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domingo, 5 de agosto de 2018

3102 - SX Psicografando, psicopintando



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5362 SX                           Data: 05 de agosto de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV


SERGIO DELAUNAY

Com o passar dos anos vou me transformando, cada vez mais, num sujeito metódico. Percebo isso ao constatar que, pelo menos uma vez por semana, sou acometido por uma ideia de jerico.

A da semana passada foi recorrer a uma viagem de metrô para transportar duas grandes telas, que pintei, até a galeria de arte do meu amigo Jaime Vilaseca, na Rua Dona Mariana, em Botafogo. Agarrado a elas percorri quatro quarteirões do meu apartamento na Paula Freitas até a estação Siqueira Campos do metrô. A estação de Botafogo fica perto da praia. Carregando minhas obras-primas, caminhei por vários quarteirões ao longo da rua São Clemente, até chegar na Dona Mariana.

Causei espanto no vagão lotado do metrô. Otimista, imaginei inicialmente que os demais passageiros estavam embevecidos com a beleza dos meus quadros. Aos poucos, minha bola foi baixando e cheguei à conclusão de que, na verdade, estavam espantados com as proezas que eu cometia tentando me equilibrar no vagão, segurando minhas telas gigantescas.

Cheguei, finalmente, à galeria do Jaime. Numa sequência de bonitas casas situadas numa charmosa vila da Dona Mariana ele desenvolve suas múltiplas atividades. Produz molduras sensacionais e está ultimando providências para expandir em grande estilo sua galeria de arte.

Como eu, ele também é viciado em automóveis antigos. Proprietário de um lindo Triumph TR4, belíssimo carro esporte inglês, é alvo da inveja de toda a comunidade de colecionadores do Rio de Janeiro, que admira o destemor com que ele utiliza sua preciosidade, sempre envolvido em passeios nos fins de semana, ou até mesmo em viagens que contemplam longas distâncias, evitadas por esse escriba e pelos demais covardes do clube.

Como sempre, sou recebido com enorme simpatia pelo querido amigo. Minhas telas vão se juntar a duas outras que já estão devidamente emolduradas pelo Jaime, aguardando a inauguração de sua galeria. O evento vai envolver outros "colegas artistas", comes e bebes e apresentação de um grupo de jazz.

Dessa vez, Jaime me deu um susto: "Sergio, para expor seus quadros, preciso informar algo sobre sua trajetória artística. Como você descobriu essa vocação? De quem recebeu orientação? Gosto muito dos seus quadros, me lembram a obra de uma artista que admiro muitíssimo. Sonia Delaunay. Você se inspirou na Delaunay, não é verdade? Confesse!"

Vi-me, recorrendo a uma expressão recentemente criada, em palpos de aranha. Fui muito sincero. Nunca tive professor de pintura. Desenho mal. Sonia Delaunay? Nunca ouvi falar...

Pacientemente, Jaime Vilaseca me explicou que ela foi uma extraordinária pintora e cenógrafa, nascida na Ucrânia em 1885. Desenvolveu sua carreira em Paris, onde faleceu em 1979. Agraciada com a Legion D`Honneur, foi a primeira mulher a contar com uma retrospectiva no Louvre, o que aconteceu em 1964. Recorrendo à Internet, me apresentou à obra da grande pintora. E tinha razão. Meus quadros mostram formas geométricas e cores fortes bem ao estilo da Delaunay.

Permanecemos na estaca zero. O que Jaime poderá dizer aos milhares de clientes que vão se degladiar na ânsia de adquirir meus quadros?

Faço um esforço para transmitir algumas informações ao meu amigo. Explico que minha disposição de enfrentar a tela branca decorreu do fim do meu primeiro casamento. Saí de casa carregando apenas um travesseiro, deixando para trás quadros e tapetes que ornamentavam meu apartamento na avenida Rui Barbosa.

Não eram obras de pintores super renomados. Nem pensar em Portinaris, Pancettis ou Di Cavalcantis. Tinha em minha casa quadros de artistas que gostava muito, ainda que não tão valorizados: Henrique Cavalleiro, Manoel Santiago, Heitor de Pinho, Fernão Bracher, Haydéa Santiago, Mario Mendonça... Apreço especial eu tinha por um quadro pintado por Rui Campelo, primo distante, integrante do Núcleo Bernardelli. Sua obra não alcança preços altos. Mas é belíssima, sempre premiada nos salões de arte de que ele participou.

Expliquei ao Jaime que havia ficado incomodado com as paredes vazias de minhas novas moradias. Sem grana para refazer meu antigo acervo, desandei a pintar.

