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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3938 24 de
abril de 2012
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O RELÓGIO
Quando eu me preparava para os concursos
de admissão numa escola ginasial do governo, ganhei, de meu pai, um relógio de
pulso. Fiquei encantado; ele era encorpado, tinha um fundo negro com ponteiros
das horas e dos segundos de cor azul fosforescente. Era também o meu aguardado
primeiro presente de homenzinho, de quem começaria a lidar com os seus
compromissos.
Coloquei-o no pulso, ajustando bem as
tiras escuras e só o tirava na hora de tomar banho e dormir. Antes, fui
orientado pela minha mãe:
-Coloque-o no pulso esquerdo.
Por que tem de ser o pulso esquerdo? Eis
uma pergunta que só fiz algumas décadas depois. Em 1960, era um dogma para mim
os relógios no pulso esquerdo. Hoje, recebo textos de neuróbica – o exercício
que ativa os neurônios depois, ou antes, de a aeróbica cuidar do sistema
cardiovascular – que preconiza o uso do relógio também no pulso direito. Como
adquiri a minha precisão britânica (*) usando o relógio presenteado pelo meu
pai do lado esquerdo, não traio meus princípios.
No Visconde de Cairu, desfilava com ele
orgulhosamente, mas não o exaltava. Para quê? Ele brilhava por si próprio, as
palavras nada acrescentariam, além de eu não ser dado à verbosidade. Dei sorte,
pois entrei no Visconde de Cairu justamente no ano em que deixou de ser colégio
municipal e passou a ser estadual, ou seja, as camisas não eram mais de mangas
compridas. O que tem o relógio com a camisa? - perguntarão, imagino, um e outro
leitores do Biscoito Molhado. Explico: com a manga curta, não havia risco de o
meu relógio ficar oculto por um pedaço de pano em momento algum.
Nas práticas de Educação Física
(lembro-me que havia uma aula nas tardes de sábado), sempre que possível, eu
não me desfazia do meu suíço... digo, do meu brasileiro, não alterarei a sua nacionalidade
para valorizá-lo. (Aprenderia mais tarde, em Economia, que o bem de estimação
não tem preço como os outros bens, com exceção do bem livre, como o ar).
No início da ginástica, éramos levados
para um gigantesco banheiro coletivo e lá, tínhamos de nos despir dos nossos
uniformes para calçar tênis e pôr meia, calção e camiseta regata. Eu não
trocava de roupa totalmente porque o relógio, insisto, permanecia grudado em
mim.
Certa vez, julgando-me já vestido para a
aula de Educação Física, fui advertido pelo professor:
-Tire o relógio, porque hoje vocês vão
subir na corda.
Como a advertência não foi só dirigida a
mim, eu me conformei, e também deduzi que caso houvesse um gatuno na escola,
ele teria várias opções de relógio. Aqui vai um parêntese: só muitos anos
depois eu assistiria aos filmes de François Truffaut sobre crianças na fase
escolar.
Maldita corda! Eram várias, elas caíam
do teto do ginásio como se fossem serpentinas de um salão de baile
carnavalesco. Nós tínhamos de escalá-la até uma altura exagerada para nós,
meninos de 12 e 13 anos, para, em seguida, descer. O professor nos ensinou o
que chamou de truque para subir na corda: apertar um ponto da corda com as
plantas dos pés, obtendo um apoio, e, assim, impulsionar o corpo para cima,
repetindo, em seguida, tudo de novo. Que sacrifício! Mil vezes as flexões de
braço, os pulinhos de galo, os cangurus e todo o jardim zoológico.
O professor não nos avisou que
deveríamos descer vagarosamente, omissão imperdoável. Assim, quando cheguei lá
em cima, afrouxei as mãos agarradas na corda e desci celeremente, resultado:
fiquei com as minhas patas esfoladas a ponto de sangrar. Coloquei em dúvida, a
partir daquele momento, o velho truísmo que diz que para baixo todos os santos
ajudam.
De volta ao vestiário, consolei-me
quando vi que o meu relógio, enfiado por dentro do sapato e protegido por duas
meias, estava são e salvo. Não esqueci, porém, a ardência que a água fria do
banho provocou em contato com a carne viva das minhas mãos.
