de nomes de suicidas que vão de Sócrates a Tchaikovsky. Suicidinha Campos esqueceu, porém, de dizer que nenhum desses nomes citados constou da lista de propinas do bicheiro Castor de Andrade. Aliás, por que a filha do Garotinho não envereda por esse lado em vez de se fixar num amor contrariado por uma fruta indigesta? Bem, talvez seja arriscado tocar em listas, muitas delas pululariam, e a baixaria da Câmara dos Deputados se tornaria ainda mais abissal.
Da desativada garagem do fusquinha da Gina, as vozes da sessão do Sabadoido chegavam até mim, embora ninguém estivesse fora da modulação. Antes de rumar para lá, acessei umas mensagens eletrônicas do Dieckmann; nelas ele agendava encontros e mais encontros de Jaguar.
-Dieckmann vai provocar um desequilíbrio ecológico. - previ.
Presentes na sessão do Sabadoido estavam os “suspeitos de sempre”, com exceção do Vagner. Lá, Daniel se referia à polpuda participação dos funcionários no lucro da Casa da Moeda, porque ele tinha pouco tempo de casa não avolumou os bolsos.
-Eu não podia chegar agora e sentar na janela. - conformou-se.
-O que eu mais sinto falta do Unibanco, além das partidas de pingue-pongue, era a participação nos lucros. - afirmou o Luca.
-E aquele adversário que o fez suar para você vencer.
-Pois é, Carlinhos; ele exigia muito de mim, sentia-me muito bem jogando com ele, mas não ele apareceu mais.
-O John McEnroe lamentou a saída do Bjorn Borg das quadras, disse na ocasião que, sem um adversário à altura, a qualidade do jogo dele caiu muito.
-É verdade, Carlinhos, nós precisamos de grandes adversários para exigir o nosso melhor. Esse amigo da Carolina (sua filha) tem um braço que, pela grossura, é minha perna. Ele dá aulas de capoeira, joga muito bem pingue-pongue. Apareceu algumas vezes, mas agora sumiu...
Fez-se uma pausa, e o Claudio passou a falar do Oscar Niemeyer com apartes irônicos da Gina.




sexta-feira, 20 de abril de 2012

2133 - carta rosa, manga rosa


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3933                                            Data: 18 de abril de 2014
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CARTAS DA LEITORA

“Dadivoso mancebo,
 Agradeço penhorada, sensibilizada e desvanecida o atualíssimo Eça, depois de saboreá-lo, repassei-o a um amigo lusófilo, vidrado em Guerra Junqueiro e que, para me dar parabéns no 4 de março, me sapecou um texto de Castilho, cheio de flores menos murchas que a aniversariante. Aguardarei o Herculano (passou um gato na mesa, nesta em que o papá escrevia e eu me atrevo a algaraviar) trazendo a reboque Hermengarda e Eurico. (1)
Não sei em que ano Joe Louis esteve na pátria amada, teve uma “ficança” com a Hebe, ela ainda não era abastada proprietária de esmeraldas e rubis. De onde surgiu esse boxeador? (2)
De seus Bms, estive relendo afanosamente a coletânea dos ultrajes do tempo. Tem sido prazeroso conviver com sabadoidivanos e louvo a vossa gratificante argúcia sob vários ângulos e alguns postes. Concordo que não sois o Manequinho, rivalizais com a Fonte de Trevi ou com a ainda mais formosa Fonte dos Quatro Rios na Praça Navona (3)
Sempre fui gregária, mas a longevidade acarreta acachapante solidão (reporto-me às velas do Cavafly) e dificulta congregar novas amizades. Não tem sido fácil esquentar a vida numa tebaida, sem vocação de eremita e sem rota de fuga, até a Saraiva não corresponde às expectativas e estou à míngua de livros. (4)
Tudo indica que não convidaram Carabosse para o meu batizado... Auguro uma boa Páscoa e ótimas bacalhoadas a todos vocês, gregos e troianos.(5)  Ósculos.
R. “

