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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

2211 - o cyber biscoito


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4011                                         Data: 22 de agosto de 2012
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SABADOIDO  DE  PAUL  A   PAUL

Há quinze minutos que eu conversava com o Cláudio e nenhum ruído que denunciasse a presença do Daniel me chegava aos ouvidos.
Será que foi convocado para trabalhar também neste sábado?
Eu poderia dirigir esta pergunta ao meu irmão, mas resolvi retardar uma resposta que seria decepcionante para mim.
Claudio previa os votos de condenação do ministro Joaquim Barbosa, no julgamento do mensalão, enquanto eu falava do impedimento do ministro César Peluso em votar por causa da aposentadoria compulsória.
A Gina, por quem eu passara, quando rumei para a cozinha, apareceu diante de nós com uma piada sobre as dores de coluna do ministro que falava de pé. Bem, Eça de Queirós escrevia de pé, mas não foi o grande escritor que me veio à mente naquele momento e sim o Daniel, que talvez estivesse dormindo. Mais uma vez, contive a minha curiosidade e nada perguntei sobre o meu sobrinho.
De repente, a porta feita de uma chapa fina de metal estrondou com fortes batidas.
-Você fechou a porta com o Daniel lá fora? - reclamou o Cláudio da mulher.
Daniel, que abrira o portão com a sua chave, encontrou nessa porta fechada um obstáculo para a sua passagem.
-Ainda bem que teremos um sábado, aqui, mais alegre. - pensei com meus botões.
Mal a Gina desimpediu essa porta, meu sobrinho apareceu na cozinha com suas facécias e com o cabelo cortado.
-Cortou com o irmão do Fonseca?
-Sim. - respondeu à mãe.
-Ele sempre corta mal.- criticou, como criticaria até o Barbeiro de Sevilha.
-E o programa antivírus, Carlão?
-Sou analfabeto em assuntos de Informática. A única coisa que eu sei é que não subscreveria as ações do Facebook a 38 dólares, que hoje valem 19 dólares.
-Irei de tarde à sua casa para instalar o programa. – prometeu.
Meu sobrinho foi ao seu quarto, enquanto o diálogo mudava do julgamento do mensalão para a greve do funcionalismo público.
-Você acha que a Dilma cede?
-Gina, se ela suportou porrada de torturadores, você pensa que ela não vai aguentar a pressão de uns sindicalistas que só pensam em encher mais os bolsos de dinheiro em detrimento de outras prioridades do país?
-Mas ela deu com as línguas nos dentes sob tortura no regime militar.
Sem desenvolver esse tema lançado pela oposição acirrada do meu irmão, prossegui.
-Muitos grevistas do meu trabalho voltaram, temem o corte do ponto e a obrigação de compensarem os dias parados.
-Carlão, o cybercafé está aberto. – anunciou o Daniel.
Diante da tela do computador, deparei-me com uma mensagem do meu amigo virtual de nome ecológico, Evandro Verde, sobre as chacretes com o título “O tempo é cruel”. Surgiram, primeiramente, as garotas que dançavam no programa do  Chacrinha exibindo a sua plasticidade em roupas sumárias. Veio-me então à mente o Seu Eugênio, morador da Rua Chaves Pinheiro, que não perdia um programa do Chacrinha apesar do Chacrinha. Na passagem de uma imagem para outra, eu via, agora, as chacretes transcorridos 25, 30 anos; elas estavam tomadas pelas dobras da gordura, pelas rugas. Julguei que não era só a passagem do tempo a culpada por aquela feiura, também contribuiu uma vida sem freios, de entrega às tentações, como Dorian Gray.