Meu pai foi também um incentivo importante que me atraiu para o mercado de arte. Comentei, numa antiga crônica que cometi para o "Biscoito Molhado", que Paulo Fortes era um talento multifacetado. O mais destacado barítono brasileiro desenhava como ninguém e produzia caricaturas extraordinárias. Adorava pintura e tornou-se amigo de muitos artistas importantes, frequentando suas casas. Euclides Santos, notável ilustrador da revista "O Cruzeiro", sempre o presenteava com pequenos quadros, por ocasião do Natal.

Recentemente "herdei" uma marinha maravilhosa, que ocupava lugar de destaque na sala de seu apartamento. A história da compra desse quadro é bastante peculiar...

Em 1954, Paulo Fortes cumpria uma temporada no Teatro Comunale de Florença. Durante seis meses cantou naquele grande teatro uma série de óperas desconhecidas no Brasil, que lhe demandavam ensaios exaustivos. Um jovem pintor expunha seus trabalhos nas proximidades da saída de artistas do Comunale. Era religioso. Todo dia o barítono parava para apreciar os quadros do tal pintor. Um deles chamava especialmente sua atenção. Um belo dia o sujeito não se conteve e disse: "Senhor, há meses o senhor pára na frente desse quadro e passa um tempo enorme apreciando meu trabalho. Por que não compra o quadro?" Paulo Fortes explicou: "É verdade. Não canso de admirá-lo. É maravilhoso! Mas não é barato... Vim do Brasil, meu país, para cantar nesse teatro. Estou super feliz, fazendo sucesso e ganhando um bom dinheiro. No entanto, meu contrato termina daqui a dois meses. Morro de saudades de minha família e não cogito renová-lo. Minha ideia é levar dinheiro para o Brasil. Não estou aqui para fazer compras..."

Mario Rinaldi, o pintor, declarou: "Entendo bem seu ponto de vista. Mas acho um absurdo o senhor deixar de comprar algo que tanto admira. Vamos fazer o seguinte. Vou lhe vender o quadro por uma fração do preço que peço normalmente. Na verdade, estou cobrando, basicamente, o custo da tela e das tintas. O que acha?"

Paulo Fortes não pensou duas vezes. Fechou negócio na hora. Poucos meses depois a marinha estava em seu apartamento, no Leblon. Hoje, para minha satisfação, enfeita meu apartamento em Copacabana.

Com o passar dos anos Mario Rinaldi ganhou fama na Itália. Hoje seus quadros podem ser encontrados em galerias e coleções de toda a Europa. Em certa ocasião, testemunhei uma conversa entre meu pai e Giuseppe Irlandini, italiano que era dono de uma grande galeria na Teixeira de Melo, em Ipanema. Papai falou sobre o quadro do Mario Rinaldi. Irlandini ficou tenso, não parava de perguntar: "O senhor vende? O senhor vende?".

Falei também com o Jaime sobre minha trajetória trabalhando com Ronaldo Cezar Coelho, proprietário de uma belíssima coleção de obras de arte. Especialmente sobre o espetacular Guignard que ele comprou em um leilão em Nova Iorque e não conseguia trazer de volta para o Brasil, por conta de tributos escorchantes que seriam cobrados. Difícil entender a lógica tupiniquim.

Falamos, também, sobre as belas obras que enfeitavam as paredes da Multiplic. Na sala do sócio Antonio José de Almeida Carneiro, conhecido no mercado financeiro como "Bode", havia um Marcier de rasgar as cuecas. Eu conversava muito com Antonio José sobre automóveis, tema que nos era muito caro. E não tirava os olhos do Marcier. Um belo dia o "Bode" me chamou para conversar sobre um Porsche espetacular, sua nova aquisição. Gelei. O Marcier não estava no lugar de sempre. No seu lugar, uma gigantesca tela branca, sobre a qual algum tarado derramou um balde de tinta Suvinil vermelha. Atônito, perguntei: "Bodão, cadê o Marcier?"  Resposta de Antonio José: "Descurti...". E apontando para o acidente ecológico acima de sua mesa, declarou: "Agora estou nessa...". A partir daí nossa amizade arrefeceu.

Muito mais falei com o Jaime na tentativa de justificar minhas veleidades artísticas. Imaginei, de certa forma, que o assunto poderia ser alvo de uma crônica para o "Biscoito Molhado".


Tomara que sim.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

3101 - SX Os tarados




O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5361 SX                           Data: 07 de maio de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV

AGILDINHO

Na década de 1960, então intrépido e corajoso, eu era um frequentador assíduo do Maracanã.

