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terça-feira, 28 de junho de 2022

3117 - Abaixem as venezuelas de dentro da picape de Hatari! (R)

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2108           Data: 02 de julho de 2004       

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SOBRE UM TEXTO DO HENRI MURICI DE MESQUITA


Vi Spartacus com uns dezesseis anos na segunda fileira do cinema Roulien que não ficava no Meyer e sim em Todos os Santos; mas bastava dobrar a esquina da Aristides Caire com a Arquias Cordeiro, e a uns trezentos metros já se entrava no cinema. Quando levaram o filme do Stanley Kubrick, não se entrou com essa facilidade: a fila lembrava, pelo tamanho, aquelas filas da carne no tempo do Plano Cruzado e dos adesivos nos carros “Cruzado: eu acredito.” Consegui sentar na segunda fileira do poeira (era no tempo em que cinema pobre era assim chamado), suportando dois efeitos colaterais:  a primeira fileira de cadeiras ameaçava cair nas pernas dos ocupantes da segunda, e a obrigação de quase encostarmos a nuca nas costas para enxergar as peripécias na telona. 

Spartacus foi, dos quatro filmes o primeiro que me surpreendeu nas redondezas do Meyer pelo número de espectadores. O segundo, vi alguns anos antes, quando ainda não saía sozinho do meu bairro,  “Os Dez Mandamentos” do Cecil B. de Mille. Foi no tempo em que o Jânio Quadros obrigava um filme nacional junto com um estrangeiro. Isso não foi um estorvo para a  minha mãe que, pegando a filharada, levou para o Cinema Mascote, onde nós ficamos por seis horas: quatro  horas do filme citado mais as duas do “Absolutamente Certo” com a Dercy Gonçalves e o Anselmo Duarte.  Mais crescidinho,  eu, meu irmão e alguns colegas, numa noite de sábado, pegamos o bonde  Cachambi para assistir ao filme que inaugurava o Bruni-Meyer, “Hatari!”. Toda a cidade do Rio de Janeiro tivera a mesma idéia, pois não conseguimos nem pisar na calçada em frente do cinema. O quarto filme me surpreendeu tanto pelo acúmulo de gente diante do cinema Art-Palácio Meyer, numa matinê de dia de semana, que até o nome da fita eu esqueci, só me recordo que se tratava de uma macaquinha que serve de enfermeira de um tetraplégico e se apaixona por ele; não se tratava, porém, de uma macaquicice pornô, e sim de uma história macabra. Surpreendi-me pela enormidade da fila porque já estávamos na década de 80, quando raramente os antigos cinemas lotavam, principalmente às duas horas da tarde de uma quarta ou quinta-feira. Descobri, depois de uns dez minutos na tal fila, que a mesma vinha do Banerj, e era composta de professoras do estado que, depois de muito tempo de greve, recebiam os seus proventos. Disfarcei, saí da fila com alguma dificuldade, pois ela também crescia para os lados, e fui até à bilheteria do Art-Palácio Meyer, ao lado do banco, onde encontrei só duas ou três pessoas que não eram professores atrás do salário.

Paro aqui estas reminiscências para declarar o que deflagrou essa minha volta ao passado: o filme “Hatari!” citado num texto escrito pelo Dieckmann com o pseudônimo de Henri Murici de Mesquita na revista “Radiador”. Nós, que lemos alguns contos da lavra do autor na citada revista, preferimos aqueles que escreveu com pseudônimo feminino, tanto que a principal cláusula do seu contrato para redigir uma consultoria sentimental no Biscoito Molhado é o pseudônimo de Madame Waleska. No entanto, Dieckmann se saiu bem no seu animus (a porção masculina, segundo Jung) de Henri Murici de Mesquita. 

São dois episódios, duas musas – Picapes Chevrolet dos anos 50. A primeira musa era conhecida como risadinha e, informa o autor, também cinéfilo, que era igual à usada por John Wayne no “Hatari!”. Na história dieckmaníaca, quem sai da picape não é o machão do cinema americano, e sim um amigo da confraria dos colecionadores de carro, que nascera no banco da frente duma Chevrolet dessas, devido a um Ford enguiçado. Lembrei-me logo (quase sempre um fato inusitado puxa outro na minha memória) do nascimento do Barão de Itararé: nascera num vagão de um trem que parara surpreendentemente no meio do percurso:

- “Saí, então, da barriga da minha mãe para ver o que estava acontecendo.” - disse o Barão numa entrevista na TV.