BM: Vamos por parágrafos.
(1) O aniversário da Flor do 86 passa, e nós, seus admiradores, não somos informados; lamentável. Culpa do Luca que faz bem o intercâmbio cultural, como os árabes de outrora, mas não o intercâmbio social. Em 2013, eu, Dieckmann, Fischberg não esqueceremos o dia 4 de março, mostraremos uma memória de causar inveja ao Maluf.
Falando em Guerra Junqueiro, encontrei num sebão, lá pelos anos 1980, um livro seu de versos sobre o famoso conquistador espanhol Don Juan. O poeta português, num longo prefácio, avisa que retirou todo o encanto do famoso personagem das letras e da música, jogando-o doente na miséria, sifilítico, se a memória não me trai. Chamou a sua obra de “A Morte de Dom João”. Apesar da sua má vontade com o herói de Tirso de Molina, Molière e Mozart, não me esqueço dos versos alexandrinos que iniciam o poema:
“Eu era mudo e só na rocha de granito.
Por sobre a minha fronte a sombra do infinito.
Em volta a solidão, escuridão sem fim,
Negra como o terror, triste como Caim.”
O livro foi editado em Portugal lá pela década de 30, se eu tinha de segurá-lo com cuidado, porque pencas de páginas ameaçavam despencar. Um dia, um amigo da Chaves Pinheiro, chamado Vicente,  soube da existência desse poema na minha estante e me pediu emprestado. Entreguei-lhe o livro de cerca de 200 páginas na noite de sexta-feira e o recebi na manhã do dia seguinte.
-Maravilhoso!... Se ele fosse um presente para mim...”
Fiz-me de surdo. Considerei suspeita aquela rapidez de leitura; não era poema para se engolir.
  (2) Pressinto que a Rosa Grieco incorreu num equívoco (fato raríssimo): Joe Louis nunca esteve no Brasil. Talvez a nossa erudita amiga esteja confundindo o campeão mundial dos pesos-pesados com o campeão dos meio-pesados: Archie Moore. É bem capaz de a Hebe Camargo ter sentido um peso um pouco mais leve... Falando nisso, lutando no Brasil, Archie Moore não demoliu o brasileiro Luisão, exibindo só um pouco o poder dos seus temíveis socos. Talvez, porque passou, antes da luta, pelo “sofá da Hebe”, quem sabe?...
(3) Talvez, as minhas constantes idas ao banheiro, no meio das sessões do Sabadoido, levaram a remetente a aludir ao Manequinho. Considerando que a água da estátua botafoguense não sai num jato, como se o menino sofresse de hiperplasia benigna da próstata, a comparação até seria cabível; Rosa Grieco, no entanto, passeia por Roma, passa pela fonte onde Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg se banharam jovens e velhos, sob a direção de Fellini, e se detém na Piazza  Navona para me deixar encharcado de elogios.
Ela economizou o sei italiano e aportuguesou tudo, influenciada, quem sabe, pelos clássicos do primeiro parágrafo. Nós chamaremos a Fonte dos Quatro Rios e Praça Navona de Fontana de Quattro Fiumi e Piazza Navona.
A Piazza Navona teve sua origem no império de Tito Flávio Domiciano, de 81 a 96, que ordenou a construção de um estádio para corridas e jogos de competição, tudo bem sanguinolento. Por volta de 1500, transformou-se na celebrada Piazza Navona, mas preservando a forma de estádio.
Em 1645, a Piazza alcançou a culminância do seu desenvolvimento quando o Papa Inocêncio X, convocou o grande artista barroco Gian Lorenzo Bernini para remodelá-la. Bernini restaurou as fontes instaladas por ordem de Gregório III e construiu no centro da praça a deslumbrante Fontana de Quattro Fiumi.
Gian Lorenzo Bernini projetou quatro estátuas que representam os rios dos quatro continentes: o Nilo, o Danúbio, o rio da Prata e o Ganges. Como coube a um artista inimigo de Bernini, Francesco Borromini, construir a igreja de Santa Agnese in Agone nas proximidades, mas Bernini se vingou: a estátua que retrata o rio Nilo está com a cabeça coberta por um véu para não olhar a igreja de Borromini, e a que representa o rio da Prata tem a mão erguida para se proteger de um possível desabamento da igreja de Santa Agnese in Agone. Rixa de artistas geniais e geniosos.

(4 ) Lamentando a “acachapante solidão”, Rosa diz que se reporta às velas do poeta grego Constantine P. Cavafy.  Vamos, então, reproduzir o poema para ter uma ideia do isolamento que aflige a nossa amiga:

“Os dias do nosso futuro estão a nossa frente
como uma fileira de pequenas velas acesas-
pequenas velas douradas, quentes e vívidas.

Os dias passados permanecem atrás de nós,
uma fileira desolada de velas queimadas;
as mais próximas ainda estão fumegando,
velas frias, derretidas e curvadas.

Eu não quero olhar para elas; suas formas me entristecem,
e me entristece relembrar suas primeiras luzes.
Eu olho para frente, para as minhas velas acesas.

Eu não quero me virar para trás, temendo ver e estremecer-
a rapidez com que a linha sombria se alonga
a rapidez com que as velas queimadas se multiplicam.”

(5) Não convidaram Carabosse para o batizado da Rosa. Tenho minhas dúvidas se captei o sentido das suas palavras, embora tenha saído em busca da figura citada.
Carabosse é um personagem anterior às histórias para crianças de Charles Perrault. A sua aparição remonta ao século XIII, na canção “Les Prouesses et faitz du noble Huon de Bordeaux”.  Obéron, o rei dos Elfos, explica a Huon que deve seu aspecto a uma feiticeira colérica que o enfetiçou no dia do seu batizado.
No desenho de animação de longa-metragem de 1959, dos estúdios Disney, “A Bela Adormecida no Bosque”, Carabosse recebeu o nome de Malévola.