Nas aulas do professor Admilton Chirol
(**), técnico que antecedeu o Zagalo nesse cargo no Botafogo, seis anos depois,
eu também tinha de me separar do relógio, pois ele insistia em formar times de rúgbi,
entre seus alunos.
Mas não foi numa aula de Educação Física
em que o meu relógio me deixou constrangido, Para ser fiel aos fatos, nem me
recordo em que aula isso ocorreu, se foi de história, francês, matemática,
desenho, artes manuais... Sei apenas que todos estavam devidamente
uniformizados na sala de aula, quando o extraordinário aconteceu: todos, sem
exceção, fizeram silêncio para ouvir a professora. Ouvia-se apenas o voo de uma
mosca... e o tic-tac do meu relógio.
-O que é isso?... O Carlos tem um
despertador de pulso. - apontou-me um perverso colega.
Logo, choveram as piadas:
-O seu relógio é mais barulhento do que
a bateria da Mangueira.
Outro piadista foi mais imaginativo:
-Você não pode passar perto de um
hospital, que exige silêncio, com esse relógio.
-Fiquem quietos. - reagi.
-Se ficarmos quietos, vamos ficar surdos
com esse tic-tac. - devolveram.
Apesar dos exageros, eles não estavam
errados: o silêncio denunciava os estrondosos tic-tac que saíam dos mecanismos
do presente que meu pai me dera no ano anterior. Eu estava tão fascinado pelo
mimo que, até então, não notei que ele podia chamar a atenção de uma maneira
desagradável. Isso, porém, não me afastou dele; não o arranquei do pulso e, nas
vezes que um colega vinha com gozações, eu não me portava como a planta
sensitiva-pudica, defendia o meu relógio com rispidez ou indiferença.
Risco de vida o meu relógio passou mesmo
quando caí do estribo do bonde. Era uma questão de masculinidade os alunos do
Visconde de Cairu saltarem do bonde andando quando ele fazia a curva da rua
Arquias Cordeiro para entrar na rua Carolina Meyer. Filhinho de mamãe, apenas no mês de setembro
de 1961 obtive liberdade para ir sozinho à escola. Assim, pensei em me mostrar
mais adulto e, em vez de sair do bonde de maneira segura no ponto defronte do
Cine Paratodos, resolvi encurtar o caminho, saltando na mencionada curva. Foi
um desastre: caí no asfalto, e a minha pasta de livros, cadernos e caneta
Compactor, despencou a uns cinco metros de mim. Enquanto eu pegava a minha
pasta, um rapaz me socorria.
-Você deu sorte; não se machucou, o
relógio não quebrou....
Sim, o relógio não se quebrou; mas a sua
decadência física começou muito cedo. Deu para atrasar, o que me levou a chegar
atrasado nas sessões das 3 horas da tarde no Cine Cachambi. Eu já não confiava
nele como antes. Depois, o vidro caiu; desprotegidos os ponteiros, um deles
entortou quando eu esbarrei em alguma coisa que não soube identificar.
Chegara o momento de eu me despedir do
meu relógio como o filósofo Colline se despediu do seu capote na ópera La Boheme , e eu cumpri a minha
dolorosa missão. Pena que a minha voz não estivesse à altura do momento.
(*) Há controvérsias. Precisão, britânica ou
de qualquer origem, é chegar na hora. Normalmente o Sr. Biscoito chega antes da
hora.
(**) Não há
dúvida de que o redator sabe do que está falando. Entretanto, o Distribuidor do
seu O BISCOITO MOLHADO, procurou, em vão, na internet a relação de parentesco
entre Admildo Chirol e Admilton Idem. Crê o distribuidor em questão que são
irmãos, pois embora ambos sejam falecidos não deixaram o parentesco e sim o mundo.
Fica a curiosidade sobre a imaginação pouco criativa da cabeça do casal que
gerou esta dupla, se realmente forem irmãos. Nada disso, um atento leitor e torcedor da malfadada estrela solitária esclareceu: o irmão de Admildo Chirol é Achilles Chirol. Portanto, o Biscoito Molhado delirou quando gerou esse Admilton.