No segundo episódio, a musa já não ria tanto quanto no primeiro, e provoca lembranças sobre pescarias e, principalmente, caçadas. Dieckmann aproveita o ensejo e mostra todo o conhecimento    que adquiriu em canicultura como dono que foi do Abóbora, do Feijão e da Vitória (cadela cujo nome é uma homenagem do Dieckmann ao seu compadre, também pianista e leitor do Biscoito Molhado, Vitorino, ou Vitório, para os íntimos; ou Vitória, para os mais íntimos ainda.” 

Nós, que somos humildes, apesar das dúvidas em contrário... Quem não é humilde é o distribuidor e divulgador deste periódico, que põe em prática a seguinte frase do ex-boxeador Cassius  Clay: “Eu bem que tento ser modesto, mas logo me faltam argumentos.”    

Rebobinando: nós, que somos humildes, apesar das dúvidas em contrário, muito aprendemos sobre vira-latas no trecho dieckmaníaco. Aprendemos que os vira-latas dos bons trazem no DNA “restos de pastor alemão não luterano e traços de fox-terrier comum; a perseverança do primeiro com o faro e a histeria do segundo”. Involuntariamente, Henri Murici de Mesquita joga luz sobre os cinco vira-latas que tivemos há alguns anos. Sempre que lá em casa colocava-se na vitrola o LP “Ray Conniff meets Billy Butterfield” na faixa “Taste of Honey”, os cinco uivavam desesperadamente. Sabemos agora que os genes que eles herdaram dos fox-terriers eram a causa de tanta histeria. Mas o comportamento dos nossos vira-latas era mais complexo, e ainda assim a luz lançada pelo texto dieckmaníaco chega até ele. Os uivos começavam no instante em que as primeiras notas sopradas por Billy Butterfield no trompete soavam, e se tornavam menos estridente, e até mesmo num acompanhamento tranqüilo, quase à “boca chiusa”, quando o som da orquestra do Ray Conniff se impunha. Ora, Billy Butterfield foi considerado um músico de jazz respeitável, enquanto Ray Conniff, elogiado tocador de trombone da orquestra de Artie Shaw e Harry James, passou a ser conhecido,depois, quando chefe de orquestra, como um arranjador de música de elevador. Por que, então, essa lamentável lacuna no gosto musical dos meus vira-latas? Como Dieckmann explicou, os restos de pastor alemão que entraram no DNA dos vira-latas não são de luterano. Bach não era pastor, mas mesmo que fosse, era luterano, era apenas alemão; aí estão duas razões para os vira-latas se afastarem tanto da boa música apesar do código genético alemão.

Bem, poderíamos encerrar por aqui, mas como citamos o Barão de Itararé, e escrevemos umas três edições sobre erros palatáveis e grosseiros em menos de dez dias, vamos antes contar um episódio em que o humorista mostrou toda a sua compreensão diante do erro alheio.

O governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, despachando no seu gabinete, no Palácio da Liberdade, sentindo-se incomodado pelo clarão do sol, bradou a seguinte ordem: “Baixa essa  venezuela”. O Barão de Itararé justificou o governador argumentando que se, na Pérsia, aquele tipo de cortina é chamado de veneziana, e em Veneza, de persiana, por que, então, não podemos chamá-lo no Brasil, de venezuela?     


segunda-feira, 27 de junho de 2022

3116 - D Uma viagem econômica

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O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 01D               -              27 de junho de 2022
Fundador: Carlos Eduardo Nascimento  - Ano XXXVIII
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Nem Ladeira Abaixo

Eu nem devia tocar mais nesse assunto, afinal toda mentira deve permanecer encapsulada, escondida, coisa que não se admite nem na frente da família; seria assim se eu não fosse um caso patológico, um serial killer da cascata, um serial lier...

É claro que há justificativas para isso ou aquilo, mentirinhas sociais, pequenos delitos, mas um teor de cinismo ou malícia impõe o seu lugar, ora, afinal se todos os beatos se derem as mãos, quem vai sacar primeiro?