Tirou-me dos meus pensamentos o meu sobrinho, que anunciou sua caminhada pelas ruas do bairro.
Em seguida, o chamado insistente do Vagner se fez ouvir; aliás, eu comentei, horas antes, com o Claudio a metralhadora de ansiedade do Vagner, no portão,ao chegar, e ele me disse que o Souzinha, cunhado do Luca era bem pior, disparava uns 20 Cláudios  em 30 segundos.
Cliquei, agora, num vídeo que mostrava o tsunami que adveio do último grande terremoto no Japão filmado do céu. Uma tragédia de proporções bíblicas. Se algo parecido ocorresse no Brasil, seria dada como concretizada a profecia de Antônio Conselheiro, em Canudos: “O sertão vai virar mar e mar vai virar sertão.”
Luca chegou pouco depois do Vagner e os dois, juntamente com o Claudio, deram início a mais uma sessão do Sabadoido.
Do cybercafé do Daniel, eu os escutava falando da festa de encerramento das Olimpíadas de Londres, quando o nome do Beatle Paul McCartney foi citado.
-Veja, Claudiomiro, o nome Paul é francês. Vê-se esse nome na França como Jean-Paul Sartre...
-Sim, mas há ingleses e americanos com o nome Paul.
Se lá já estivesse, eu tentaria falar da última invasão sofrida pela Inglaterra, em 1066, quando os normandos marcaram a Inglaterra irremediavelmente com a influência francesa. Sem esquecer a St Paul’s Cathedral, monumental obra do barroco anglicano, em que o arquiteto Christopher Wren pretendeu uma obra que rivalizasse com a Catedral de São Pedro, em Roma. O provável, contudo, é que nada falasse se lá já estivesse.
Quando cheguei à antiga garagem do fusca da Gina, notei que o Luca estava preocupado, subindo num pedaço de concreto para olhar para a rua.
-O que houve? – quis saber.
-O sujeito que vende mate colocou uma mesa de escritório no meio da calçada, junto ao meu carro. – informou-me.
-Deixa para lá, Luca. – sugeriu meu irmão.
Voltou-se à conversação e o assunto passaria por outro Paul, o Paul Anka.
-Eu julgava que “My Way” fosse do Paul Anka, mas foram dois franceses que compuseram essa canção.
-Luca, o Elio Fischberg lhe disse isso quando o visitamos na sua casa.
-Não foi no hospital?... Porque o meu médico tinha mania de falar em Frank Sinatra e nessa música...  Mas não importa!...
-Paul Anka fez a versão. - interveio meu irmão.
 E o Luca retomou a palavra:
-O Frank Sinatra estava caído, bem por baixo, quando gravou “My Way” e, então, ressurgiu.
-Luca, eu acredito que Frank Sinatra ressurgiu com uma canção que vem sendo cantada pelo senador cassado Demóstenes Torres, “Let me try again”. Canção, aliás, bem chatinha. - manifestei-me.
Claudio foi convocado para tirar a dúvida, mas ele não demonstrou certeza sobre a música que relançou o cantor Frank Sinatra ao sucesso. Mas não importa, porque ele, uma das personalidades mais destacadas do mundo dos espetáculos, esteve caído, mesmo, foi na época em que ficou enamorado da atriz Ava Gardner, quando tentou o suicídio.
-Cadê o garoto, foi trabalhar de novo no sábado?...- demonstrou o Luca inquietação.
-Daniel foi caminhar. - disse o pai dele.



