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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

3105 - FF Atas e desatas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5364FF          Data: 26 de dezembro de 2019

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A VIDA É UM CADARÇO   

Meu cadarço está invariavelmente desamarrado. Estou sempre abaixando para amarrá-lo e nesse curto intervalo de tempo em que dou o nó penso: minha vida é um cadarço desamarrado.

Por mais que eu tente, capriche, mude as técnicas, a postura, o jeito, ele vai desamarrar. Desamarrado ele me fará tropeçar; E assim caminho e tropeço, abaixo e penso, mas todo dia sei que terei de amarrar meu cadarço.

O cadarço é como a vida. Algumas pessoas, nas quais me incluo, estão sempre tentando dar o nó definitivo. Aquele que não desatará. Que não o fará mais abaixar, repensar e rememorar. Outras pessoas caminham longos períodos com os mesmos nós. Suas vidas são sem percalços, uma função linear com poucas curvaturas. Existem ainda as pessoas que nem cadarço tem. Não querem emoções, alegrias ou tristezas. Querem o óbvio. Não querem iguarias, surpresas ou imprevistos. Querem o gosto conhecido. Uma maneira de viver morrendo ou de morrer vivendo.

Olho para meu cadarço com rabo de olho. Feio, lambuzado, com marcas, nós mal dados e pedaços faltando. Estou sempre num abaixar e levantar. Até o dia em que não levantarei mais. Cansarei disso. Deixarei assim, como aquelas doenças que não tratamos. Um dia ela aumenta, evolui e nos mata. Farei assim, não mais o amarrarei. Chega de decepções e de tropeços. Meu nó nunca será perfeito, pois a vida é imperfeita demais. Se eu souber que está desamarrado, tudo será mais fácil. Acabarei com o imprevisível.

É ele que nos mata. Vou para a turma dos sem cadarço. Não mais me curvarei, pois abaixar pressupõe poder levantar.

Tomo essa decisão amarrando meu cadarço. Desvio meu olhar e meus olhos vão ao encontro de uma criança. Reparo em seus pequeninos tênis também desamarrados e no sorriso do seu rosto. Ela tenta amarrar de forma atabalhoada e sorri para mim. Eu retribuo, olho para o cadarço e penso. Ainda posso levantar mais vezes.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

3104 - FF Haraquiri em Porto Alegre



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5363 FF                           Data: 29 de julho de 2019

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVI


O fruto não cai longe da árvore

Meu pai é um colecionador. Teve, hoje em muito menor número, carros e carrinhos (dinky toys), trens Lionel, relógios e até caixas de som de um tipo caro (não me recordo a marca) ele tinha umas 10. O que uma pessoa quer fazer com 10 caixas de som eu nunca entendi, mas alguns devem se perguntar por que eu estranho, se eu mesmo tenho umas 9 mesas de botão. Lembro que eu comprei um som e muito orgulhoso mostrei para ele perguntando o que ele achava e ele de bate pronto:
- Que merda de som!

Um dos hábitos que peguei do meu pai foi visitar leilões, antiquários, etc. Claro que procuro por botões. É muito raro de encontrar, primeiro, porque muita gente faz isso, segundo, porque o território para achar os que me interessam é o Rio e terceiro, é que botão é um negócio raro mesmo, a maior parte das pessoas joga fora.
Mas, há cerca de uns 6 meses apareceu um lote. Botões que chamo de lua cheia, com as cores do meu time (Fluminense) e com o lance inicial baixo. Pensei, vou pegar, coloco um lance automático meio alto e pronto, já que não sou bom nessas vigílias e acho fazer lance por telefone muito démodé. Desconfiava que os botões não seriam suprassumo, mas pensei, estão valendo por um preço baixo.

Ocorre que me ferrei. No dia eu não acompanhei o leilão, mas, quando fui ver, eu tinha ganho, contudo por um preço muito maior do que tinha imaginado. 400 reais!!! Pensei de imediato, algum idiota ficou mandando lance e elevou o preço dessa merda. Me ferrei!!!

Coloquei um lance automático alto sei lá por quê, um quê de compulsivo, e foi isso.
Exclamei mais alguns palavrões e aceitei a ferroada. Recentemente fiquei sabendo quem era meu adversário no lote.

Eu e meu pai ficamos estremecidos um certo tempo e quando retomamos o contato, conversávamos sobre amenidades quando ele puxa o assunto futebol de botão.
- Rapaz, você não sabe o que ocorreu! Eu vi um leilão outro dia daqueles botões antigos que gosto que eram vendidos na Pequenina, sabe, aqueles botões bem redondos.
- Sei pai, aqueles que você comprava no Catete, que eu chamo de lua cheia.
- Isso! Então, eu vi o leilão e pensei, cacilda, time do Fluminense, um monte deles de osso (para o meu pai todo botão é de osso) e mesmo nessa merda de bater palmas em que eu estou, decidi que iria ganhar essa merda. Só que você não imagina o que aconteceu!!!
- O que?
- Eu não sei usar essa droga de internet, então fiquei dando o lance por telefone. E aí foi a cem, duzentos, trezentos, um cara bancando as subidas e pensei, agora ele pára, mas o filho da puta ainda deu um lance de 400 e aí eu desisti. Ficou demais para mim. Mas você não sabe da maior.
- Qual?
- Neste mesmo leilão, eu ganhei um outro lote, umas revistas de trem, então fui pegar lá no Centro do Rio de Janeiro, um calor senegalês, mas, intrépido e com a curiosidade de olhar os botões, que pareciam ser a oitava maravilha do mundo, senão a sétima. Cheguei lá e perguntei à mulher que me atendeu: - Olha, por curiosidade, uns botões que vocês anunciaram, ainda os tem aí?
- Tenho sim, senhor, quer ver?
- Quero sim, por favor.
Depois de uns 15 minutos naquele calor ensurdecedor, me vem uma caixinha muito bunda mole e logo falei:
- Não pode ser, os botões são grandes, bonitos, não iriam caber nessa caixinha.
- Não senhor, são estes mesmos, olha aqui.
- Rapaz, eu rasguei minhas cuecas. Eram uns botões de merda, do tamanho da unha de um anão e pensei, de que merda que escapei, o otário que pegou essas coisinhas vai fazer um Haraquiri na hora. Graças a Deus escapei dessa.
- Amém, pai.


terça-feira, 19 de março de 2019

3103 - FF Botões e Lágrimas



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5362 FF                           Data: 19 de marco de 2019

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVI

O JOÃOZINHO NÃO!!!