É o caso dessa historinha, de uma sociedade baseada na confiança mútua, aquelas do tempo do fio do bigode, o caso é que me barbeio todo dia. Mas a sociedade existiu de fato e não há contabilmente nada que possa ser criticável.

Éramos os sócios eu e o Skipper, mas não me perguntem qual era a razão social, ou se é que tinha uma razão para existir, faz tempo demais. Mas a necessidade de levar uma coisa do Rio a São Paulo está límpida na memória e eu ia fazer isso com meu Galaxie.

Que tempo esse! A gente tinha um ou dois Galaxie, cada um, e vivíamos circulando a torto e a direito, acho que devo a esta fase tão macia o fato de não ter hoje sérias dores na coluna. Eu adoro um Galaxie.

Mas, naquele dia, a viagem teria de ser no Galaxie do Skipper, um 67-68, Verde Netuno, tom escuro, classudo e imaculado, com umas talas mais largas, carro chique. Feito o carregamento do não-sei-mais-o-quê, recebo a incumbência de preencher detalhadamente o consumo num livrinho de bordo, onde cada tanqueada estava lançada, com a correspondente quilometragem, consumo etc.

Claro que nessa sociedade, a despesa era dividida, mas bem além disso, o preenchimento religioso e meticuloso dos dados era imposto pelo cioso e cuidadoso Skipper - ao que me comprometi, de pés juntos. E assim parti na manhã seguinte, ronronando junto com os oito obedientes cilindros rumo à Serra do Mar.

Na subida da serra, por garantia, fiz a primeira tanqueada; ali deu o estalo... Quarenta e cinco litros, lancei a quilometragem, o frentista perguntou:
- Quer a nota?
Claro que eu queria, era necessária, o "estalo" chegou e disse... quero... de 42 litros. Como a quantidade era menor, veio a nota de 42 litros, que lancei no livrinho. O Skipper jamais desconfiaria de que eu tiraria dinheiro do meu próprio bolso, apenas com a ideia de falsear o consumo...

Fiz a conta  do consumo e deu 5,9 km por litro, esses três litros a menos ajudaram bastante, pois o consumo real fora de uns 5,5 km/l.

Gostei. E abusei. Daí em diante passei a "roubar" de mim 4 ou 5 litros por tanqueada em prol do sucesso da sociedade, lançando consumos de eficiência crescente... 6,3 km/l, acho que cheguei até a formidáveis 7,4.

Deu lucro a sociedade! O que nunca mais se repetiu, tenho certeza de que não, foram os estupendos consumos, na mão do cioso proprietário,  nem que fosse ladeira abaixo... 


terça-feira, 14 de junho de 2022

3115 - Ingleses, franceses, resistências (R)

           

                           

Fui aluno de francês, no Colégio Estadual Visconde de Cairu, da dona Cacilda. Não sei dizer se dona Cacilda era um Caxias de saia, ou se Caxias foi uma dona Cacilda de calças; isto porque, nos seus anos de magistério – segundo a lenda – ela só faltou uma vez às aulas. E a falta de dona Cacilda se deu porque, morando em Niterói, houve uma greve do pessoal das barcas. O segundo dia da greve, no entanto, não representou o segundo dia de ausência da dona Cacilda: ela que, assim que estourara o movimento reivindicatório dos marítimos, se atirara ao mar, chegou ao Rio de Janeiro depois de vinte e quatro horas de nado pela travessia. Nadava mal, mas ensinava bem.  

Com dona Cacilda, comecei a conhecer os mistérios da língua de Victor Hugo, da língua de Anatole France, da língua de Emanuelle.

Infelizmente ela, como professora, só durou um ano para mim, pois no segundo ano ginasial ela foi substituída por um professor com umas idiossincrasias fronteiriças à frescura. Por exemplo, ele não se conformava com o fato de a palavra exército, em francês, ser feminina.

- “O glorioso exército de Napoleão feminino...” - bradava em aula.

- “L' armée”.- estrebuchou.

- “O que é isso, professor?” - indagou um aluno.

- “Exército, em francês”.- explicou.