Na companhia de Nelson Goyanna de Carvalho, colega de Santo Inácio, também tricolor de coração, embarcava no 438 - Barão de Drummond - Leblon, a tempo de assistir à partida de aspirantes. Eu e meu amigo atentos à proficiência dos jovens que iriam envergar, num futuro próximo, a gloriosa camisa do time principal do Fluminense.

O mastro da bandeira tricolor empunhada pelo Goyanna era quase do tamanho do 438. Entrar no coletivo carregando o artefato, especialmente nas ocasiões em que o "busão" estava tomado por maioria esmagadora de torcedores do Flamengo, demandava doses monumentais de diplomacia. Disso ele se desincumbia com talento invulgar. E chegávamos vivos ao Maracanã, o que não aconteceria nos dias de hoje.

Reiterávamos nosso destemor bebendo uma impublicável laranjada que era vendida no portão principal do estádio. E testávamos nossa imortalidade consumindo, já acomodados na arquibancada, sacos de batata frita que pingavam gordura a ponto de molhar nossos sapatos.

Eram muitas as motivações que nos atraiam ao Maracanã. Entre elas, Victório Gutemberg, o locutor oficial do estádio. Suas informações, envolvendo escalações e substituições de jogadores, eram sempre precedidas pelo brado "SUDERJ informa!". Durante 42 anos, ele trabalhou no Maracanã, até falecer, em 2004. Não tenho certeza, penso que também trabalhava na Rádio Tupi. Morreu pobre, no pequeno apartamento de uma filha, no centro da cidade.

Volta e meia penso no Victório Gutemberg. Não mais no locutor que gritava a plenos pulmões "SUDERJ informa! No Fluminense, sai Evaldo e entra Ubiraci! No Flamengo, sai Airton e entra Paulo Chôco!" Hoje, imagino ouvir aquele vozeirão anunciando perdas que tornam nossa vida mais vazia e triste.

O que acaba de acontecer quando tomo conhecimento da morte de Agildo Ribeiro. No Brasil, medíocre e mal resolvido da atualidade, me vem à mente o Gutemberg gritando "SUDERJ informa! No time do bom humor e do talento, sai Agildo Ribeiro. E não entra ninguém!"

Agildo da Gama Barata Ribeiro Filho era meu primo. Primo distante. Neto de Atanagildo Barata Ribeiro, primeiro tenente da Armada Imperial e Engenheiro Construtor Naval. Tendo participado da Revolta da Armada, em 1893, escreveu na prisão o livro "Sonho do Cárcere". Atanagildo era irmão de meu tataravô Cândido Barata Ribeiro, o da rua, primeiro prefeito do Distrito Federal. Como mencionei em crônica recente, os dois irmãos, vindos da Bahia, foram acolhidos pelos monges do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro.

Atanagildo era pai de cinco filhos, quando enviuvou. Voltou a se casar e teve mais dois filhos. Um deles, o Capitão Agildo Barata, revolucionário de 30 e 32, um dos líderes da Intentona Comunista de 1935. Agildo Ribeiro, o genial comediante, foi seu único filho.

Não havia muita proximidade entre esses dois ramos dos Barata Ribeiro. Minha família era conservadora. Paulo Fortes, udenista ferrenho, admirava o Brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora, Carlos Lacerda e por aí vai. Pouco se falava em minha casa do primo Agildo Barata, comunista de carteirinha. Em seu favor, vale ressaltar, todos destacavam sua reconhecida valentia, honestidade e firmeza de propósitos.

Do primo Agildinho tinha notícias esparsas através de meu pai, que com ele cruzava com alguma frequência na Rede Globo. Somente em duas ocasiões tive oportunidade de encontrá-lo. Era muito garoto quando fui com meu pai assistir "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Agildo era a estrela maior do espetáculo e dava um verdadeiro show. Meu pai me conduziu ao camarim do astro, que foi muito carinhoso comigo.

Numa outra ocasião, anos mais tarde, diversos membros da família Barata Ribeiro compareceram a uma solenidade na Associação Brasileira de Imprensa, promovida em homenagem ao nosso antepassado Cipriano José Barata de Almeida. Cipriano foi médico, político e revolucionário combativo, que lutou pela independência do Brasil. Na ótica da ABI, foi acima de tudo um jornalista destemido, editor do sempre combativo jornal "A Sentinela da Liberdade", especializado na arte de atazanar a vida da côrte portuguesa.

Agildo compareceu à reunião. Sentou-se ao lado de meu pai, me viu e indagou: "Seu filho, não é, Paulo?" "Sim, meu filho, lembra-se dele?" "Lembro, do teatro. Mas nem precisava. Tem cara de tarado, como todo Barata Ribeiro..."

