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terça-feira, 21 de abril de 2020

3107 - D O Reformatório



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5366 D                           Data: 21 de abril de 2020

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVII


                   TIAS-AVÓS, AVIÕES  E AEROMODELOS

As fotografias do Rio de Janeiro de tempos idos, que o blog “Saudades do Rio” publica, frequentemente trazem à tona eventos ocorridos com todos nós. Comigo se passa exatamente assim e comentei recentemente sobre uma fotografia do prédio da LBA – Legião Brasileira de Assistência, que fica na Avenida General Justo, em frente ao Aeroporto Santos Dumont:

Esta é a minha área, pois passei incontáveis dias na LBA, onde minhas tias-avós trabalhavam desde a fundação. Eu dava, possivelmente, algum distúrbio em casa e era encaminhado para o reformatório, que era a casa delas. Com dois andares e três platôs na Rua Oriente, em Santa Teresa, tinha tudo que uma criança podia pretender, espaço, espaço e espaço; cachorro, jardim para regar, frutas para pegar e ainda, uma mureta baixa rente à parede que podia ser tudo e qualquer coisa – trem para ser assaltado, corda bamba de circo, a mureta era um desafio estático à imaginação sempre acelerada.

Da casa, a gente descia a escadaria que sai da Oriente, esquina com Progresso e, em dois lances, estávamos no ponto final do 10 - Mauá-Fátima, no tempo daqueles micro-ônibus Chevrolet, amarelo e prata, e que usavam sutiã embaixo do parabrisa. Eram chamados de "caixotinho", mas só vim saber disso muito tempo depois...

O dia na LBA era uma janela de tempo integral, debruçada sobre o hangar da FAB, onde se testavam os motores dos aviões. Eu virei um quase especialista em motores Pratt&Whitney, de tanto que ouvi, pois aquilo era música para os ouvidos e eu ficava calminho. Eram C-47, T-6 e Beech, em sua maioria, mas os jatinhos Paris, brancos e lindos como um carro esporte, também eram guardados ali. Vez por outra, um C-82 fazia uma revisão lá. Mesmo quando reinava o silêncio, era só esperar que vinha um trator manobrar um avião, ou, ao longe, um avião decolava rumo ao Pão de Açúcar. Eram tardes deliciosas e só havia interrupção para um lanchinho – que eu não perdia. Pão e circo, duvido que eu desse trabalho, reformatório é para ser assim...

Entretanto, no blog havia outra fotografia, que não era da LBA e sim da atual Defensoria Pública, segundo o Google Maps. Não me lembro do que seria na época, mas o que esta fotografia detonou na minha memória vem agora.

Nos espaços vazios foram construindo prédios, mas restou uma praça ainda existente, exatamente atrás da Defensoria. Nesta praça havia uma árvore (hoje tem umas 10) e era um grande espaço asfaltado cercado de prédios de oito ou dez andares. Na praça não havia um pingo de vento, mesmo estando tão próxima à entrada da Baía da Guanabara. Era ali que os aeromodelistas da minha rua levavam seus U-control.

U-control é um aeromodelo que, acho, não existe mais, nestes tempos em que tudo é radiocontrolado. Do avião partem dois finos cabos de aço, que formam o U na mão do “piloto”. Estes cabos comandam a subida e descida e o avião gira em um círculo de uns 10 metros, seguro pelos mesmos cabos. No Aterro, próximo ao Monumento dos Pracinhas, há duas pistas dessas, mas ali o vento pode ser terrível e a fila de espera para decolar pode ser grande.

A nossa praça era um paraíso, íamos numa Rural-Willys, que ficava na sombra da árvore e nós desembarcávamos com 4 ou 5 aviões; o meu era um Tamanco A, o mais pobrinho a motor da Hobbylândia, lembra um Curtiss P-40, era tosco, sua fuselagem era um perfil de madeira recortada, motor de lado, não tinha flap e não dava loop – zero em sofisticação, mas eu troquei o tanque de combustível por um maior, para ficar mais tempo no ar. E ficava mesmo, mas como resultado de um acidente logo de cara com os fios de controle, adotei linha de pesca como substituto e nunca mais me aborreci. Claro que a elasticidade do nylon dava uma inércia na resposta do avião, mas uma vez acostumado, eu voava sem susto. E planava, eram umas cinco voltas sem motor, descidas devagarinho, o que enervava bastante os coleguinhas à espera, que já agonizavam devido ao meu tanque maior.


O acidente aeromodelístico mais sensacional se deu com um avião bem grande, azul turquesa, com flaps e o escambau a oito, mas o controle partiu antes de completar a primeira volta (é sempre assim, você tem que examinar cada centímetro do cabo, enrolar e desenrolar com o maior cuidado, qualquer dobrinha tem que trocar os cabos, que partem ao menor nozinho). Uma vez partindo um cabo, o segundo também parte e o avião sai em, alegre e solto, voo solo. 

Naquela tarde, com seu leme aberto para manter o avião puxando para fora, o avião fez uma elegante curva  para a direita e alcançou o prédio. Não penetrou na parede, ao contrário, esta foi recebendo o bicho, começando pelo motor, fuselagem, asas, como se fosse um abraço de tamanduá-bandeira. Quando chegou na parte do leme, a parede cuspiu fora os restos ainda fumegantes, que, tepopóf, caíram no asfalto. 

Espetacular.

E já ia ficando por aqui, mas a palavra espetacular me impediu de parar. 

Havia um terreno baldio na Rua Teresina, onde nós, os garotos da rua, amaciávamos os motores, uma tarefa impossível de ser realizada em casa devido à fumaça e ao barulho atordoante. Esse amaciamento levava horas - as mães achavam ótimo longe delas -  e um dia acabei sozinho e com o dedo doído de tanto bater na hélice. Juntei as minhas coisas e vi que os outros haviam deixado um pouco de combustível glow - que não me servia - numa garrafinha de vidro. Pouca coisa, mas brotou a ideia!

Fiz um coquetel molotov e, com razoável temor, ou pavor, preparei um pavio. Acendi - acho que eu fumava.. - e  joguei na muralha que havia no fim do terreno. 

Eu morri de medo daquilo explodir na minha mão, ou de alguém reclamar, mas que nada! Deu tudo certo e certamente ninguém viu; e foi lindo ver, sozinho, as chamas avermelhadas que brotavam das pedras cinzentas daquele fim de tarde. 

Espetacular de novo, criança alguma deste século vai fazer parecido.