- “Mas nem parece feminino”.- garantiu esse mesmo aluno com a concordância dos demais.

Só anos depois, lendo um livro de um gourmet inglês – sim, existe gourmet inglês - seu nome é Peter Mayle e foi para a França com o objetivo de provar iguarias refinadas, escrevendo, então, o livro “Um ano na Provence” que mereceu, na Inglaterra, o prêmio de melhor livro de viagens de 1990 e, em seguida, escreveu “Toujours Provence”. Mas o que eu pretendia mesmo dizer?... Já me lembrei: só anos depois, lendo “Toujours Provence”, soube que vagina, em francês, é uma palavra masculina. Sendo Peter Mayle inglês, expressou toda a sua dificuldade, no livro em questão, para entender os gêneros que os franceses atribuíam aos substantivos, principalmente o...”Le vagin”.

- “Como pode o estudante perplexo esperar aplicar a lógica a um idioma em que vagina é masculino?” - escreveu.

O inconformismo do escritor com a masculinidade da vagina me lembrou o inconformismo daquele meu professor do segundo ano ginasial com a feminilidade do exército francês. 

No terceiro ano ginasial, ainda estudamos francês no Visconde de Cairu, mas a influência do ensino da língua inglesa já começava a ofuscar o idioma que, por séculos, as pessoas requintadas do mundo civilizado estudavam para brilhar. Estudavam tanto que falavam francês igual, ou melhor, que os próprios habitantes da França. Narra Tolstoi, no Guerra e Paz, que os aristocratas de São Petersburgo, ao  saberem que Napoleão preparava a Grand Armée para invadir a Rússia, estipularam uma multa para cada palavra francesa que eles pronunciassem nas suas conversações. Em pouco tempo, tiveram de desistir das multas, pois lhes era impossível expressar-se sem as palavras francesas.

Certa vez, ouvimos um locutor da Rádio MEC anunciar a transmissão de uma obra musical contemporânea: “Le trois couleurs    de soleil couchent” (As três cores do pôr-do-sol), rapidamente desligamos o rádio, pois toda a melodia da composição já se encontrava no título. A atonalidade que se seguiria nos mais diversos instrumentos da orquestra contradiriam o nome da música.

Não foi à toa que um dos poemas mais musicais la literatura universal, “Chanson D' Automne” de Paul Verlaine, serviu de senha para a invasão  das forças aliadas na Normandia, no Dia D, 6 de junho de 1944.

“Les sanglots longs

Des violons 

           De l' automne

Blessent mon coeur

D' une longuer

             Monotone”.


Ouvindo-se os soluços dos violões do outono de Paul Verlaine, imagina-se tudo, menos a guerra; nada mais imaginativo, portanto, para despistar o inimigo do que esse poema.

Mas chego quase ao final desta edição do Biscoito Molhado, e constato que rememorei, falei, citei, quase delirei e não entrei no assunto da liga de mulher usada pelo rei Eduardo III, contada pelo nosso Causídico Verborrágico. 

Terminemos, então, mas sem antes citar as palavras do rei, que não foram somente as da famosa frase.  Primeiro: uma pequena introdução histórica (o texto vai em francês em homenagem à dona Cacilda):

“Durant le bal, la Comtesse de Salisbury, maîtresse du roi Edouard III, perd lors d' une danse la jarretière bleue qui maintenait son bas. Edourd III s' empresse de la ramasser et de la lui rendre. Devant les sourires entendus et railleurs de l' assemblée, le roi se serait  écrié en français, alors langue officielle de la cour d' Anglaterre: 

- ”Messieurs, honni soit qui mal y pense! Ceux, qui rient en ce moment seront un jour très honorés d' en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement”.

O rei Eduardo III afirmou que os que riam da sua liga de mulher na perna, procurariam com todo o denodo, um dia, a honra de usar uma liga semelhante. Ele já imaginava, ao proferir tais palavras, instituir a Ordem da Jarreteira. Ainda assim, a sua masculinidade gera dúvidas até hoje.   