Anos mais tarde, tomei conhecimento de um fato que me surpreendeu. Agildo Ribeiro era muito amigo de Antonio Carreira, Presidente da Elevadores INDUCO, pai de meus amigos do Santo Inácio Sergio e Gustavo Carreira. Em 1949, o jovem Antonio, tenente do Exército, colaborava com seu sogro, Leopoldo Augusto da Silveira Franca, na administração de um teatro de sua propriedade, o "Follies", que estava instalado no térreo do Edifício Safira, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Ali, viria a conhecer Agildo Ribeiro, Daniel Filho e vários outros artistas de renome, uma amizade que perduraria por muitos e muitos anos.

Finalizo com uma história Agildiana que me fez morrer de rir. Agildo, convidado a se retirar do Colégio Militar, chegou à conclusão de que estava destinado à carreira artística. Sempre cercado de gente que morria de rir de suas piadas e, especialmente, de suas imitações. Não ganhava nada com isso. O objetivo a ser perseguido, então, deveria ser o de transformar aquela evidente vocação em dinheiro.

O começo não foi fácil. Durante algum tempo, atuou como "boy" em peças no teatro de revista. Rapazes que dançavam e faziam alguns salamaleques, sem grandes compromissos, no fundo do palco. O próprio Agildo reconhece que dançava muito mal. Por conta disso, era alvo de gracejos por parte da plateia. Ouvia, com frequência, observações maldosas do tipo: "Olha lá como aquele viado dança mal! Aquela bicha não leva o menor jeito!"

Isso perturbava nosso herói, que enfrentava, em casa, marcação cerrada do feroz Capitão Agildo Barata.  Resolveu, então, tomar uma providência. Deixou crescer um gigantesco bigode. Inquestionável acessório de um machão empedernido. 
Não deu certo. Aos berros, passou a ser saudado pela plateia com novas imprecações: "Olha lá como dança mal aquele viado bigodudo!"


sábado, 7 de abril de 2018

3100 - SX um abraço no Leonel



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5360 SX                           Data: 7 de abril de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV


LEONEL VAI FAZER MUITA FALTA

Aconteceu, finalmente, a visita há muito combinada, tantas vezes adiada. Leonel abre a porta do apartamento da Dias Ferreira. Sou saudado com uma observação surpreendente:
 
- Meus parabéns! Você é nobre! Descende de Inês de Castro!

O propósito da minha visita é tomar conhecimento da árvore genealógica que ele fez da minha família. É um especialista na matéria, sabe todos os caminhos a percorrer, as fontes a consultar para identificar quais foram nossos antepassados. Parte de sua proficiência na matéria decorre de ligações que mantém com instituições portuguesas que consulta sistematicamente, fontes importantes para que tais levantamentos cheguem a bom termo.

No meu caso, seu interesse em proceder a esse levantamento decorreu do meu tataravô Cândido Barata Ribeiro, médico baiano que veio garoto para o Rio de Janeiro, sendo acolhido pelos frades do Mosteiro de São Bento. Anos mais tarde, indicado por Floriano Peixoto, tornou-se o primeiro prefeito do Distrito Federal.

Pela primeira vez, visitava o acanhado apartamento do Leonel na Dias Ferreira. Impossível evitar uma comparação com o gigantesco imóvel que a família Salgueiro ocupava no prédio da Ataulfo de Paiva, no tempo em que a "José Salgueiro Comércio de Ferro e Aço" era uma potência, participando ativamente de grandes obras realizadas no Rio de Janeiro, especialmente na administração Carlos Lacerda. Que, reza a lenda, era um grande amigo da família. 
   
Não comento nada, não faço qualquer pergunta, Leonel antecipa uma série de explicações. Com a morte de Dona Lígia, pessoa especialíssima, mãe que ele adorava, tornou-se necessário vender o latifúndio da Ataulfo de Paiva e comprar o pequeno apartamento da Dias Ferreira, em frente à Livraria Argumento. Ali ele era muito feliz. Não saíra do Leblon, bairro em que morara toda a vida. Ali recebia a visita do filho querido, Luiz Eduardo, por quem era apaixonado. E espaço havia para abrigar todas as suas memórias que, sabemos todos, eram muitas.

Conheci Leonel Corrêa Salgueiro no primeiro ginasial do Santo Inácio, ano em que ele entrou no colégio. Colegas de turma fomos apenas no quarto ano do ginásio. Minha proximidade com ele tinha algumas outras razões não Inacianas.