Eu quero o Joãozinho
Marcelo era um dos maiores colecionadores do Brasil. Tinha 5, 6, talvez 7 mil botões, dos mais comuns até os raríssimos. Um valor considerável em dinheiro.
Apenas um botão faltava em sua coleção: O Joãozinho.
Joãozinho pertence ao irmão dele, Rodolfo. Botão comum, olhinho, 3,5, mas o terror de sua infância. Nos embates com o irmão sempre era o Joãozinho que marcava o gol da vitória.
Sempre!
Joãozinho avançava pela esquerda, caía pelo meio e já pedia o chute.
Marcelo sentia o suor nas mãos trêmulas, as pernas bambeando, a ajeitada no goleiro era mera protocolo antevendo o grito inevitável que tanto o irritava.
Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E assim foi durante anos. Campeonatos, amistosos, sempre Joãozinho acabava com os sonhos do Marcelo e o grito estridente do irmão, um grito de insulto, uma provocação aos ouvidos de Marcelo ecoava pela casa.

Golllllllllllll!!!!!!!GOLAÇO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A idade porém fez com que os campeonatos naquela sala ampla na Tijuca fossem rareando, o diário para semanal, e daí para mensal até que não jogaram mais.
Rodolfo, mais velho, começou a estudar na UERJ, a frequentar os bares das redondezas e descobriu os prazeres do sexo descompromissado com as beldades da faculdade.
Marcelo, no entanto, sempre foi mais tímido, introvertido. Mesmo quando também passou para a UERJ, alguns anos depois sua vida mudou pouco. Seus amigos eram os botões e sua coleção cada vez maior agora que não dependia mais da mesada modesta do pai e sim de um salário cada vez maior numa empresa de auditoria e consultoria.
O que unia os dois irmãos, a única afinidade na verdade, eram os botões e sem este elo o afastamento quase definitivo era uma questão de tempo.
Não tardou e aconteceu;
Rodolfo viveu bem a faculdade com mais alguns anos de farra depois dela, mas conheceu uma americana e enveredou pela área acadêmica, indo morar em Irvine, Califórnia. Levou o básico, incluindo sua caixinha de 20 botões, entre eles o Joãozinho.
Marcelo não, sempre focado, dedicou-se aos estudos, galgou cada vez mais posições na empresa e conseguiu o cargo de presidente. Casou e foi morar em São Paulo carregando seus 7 mil botões cuidadosamente embalados.
Os encontros entre eles eram apenas no Natal, na ampla sala do apartamento de seus pais, palco das lembranças da infância.
Nestes encontros escassos e com uma convivência cada vez mais distante na qual as palavras saem desajeitadas Marcelo ainda tentava.
- Rodolfo, você não joga há anos, não me venderia o Joãozinho?
- De jeito nenhum, a resposta era automática, incisiva e com um olhar cortante.
Foram feitas mais algumas tentativas, sempre no Natal, até que os pais faleceram e os encontros anuais acabaram.
Nem amigos no Facebook eram.
Perto dos 50, o destino não foi generoso com Marcelo. Numa consulta de rotina descobre um câncer terminal, 2 meses de vida.
Avisa aos amigos, alguns parentes próximos e faz um último pedido para esposa.
Rodolfo fica sabendo por terceiros, reluta em vir, há anos não o vejo diz para a esposa, mas o sangue do meu sangue fala mais alto e o avião pousa num domingo de sol em São Paulo.
Seu irmão já muito fraco, magro, longe dos seus mais de cem kilos que manteve por anos o vê entrando pela porta do quarto do hospital.
Um sorriso discreto, mas sincero permeia o ambiente e emociona a todos.
Primeiro falam amenidades, relembram os bons tempos naquela sala feliz na Tijuca, dias de sol, sem preocupação, apenas jogos de botão, coca cola e a fantasia da infância.
Marcelo percebe o irmão desarmado, naquele quarto de hospital em um estado terminal ele sente um calor que o envolve, como um abraço materno. Sente que é momento.
- Rodolfo, eu vou deixar a minha esposa Valéria e nossos filhos muito bem. Ganhei um bom dinheiro, nada de preocupações eles terão, inclusive fiz um pedido a ela. Meus botões, eu tenho um elo com eles, algo como se fossem uma família. Eles serão enterrados comigo, fiz este pedido a ela. Sim, sei que é estranho, mas ao meu lado sinto que eles estarão me abraçando em meu descanso. Porém, Rodolfo, falta um, somente um pro meu descanso ser completo. O Joãozinho. Você me daria o Joãozinho pra eu finalmente descansar em paz?
Rodolfo olha pro irmão, vê as olheiras, a cara de quem chegou ao final da luta. Pensa como poderiam ter sido mais unidos, como o tempo passou rápido, como dos 20 pros 40 foi um pulo. O que parecia eterno foi um sopro, um sopro de vida. Lágrimas começam a cair, pega na mão do seu irmão, olha bem fundo nos seus olhos e diz.,
- Não Marcelo. O Joãozinho não!!!