terça-feira, 28 de agosto de 2012

2210 - potências e prepotências


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4010                                          Data: 20 de agosto de 2012
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CARTAS DOS LEITORES

-Li a edição do Biscoito Molhado referente à visita que o eminente educador Roquette Pinto fez ao redator, no entanto, falou-se muito da Rádio MEC e pouco da Rádio que recebeu o nome do divulgador do invento de Marcone no Brasil. Vão aqui os meus protestos. XY
BM: O grande brasileiro estava com a agenda repleta de compromissos, não pôde, por isso, estender por mais tempo a sua visita e falar da sua outra emissora. Tentaremos, agora, preencher esta lacuna.
Edgard Roquette Pinto fundou a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, em 1934, com intenções estritamente educacionais. Doze anos depois, a rádio recebeu o seu nome porque o Prefeito Henrique Dodsworth tudo fez para homenageá-lo, quando se encontrava enfermo.
Com a transferência da Capital Federal para Brasília, em 1960 e a consequente transformação da prefeitura em estado, a emissora passou a ser administrada pelo Governo do Estado da Guanabara. Assim, o ideal de Roquette Pinto se esvaiu pelo ralo, sobrevivendo somente na Rádio MEC. Assim, nos primeiros anos da década de 60 do século passado, tínhamos o deputado Leonel Brizola vociferando pela rádio Mayrink Veiga e o governador Carlos Lacerda vituperando pela rádio Roquette Pinto.
Em 1970, fundido o Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, a rádio passou a ser propriedade do governo Fluminense, ou seja, o Almirante Faria Lima, que não era inclinado à política do atacado, muito menos do varejo, passou a ser a autoridade maior, A Rádio Roquette Pinto possuía sua própria equipe de profissionais e uma programação não comercial, mas não recebia os investimentos que merecia pela história do seu patrono.
Como os transmissores da emissora estavam instalados próximos do complexo da Maré, eles foram roubados em 1955. Assim, por causa da ladroagem, o veículo de propagação de cultura, fundado por Roquette Pinto, ficou fora do ar de 1995 a julho de 2002, ou seja, por sete inacreditáveis anos.
A reinauguração aconteceu em 8 de julho de 2002 e, no ano seguinte, unificaram-se a transmissão AM e FM. Apesar da luta de Carmem Lúcia Roquette Pinto para impor as aspirações do seu pai, a programação  da emissora deixava a desejar.
Com Arthur da Távola, com boa experiência de radialista, agindo como Secretário das Culturas, houve uma melhora significativa na Rádio Roquette Pinto. Hoje, escuta-se música popular brasileira de qualidade, com depoimento de compositores e estudiosos, jazz, jornalismo, prestação de serviços. Não é uma Rádio MEC, mas é uma boa opção para os ouvintes mais exigentes culturalmente falando.

Por que no emblemático número 4 000 do Biscoito Molhado, o redator aludiu a um teste de grupos, sob um chefe, perdidos na lua em busca da nave mãe, quando discorria sobre a elaboração do Plano Real?  Esse teste não mostrava apenas da capacidade das pessoas de se safarem vivas no nosso satélite? XX
BM: Meu caro XX, o Dieckmann, quando foi coordenador-geral de Transportes Marítimos do Departamento de Marinha Mercante, trouxe ótimos palestrantes para aprimorar o conhecimento dos seus funcionários, além de divulgar ideias que recolhia em livros e cursos. O teste dos grupos perdidos na lua sob um líder, que o Dieckmann trouxe de um curso de Administração de Empresas, é bastante significativo, por isso nós o trouxemos à baila para ilustrar a ação do ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso para neutralizar uma hiperinflação que, de 1967 a junho de 1994, foi de 1 142 332 741 811 850%, segundo a Fundação Getúlio Vargas.
Como o líder dos perdidos na lua, o futuro presidente do Brasil formou o seu grupo: Pérsio Arida, André Lara Resende, Edmar Bacha, Pedro Malan e outros. Sem queimar etapas, ouviu as ideias dos seus subordinados sem a prepotência burra de um sociólogo que se julga mais conhecedor da matéria econômica do que os economistas. Em seguida, colocou em prática os pensamentos dos seus subordinados, como chefe do grupo que era, neutralizando as barreiras que se apresentavam, como o viés populista do presidente Itamar Franco e, mais tarde, a heterodoxia econômica do ministro José Serra.
Assim, o Plano Real nasceu e chegou aos 18 anos, sólido e forte. Antes, outros líderes, que conhecemos bem, sem a mesma capacidade intelectual, com planos chamados de pacotes, nunca encontraram a nave mãe. Ficaram perdidos na lua maldizendo os exitosos.