Eu morava na Rua Aristides Espínola, a cem metros do apartamento dos irmãos Leonel e Lucio Salgueiro. Com eles, disputava "pegas" empolgantes num luxuoso autorama inglês, mania que contava com a adesão de vários amigos da dupla.

Outro fator agregador importante estava na figura de "Seu" Leonel, pai dos meus amigos. Era ele que nos levava ao Circuito da Barra da Tijuca para assistir às provas que envolviam Chico Landi e vários ídolos que dividiam as atenções de milhares de aficionados, numa época de ouro do nosso automobilismo.

Esses pilotos nos proporcionavam fortes emoções, nenhuma comparável àquela que experimentávamos com "Seu" Leonel em sua caminhonete Chevrolet 58, devidamente incentivado pelos torcedores mirins que lotavam seu automóvel. Indo ou voltando do Circuito da Barra, nosso "piloto" reduzia esses grandes ídolos à condição de tartarugas lentas e desmotivadas.
Virei fã de carteirinha do "Seu" Leonel. Com o tempo me dei conta de que as toneladas de solidariedade, amor ao próximo e carinho que transbordavam do coração do colega Inaciano haviam sido herdadas de seu pai. Sempre presente em inúmeras causas e campanhas que mereciam nosso apoio e admiração. Algumas delas relacionadas com o Santo Inácio, entre as quais a construção da piscina do colégio, sonho acalentado durante dezenas de anos.

De "Seu" Leonel, um episódio me marcou tremendamente. No Chevrolet, depois de fazer "entregas" de meninos por todo o Leblon, sobramos no carro eu e Leonel filho. Eis que desaba uma chuva monumental. Tudo fica alagado em questão de minutos. Com imensa dificuldade, estamos a subir a Rua Lopes Quintas quando Leonel pai se depara com uma pedra gigantesca, trazida pelo dilúvio, a obstruir o caminho. É possível contorná-la. Mas não é o que ele faz. Salta do carro e, em segundos, fica completamente encharcado. Faz um esforço louco para encostar a pedra no meio-fio. Nunca esqueci esse gesto, que inúmeras vezes comentei com o Leonel. O que o deixava orgulhoso e feliz.

O futebol no sítio da família Salgueiro, em Jacarepaguá, também serviu para estreitar esse relacionamento. As contendas envolviam pencas de Inacianos. Leonel, generosamente, também acolhia os amigos que fiz em Copacabana quando lá fui morar nos anos 70.

Leonel era um caso raro de vascaíno no Santo Inácio, onde prevaleciam rubro negros e tricolores. No colégio, atuava como zagueiro. No sítio, era centroavante, sempre ostentando um uniforme do Vasco da Gama. Nos dois casos, distribuía porrada prá tudo quanto é lado. Se, definitivamente, não era um craque, há que se admitir que era um jogador no mínimo consistente.

A notícia de que Leonel estava doente causou consternação aos seus amigos. Nossos colegas médicos nos alertaram para a gravidade do quadro.

Ficamos felizes por conta de sua participação no almoço do nosso cinquentenário. Ele estava esperançoso. Dele nos despedimos recentemente, num almoço mais reservado, que contou com a presença do Camilo, Laforgue, Cotrim, Zezé Haddad, minha e do organizador Marinho Pereira, que fez muita força para assegurar a presença do Leonel, pelo que lhe somos imensamente agradecidos.


Leonel vai fazer muita falta. Especialmente para seu jovem filho. E para as centenas de amigos que ele soube amparar e cultivar durante sua vida mais do que generosa.

sábado, 31 de março de 2018

3099 - SX O empardecer



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5359 SX                           Data: 31 de março de 2018

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXV

PAPEL PARDO

O trajeto é sempre o mesmo. Da filial das Casas Palermo no Largo de São Francisco até o minúsculo apartamento na Viveiros de Castro, em Copacabana. O ônibus está super lotado, faz um calor dos diabos. Muita gente reclama, estou preocupado com outras coisas.

Comenta-se que a Palermo está enfrentando problemas financeiros, está atrasando pagamentos a fornecedores. Crise semelhante estaria também afetando a Cassio Muniz e o Rei da Voz. O que será de mim? Só o que sei fazer é vender vitrolas e televisões. O que faço há exatos trinta anos. Com a morte recente de minha mãe, a pensão de fiscal do IAPC de meu pai sumiu do orçamento. Nada brilhante mas, agora percebo, ajudava um bocado.