        


terça-feira, 7 de junho de 2022

3114 - Spica (R)

O BISCOITO MOLHADO

Edição 2111                       Data: 07 de julho de 2004       

                     

JUSTIFICANDO O NOME


Lembro-me que ninguém estava só com um radinho de pilha. Nélson Rodrigues até criou a expressão “mais só do que Robinson Crusoé sem radinho de pilha”. O grande navegador inglês, William Dampier, que realizara um minucioso levantamento da costa oeste australiana, na sua última viagem, em 1711, trouxe de volta ao mundo dito civilizado um tal de Alexander Selkirk, que estava há anos abandonado na remota ilha de Juan Fernandez ao largo do Chile. Inspirou com a sua história Daniel Delfoe a escrever o romance Robinson Crusoé, e pela solidão, a expressão que citamos do Nélson Rodrigues. 

O radinho de pilha surgiu nos anos 50 com o espetacular reerguimento do Japão das cinzas da Segunda Grande Guerra. Era da marca “Spica” o primeiro radinho de pilha que vi; pertencia ao noivo da minha tia que, quando procurava um lugar isolado do casarão da minha avó, para noivar, não conseguia ficar sozinho com a minha tia caso levasse também o “Spica”: eu, um garoto fascinado pelo radinho, ia sempre atrás. 

Não era só eu, havia, no mundo todo, gente fascinada pelo “Spica”. Recentemente, esbarrei com um texto de um argentino intitulado “La Spica, pequitita pero cumplidora” (pequenina, mas resolve), onde diz, entre outras coisas:

-”La aparición de un pequeño adminículo, el transistor, modificó los hábitos de toda una generación, que lejos estaba de suponer lo que sus ojos alcanzarían a ver en materia de cibérnetica. Pero junto com él o mejor, merced a él, llegó a nuestras manos la radio portátil y el símbolo por excelencia de esa revoluctión se llamó Spica... Hasta su arribo, escuchar radio implicaba una compleja negociación familiar para lograr la mejor ubicación frente ao voluminoso aparato. Pero a partir de la introducción de la Spica se hizo posible hasta escuchar el programa favorito...”

 E paramos por aqui com a transcrição do texto argentino antes que algum leitor insinue que o  Biscoito Molhado se integrou ao Mercosul.  

Fizemos referências, na última edição, mas não muitas, dos 50 anos do marco alemão - nome com que ficou conhecida a moeda criada na política do celebrado pai do milagre econômico alemão, Ludwig Erhard – e agora, com o radinho de pilha, pretendemos registrar apenas o início da reação da economia do Japão do yen depois das cinzas da guerra.  

E o Brasil?... Bem, o Brasil comemora com manifestações   meio chochas os dez anos do real. Um dos seus pais, que são muitos, foi o André Lara Resende. Na época em que o Otto Lara Resende era um personagem obsessivo do Nélson Rodrigues, este escreveu que o Otto era pai de um menino tão inteligente que seria presidente da República: era o André. Nélson Rodrigues, que já fora a primeira pessoa a chamar Pelé de rei do futebol depois de um Santos x América, em 1957, errou na previsão.

Fernando Henrique Cardoso, esse sim, o inteligente que chegou à presidência da República no Brasil (talvez o único), acaba de escrever sobre esses dez anos do Real. É suspeito para escrever, pois era o ministro da Fazenda durante a gestação e parto da moeda, mas não lambeu tanto a cria a ponto de delirar. Eis um parágrafo da escrita do ex-presidente.

-”Se o Real teve alguma virtude foi, além da criação da URV, a decisão de abrir o jogo: tudo foi feito informando a população, sem surpresas, com a antecipação do que poderia ocorrer. Sem a compreensão e a adesão da sociedade, o plano teria ido ladeira abaixo.” - 

-”Justificas o teu nome” - dizia Balzac ao seu empregado, que se chamava Paradis, sempre que este lhe trazia boas notícias. O Real justificou o seu nome, pois dissipou as nuvens espalhadas pela hiperinflação que ocultava a realidade. Muitos bancos já estavam quebrados. Recordo-me que freqüentava a Corretora Caravelo na década de 80, e já ouvia os conselhos dados aos clientes para evitarem o Bamerindus, abarrotado de papagaios do escândalo da SUNAMAM.  Mas só com os abalos da estabilização com o Real, o banco caiu, embora o seu presidente fosse o ministro da Agricultura do governo FHC. Outra aberração provocada pela  hiperinflação brasileira era o fato de o Banespa pagar um dos melhores dividendos da Bolsa de Valores, quando os seus maiores acionistas – as estatais paulistas – eram os seus maiores devedores: não pagavam a uma instituição, e ainda recebiam dinheiro dela. 