Chego suado e deprimido à portaria do prédio, que implora por reformas. Sou saudado pelo Valmir, porteiro que, na minha avaliação, tem o Q. I. de uma almôndega. "Pacote para o senhor!", ele grita. Faço contas para concluir que é o sexto ou sétimo embrulho cuidadosamente produzido em papel pardo que recebo no intervalo de tempo de três meses. Nenhuma etiqueta, nada escrito. Cobro explicações do Valmir, também pela sexta ou sétima vez. Sem resultado. Repete que o sujeito que entrega o pacote está sempre com pressa. Faz questão de entregá-lo em mãos, enfatizando que o destinatário é o Heitor, do 507.

Cansado, não tenho disposição para espinafrar o Valmir por sua incompetência, sua inépcia em identificar o portador dos pacotes. A etapa seguinte é torcer para não ser vitimado mais uma vez pelo carcomido elevador do prédio. Acredito piamente que sua porta pantográfica contém um dispositivo diabólico que me identifica e faz o elevador enguiçar sempre entre terceiro e quarto andares. Não aconteceu dessa vez, estou num dia de sorte.

Entro no apartamento acanhado tomado pela sensação que há meses me acomete. Sem minha mãe o apartamento parece maior. E mais triste. Já era triste com ela, sempre deprimida, impregnada pelo trauma que carregou por toda sua vida. Mais triste, ainda, sem ela.

Uma faca afiada é providenciada para abrir o tal pacote. Igual aos demais que recebi anteriormente. Tem um quê de inexpugnável. O excesso de papel pardo envolve uma caixa pequena e robusta. Dentro, nenhuma surpresa. Dinheiro. Muito dinheiro. Não propriamente uma fortuna. Mas bem mais do que recebo como vendedor da Palermo.

Minha reação é a mesma das vezes anteriores. Paralisado, tento imaginar o que possa estar acontecendo. Os pacotes de dinheiro são apenas parte dessa história. Minha conta no BANERJ também vem sendo agraciada com depósitos inexplicáveis. Cinco ou seis aconteceram desde o recebimento do primeiro pacote. O gerente do banco, feliz com a minha recente proficiência financeira, tomou um susto quando expliquei o que vinha ocorrendo. Mais assustado fiquei eu quando fui alertado para as eventuais implicações legais, especialmente tributárias, de depósitos caídos do céu. Sobre os quais não havia nenhuma pista, eis que procedidos em dinheiro vivo, na boca do caixa.

Noite adentro fiquei pensando no assunto. Descartando hipóteses que estariam longe de explicar o que estava acontecendo. Na vida sem graça que sempre levei, o que poderia justificar aquela imprevista saúde financeira?

Quase desmaiando de sono, lembrei de algo inusitado. Poderia, também, não ter nada a ver com minhas preocupações. Mas fiquei cismado com o que me passou pela cabeça. Tinha a ver com minhas andanças pelo centro da cidade, durante o horário de almoço. Sempre dedicado a uma refeição rápida, visitas a livrarias ou lojas de discos. Em ocasiões recentes chamou minha atenção a coincidência de me deparar, repetidas vezes, com um sujeito alto, bem apessoado e bem vestido, sempre surgido do nada. 

Lembrei-me de ocasião em que, na Polar da Avenida Rio Branco, experimentando um sapato, fiquei com a sensação de que esse indivíduo, postado diante da vitrine da loja, não atentava para os itens ofertados, mas acompanhava meus movimentos no interior da sapataria. Foi a primeira vez em que a presença do sujeito chamou minha atenção. Dias depois, num sebo da Rua da Quitanda, voltei a me deparar com ele, parado exatamente em frente à pilha de livros que eu examinava. Numa loja de CDs da Rua São José, a mesma coisa aconteceu. Encontrá-lo uma semana depois na minha agência do BANERJ, na Nilo Peçanha, até me pareceu uma coisa muito natural.

Passei boa parte da noite pensando no assunto, até ser vencido pelo cansaço. Desabei no horroroso sofá preto de courvim de minha pobre sala, sem encontrar forças para me dirigir ao quarto de dormir. Não sem antes concluir que certamente eu estava ficando ruim da cabeça e que, definitivamente, uma coisa não tinha nada a ver com a outra.

No dia seguinte fui ao BANERJ da Nilo Peçanha em busca de informações sobre os depósitos efetivados em minha conta. Foram seis no total. Além da Nilo Peçanha, também foram utilizadas as agências da Gonçalves Dias e da Cinelândia. E, para minha surpresa, três depósitos foram efetuados numa agência do BANERJ em Niterói.

Saí do banco com Niterói na cabeça. Aproveitei a meia hora de almoço que ainda me restava para correr até a Rua dos Inválidos, alertado por um amigo sobre uma coleção de discos antigos que havia sido arrematada por um comerciante local. Foi uma boa caminhada, não me sobrou tempo para examinar com cuidado o acervo precioso que já estava colocado à venda. Saí apressado em direção à Palermo. Não deu outra, o tal sujeito estava parado a dez metros da loja. Tomado de um sentimento de "é agora ou nunca" , quase raiva, decidi interpelá-lo. Não foi possível. Ele saiu apressado, em direção oposta ao Largo de São Francisco. Na crise, achei por bem não ultrapassar o horário reservado ao meu almoço. Mas estava convencido de que seria fundamental entrevistar a tal figura, se essa chance voltasse a ocorrer.

Dez dias de calmaria se passaram. Até que um novo pacote foi deixado em minha portaria. O Valmir, é claro, não conseguiu obter nenhuma informação sobre o sujeito. Agarrei-o pelo paletó para que ouvisse com atenção o que eu tinha a dizer. Fui minucioso na composição do personagem. Para o bem ou para o mal, nervoso, Valmir não parava de concordar : "Sim, sim, um pouco mais alto do que o senhor...cabelos bem escuros, penteados para trás...forte, bastante forte, jeitão de atleta..."

Saí dali convencido de que o entregador de pacotes e o sujeito que me seguia eram a mesma pessoa. Sabia, agora, o que deveria ser feito.

Mais uns dias de calmaria. Ou melhor, quase calmaria. Um novo depósito no BANERJ foi feito. Eu começava a me acostumar com a ideia de que ver crescer assustadoramente minha conta bancária era a coisa mais natural do mundo.

Passei a caminhar compulsivamente pela cidade durante o horário de almoço. Parava em vitrines da Rua do Ouvidor, Rosário, Buenos Aires... nada acontecia. Alguns dias se passaram até que voltei a encontrar o sujeito. Em frente ao Palheta, na Avenida Rio Branco. Minha abordagem, reconheço, foi até certo ponto truculenta : "Acho que o senhor quer falar comigo." A resposta inesperada do cidadão foi um "Talvez", o que me deixou ainda mais injuriado. "Se quer falar, é melhor desembuchar. Ou então desapareça da minha vista."

Desembaraçado e com muita calma, disse o sujeito : "Não sou eu, propriamente, que quer falar com o senhor. É outra pessoa. Ele gostaria muito de recebê-lo. Tem dificuldades de locomoção e, por isso, é necessário que o senhor vá ao seu encontro. Ele mora em Niterói." Achei tudo aquilo muito estranho. Manifestei-lhe meu receio de participar daquela empreitada. Poderia, até mesmo, correr perigo... Disse o sujeito:

-Esteja certo de que não é o caso. Como o senhor trabalha no comércio, suponho que  um sábado seja o dia mais conveniente. Peço pressa, pelos motivos que o senhor irá compreender. Posso pegá-lo na Viveiros de Castro no próximo sábado? Nove e meia da manhã?

-Acho que está bom para mim. Mas poderia adiantar o assunto desse encontro?
-Pacotes embrulhados em papel pardo e depósitos no BANERJ.
Ficamos assim combinados.

No sábado, no horário acertado, o sujeito estacionou um belo carro importado na porta do meu prédio. Eu já o aguardava. O genial Valmir não parava de berrar : "É ele! É ele!"

Não trocamos uma palavra durante o trajeto até Niterói. Nosso destino era uma casa deslumbrante na praia de Icaraí. Quando lá chegamos percebi um vai e vem de seguranças, o que me deixou assustado. Meu companheiro de viagem foi recebido com deferência por um séquito de empregados. Subimos ao segundo andar. Num quarto gigantesco, um sujeito muito idoso ocupava uma cama de hospital e era amparado por um médico e um batalhão de enfermeiras.

Meu acompanhante dirigiu-se ao enfermo: "Papai, esse é o Heitor." Com voz fraca, disse o doente : "É muito bom conhecê-lo... Faz tanto tempo... Muitos, muitos anos..."
Havia chegado minha vez de falar : "De onde o senhor me conhece? Como sabe meu nome? Por que estou sendo há meses seguido por seu filho?" Emocionado, o velho reuniu forças para dizer : "Meu propósito é falar sobre seu pai."