Tudo era permitido num país em que a inflação atingiu de 1980 a 1993, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas a marca de 146 bilhões, 219 milhões, 946 mil e trezentos. Na Alemanha, quando a hiperinflação de 1923 transformava as economias de toda uma vida num frugal café da manhã, o autor do livro “A República de Weimar”, Lionel Richard, registra que  muitos endinheirados ganharam ainda mais com a explosão dos preços, como  as indústrias dos Krupp, para darmos um exemplo mais conhecido.

O Real, desanuviando o ambiente hiperinflacionário, desagradou a muitos poderosos no início, mas depois os recompensou com os altos juros. Passados dez anos, os juros batiam os 1006% , enquanto a inflação pelo IPCA acumulava 167%. 

Se o Real justificou o nome, como o Paradis de Balzac, no que concerne ao fim da hiperinflação, durante um bom tempo deu a ilusão aos brasileiros de pujança por causa da taxa de câmbio sobrevalorizada.   Com um PIB de 900 bilhões de reais ou 900 bilhões de dólares, no início do Plano Real, quando  um real equivalia um dólar, nós éramos a oitava economia do mundo, mas quando o real passou a justificar o seu nome, vemos hoje que o Brasil é, na verdade, a décima quinta economia do mundo, e que o PIB, hoje, de 1,4 trilhão de reais, representa apenas 450 bilhões de dólares com o câmbio  3,11 reais igual a 1 dólar. 

O Plano Real mostrou a dura realidade que é o empobrecimento do Brasil na esfera mundial: 50 % em dez anos, ou seja, de US$ 900 bilhões para  US$ 450 bilhões. 

Afirmar que o empobrecimento do Brasil é provocado pelas dívidas seria, ao nosso ver, simplificar a questão. Aqui sempre existiu uma irresponsabilidade fiscal: os políticos sempre gastaram a mancheias o dinheiro do contribuinte com mira nas urnas. Nessa última eleição mesmo, os quatro candidatos a presidente da República, Lula, Serra, Garotinho e  Ciro Gomes foram a Brasília, no meio da campanha, prestar homenagem ao centenário do maior gastador deste país, Juscelino Kubitschek. Presidente que hoje é reverenciado, graças à mediocridade do regime militar que o transformou em mártir. Juscelino construiu uma cidade em três anos, e  foi chamado por Nélson Rodrigues de  “Canalha Dionisíaco.” Falando em Nélson Rodrigues, se vivo ainda fosse, já teria atualizado a expressão “só como Robinson Crusoé sem radinho de pilha” para “só como Robinson Crusoé sem celular”. Neste país, afinal, foge-se como o diabo da cruz da Lei de Responsabilidade Fiscal trazida pelo Plano Real, e venera-se  um celular. 













3113 - Mascarado (reedição)


                    O BISCOITO MOLHADO 

Edição 2117                                      Data: 17 de julho de 2004 

A BALEIA ASSASSINA 

É considerado modelo de início de romance o primeiro parágrafo do Moby Dick, obra-prima de Herman Melville e da literatura americana (Sei que alguns leitores, os mais críticos, dirão que errei o título, mas já daqui insisto sobre o meu acerto; não é Bob Dieck, que ainda não chegou à obesidade mórbida dos cetáceos). 

No primeiro parágrafo do Bob Dieck... digo: Moby Dick, estão as palavras que capturam o leitor para ele prosseguir na leitura até o desfecho, porque o escritor desenvolveu magistralmente a técnica narrativa que recebeu a denominação de lead. 