Para o meu gosto, a situação estava ficando estranha demais. Seria melhor cortar o mal pela raiz, com uma explicação clara : "Senhor, é importante que saiba o seguinte. Meu pai faleceu cinquenta anos atrás. Era fiscal do Instituto dos Comerciários e eventualmente cumpria missões em cidades próximas ao Rio de Janeiro, viajando em seu próprio carro. Em certa ocasião, a caminho de Rio Claro, trafegando pela Via Dutra, seu automóvel saiu da estrada, numa curva fechada da Serra das Araras. O carro desceu um desfiladeiro e foi encontrado muitas horas depois, por moradores da região. Já estava escuro. O carro, completamente destruído. O surpreendente é que meu pai não estava entre as ferragens. E nem próximo ao carro. Toda a região foi vasculhada durante semanas, seu corpo - é claro que ele morreu no acidente - jamais apareceu. O mistério ocupou durante muito tempo o espaço dos jornais. Que fizeram do assunto um verdadeiro carnaval. 'A Noite' chegou a levantar a hipótese de que ele teria sido abduzido por extraterrestres. A 'Gazeta de Notícias' afirmou, com convicção, que o corpo havia sido devorado por animais selvagens da região. O sofrimento da família foi enorme. O fato é que meu pai jamais apareceu. Minha mãe sofreu um bocado. Transformou-se numa morta-viva, perdeu a razão de viver, morreu há poucos meses depois de passar todos esses anos praticamente sem sair de casa. Minha vida, diante disso, também não teve muita graça. No colégio eu era apontado como o menino cujo pai sumiu. Convidado, de tempos em tempos, a conceder entrevistas para comentar o mistério, jamais aceitei. O certo é que, por conta desse episódio, eu e minha mãe tivemos uma vida triste e medíocre." Finalizando, fui incisivo com o velhote : "Respeito sua idade, sua saúde precária, mas peço que me entenda, não tenho planos de conversar sobre meu pai."

Meu relato deixou o sujeito perturbado. Ele voltou a falar, com extrema dificuldade. Algumas frases eram completadas pelo cidadão que apontava como filho. Foi uma surpresa o que dele ouvi: "Seu pai casou com sua mãe por obrigação. Ela engravidou. Seu avô, homem violento, disse que o mataria se ele não assumisse aquela responsabilidade. O problema é que seu pai estava perdidamente apaixonado por uma colega de trabalho. Contou com a ajuda do irmão para forjar o acidente em que seu carro rolou ribanceira abaixo. O irmão chefiava o jogo do bicho em Niterói e várias cidades próximas. Para ele, providenciou documentos com um novo nome e acolheu-o como subchefe da contravenção local. Esse irmão morreu cedo e seu pai ficou à frente do negócio. Como previsível, ficou muito rico. Teve um filho com a mulher por quem era apaixonado. Ela morreu há muitos anos. Hoje, esse rapaz administra os seus negócios".

Interrompi o sujeito para dizer que achava aquela história interessante, mas inverossímil. E como ele sabia aquilo tudo? Num gesto bem coreografado ele recebeu do filho uma pequena pasta de couro, castigada pelo tempo. Que me foi entregue, acompanhada de uma observação : "O que importa você saber está dentro dessa pasta. Dê uma olhada". Foi o que fiz. O primeiro papel que me veio às mãos foi a certidão de nascimento de Júlio Machado Pedrosa, meu pai. Em seguida, uma foto de seu casamento. Numa pequena caixa, uma aliança gravada com o nome de minha mãe. Trêmulo, indaguei : "Mas o que isso significa?" Disse o velho: "Esses são os documentos do Júlio, que morreu no acidente. Fui o Júlio, durante um bom tempo. Depois do acidente virei Adalberto. Pai do Fernando, que agora você conhece. Ele é seu irmão. Eu sou seu pai."

Meu coração disparou. Não sem antes ouvir o velhote completar suas explicações. Ele estava morrendo. Tivera uma vida conturbada, passara temporadas na prisão. Nos últimos tempos voltara-se para a religião. Estava empenhado em alcançar o Reino dos Céus. Para isso, precisava obter perdão para as coisas reprováveis que cometera em vida. A pior delas, certamente, abandonar um filho recém-nascido. Estava ali suplicando o perdão do filho que deixara há cinquenta anos. Que seria, agora, devidamente amparado. Mas que as coisas não se misturassem. Seu propósito não era comprar esse perdão. Na realidade, estava implorando por ele.

"Você me perdoa?" Tenso, Fernando, o filho, acompanhava a cena. Também me olhava, ansioso.

Minha resposta não envolveu sinceridade ou compaixão. Decorreu de uma perturbação extrema, de falta de ar, de um batimento descompassado do coração, do estado de choque em que eu me encontrava. Num fiapo de voz, disse o que me veio à cabeça: "O senhor está perdoado."


Adalberto, ou Júlio, meu pai, esboçou um sorriso. E, calmamente, morreu.