Não cabe nesta edição do Biscoito Molhado reproduzir integralmente esse primeiro parágrafo, que é longo, mas parte dele vamos destacar: 

“... Sempre que começo a ficar austero; sempre que é um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que dou a parar involuntariamente diante de empresas funerárias e a cerrar fila em cada enterro que encontro; e especialmente sempre que a minha hipocondria adquire tal domínio sobre mim que é preciso um sólido princípio moral para impedir-me de sair deliberadamente para a rua e metodicamente surrar as pessoas – então acho que está na hora de ir para o mar o mais depressa possível. Este é o meu sucedâneo para a pistola carregada. Com um floreio filosófico, Catão se atira sobre a espada; eu calmamente vou para o navio.” 

Quem assim fala é o Samuel, o personagem que conta a história do ódio do Capitão Ahab pela baleia branca. O parágrafo se inicia, aliás, com essas palavras: “Chamai-me Samuel”. 

Ele foi para o navio, e nós observamos, no dia-a-dia, que muita gente deveria ir para o navio em vez de permanecer na terra, irritadiças, agressivas e hipocondríacas, importunando-nos com o seu azedume. 

Às vezes tentamos um lead no Biscoito Molhado, isto é, um início que enfeixe as principais questões como no início do Moby Dick – Quem? Quando? Onde? O que? Como? Por que? - mas ficamos na vã pretensão. Afinal, o mais próximo que nós chegamos de uma baleia como personagem, nas nossas tentativas neste periódico, foi o Paulo Octávio, antecessor do Dieckmann na CGTMAR - Coordenadoria-Geral de Transportes Marítimos - do DMM, que chamávamos de Orca, a baleia assassina. Em vez de investir contra o meu navio, arrancar-me a perna com uma dentada, Orca... digo, Paulo Octávio, com gestos amistosos, parou-me um dia num corredor do Departamento de Marinha Mercante: 

- “Liane, a minha mulher, está reclamando que você nunca mais me chamou de Orca, a baleia assassina. Ela quer saber quando é que você vai voltar a me chamar de baleia assassina?” 

- “É pra já.” - respondi. E para atender a Liane, antecessora da Bel como primeira dama da CGTMAR, suspendemos já nas rotativas a edição em que chamávamos uma colega nossa de “Anestesista de Dores de Indaiá”, e lançamos mais uma aventura de Orca, a baleia assassina. Pela pressa da redação desse número, não alcançamos a metade dos leitores da reportagem em que tratamos do confinamento do Paulo Octávio no Paraguai, por ocasião do assassinato do vice-presidente desse país (Com fronteiras e aeroportos fechados, Paulo Octávio só conseguiu voltar para o Brasil disfarçado de massagista do Corinthians, aproveitando que as autoridades abriram uma exceção para o time brasileiro, que lá jogara). Voltou ele para o Brasil, não para o navio, mas como o personagem que fez a narrativa do terrível embate ente o Capitão Ahab e o leviatã branco. 

 Transcrevemos, dia desses, grande parte do trabalho jornalístico do Canal Discovery sobre a vida de Francis Drake. Parece-nos que, na sua derradeira viagem, em 1595, o corsário já se enjoara da terra; precisava do mar para não sair batendo nas pessoas e ruminar picuinhas com a rainha que já o esquecera. Escrevemos,então, sobre o seu túmulo aquático, e nenhuma discordância apareceu. Ainda bem. Mas quando aparecem discordâncias como a do Rogério sobre a personalidade realmente homenageada com nome de rua no Leblon, repetimos: ainda bem. 

 Julgávamos o Conde de Bernadotte da rua do Leblon o próprio militar de Napoleão que, na Suécia, fora rei, mas estava errado, como o autor da biografia do Paulo Fortes nos mostrou. O Conde de Bernadotte, nascido em Estocolmo em 1895, foi sobrinho do rei Gustavo V. Conde de Bernadotte, presidente da Cruz Vermelha em 1945, foi intermediário na oferta de capitulação de Himmler frente aos aliados que, no entanto, recusaram a proposta alemã. Mais tarde, foi designado mediador da ONU, na Palestina, no conflito entre árabes e israelenses. Foi assassinado a tiros na zona de Israel, em Jerusalém, em 1948. Ficou, no Rio de Janeiro, a homenagem numa rua do Leblon. O Conde de Bernadotte não foi tão ilustre quanto o seu antepassado, que ajudara a derrotar Napoleão Bonaparte, em Leipzig, em 1813, mas mereceu com sobras a homenagem.