Sobre a visita que o redator deste periódico fez aos fantasmas do Palácio Capanema com o ex-revisor, Elio Fischberg, eu gostaria de saber se o arquiteto foi mesmo Le Corbusier. XY
BM: O projeto do Palácio Capanema foi feito por Lúcio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira, mas o arquiteto franco-suíço Le Corbusier exerceu forte influência sobre essa equipe a ponto de essa obra ser considerada um marco no estabelecimento da Arquitetura Moderna Brasileira. Segundo os estudiosos, o projeto do prédio do Ministério da Educação e Cultura (na época era Saúde no lugar da Cultura), utiliza a arquitetura funcionalista de matriz corbuseana, além de introduzir novos elementos.
O projeto seguiu as recomendações de Le Corbusier para uma “nova arquitetura”: bloco principal suspenso sobre pilotis, estrutura portante livre das paredes e divisórias com vedação por cortinas de vidro. Assim, o Palácio Capanema foi uma das primeiras obras arquitetônicas do mundo a fazer uso do brise-soleil com o objetivo de evitar a incidência direta da radiação solar em sua fachada nobre.
O edifício, localizado na Rua da Imprensa , nº 16, possui 14 andares sobre o térreo, em pilotis, o qual possui um pé direito de mais de nove metros de altura. A implantação ocorreu de maneira que criasse, no terreno, uma praça pública e não impedisse  a passagem de pedestres.
Do bloco principal, projeta-se a ala do auditório, no nível térreo e uma marquise na oposição oposta, sobre a qual foi projetado o terraço-jardim por Roberto Burle Marx.
Le Corbusier ficou encantado com a configuração da Baía da Guanabara e propôs que a construção do Palácio Capanema se desse  próxima ao mar, e não no centro da cidade, mas não havia dinheiro para tanto. Contudo, a influência do pensamento do franco-suíço sobre os arquitetos brasileiros foi óbvia.
Os princípios de modernidade arquitetônica de Le Corbusier se espalhariam pelo mundo.





segunda-feira, 27 de agosto de 2012

2209 - briga de cachorro com urubu


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4009                                          Data: 18 de agosto de 2012
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AS IDADES DOS TAXISTAS

-E o metrô?
Não direi que a pergunta do 184 voltava como leitmotif wagneriano porque estaria colocando boa música em  cacofonia.
-Muita gente. - limitei-me a dizer.
-Eu viajava muito de metrô, quando trabalhei na Prefeitura. Eu sou economista.
-Você me disse isso numa outra viagem. - lembrei-lhe com o intuito de que ele descobrisse como era repetitivo.
Ele continuou:
-No metrô, a minha autoestima despencou.
Percebi que não precisava puxar por ele, pois se deixava levar pelo som da própria voz.
-Eu viajava de pé, como sempre, com uma das mãos agarradas no balaústre. Notei, então, que uma senhora me olhava. Ela deveria alargar as calças e os vestidos na cintura e nos quadris, mas não era muito gorda; beirava uns 45 anos. De repente, ela me dirigiu a palavra.
Apesar de curioso com essa cena, falei um monossilábico sim com tonalidade de pergunta.
-“O senhor deseja se sentar?”.
Fez uma pausa, que eu não preenchi com comentário algum, e prosseguiu.
-Ela me tomou por um idoso. É verdade que tenho 62 anos, mas ninguém me dá mais de 52 e eu acreditava nisso.
-Com o oferecimento dessa senhora, você não acredita mais? - intervim com um recôndito sadismo.
-Balancei. O pior de tudo era que aquela senhora gorda não estava no banco dos idosos, gestantes, deficientes físicos. Julguei-me um Matusalém.
-Ela, com a melhor das intenções, lhe fez um mal.- comentei.
-Quase procurei um psicanalista com se fosse um argentino.
E, repentinamente, enveredou para outro tema:
-Sabe que o país onde há mais pacientes de psicanalistas é na Argentina?
-Os hermanos sofrem de complexo de culpa por votarem tão mal. - não perdi a piada.
-A Cristina Kirchner está esculhambando o país; eles precisam desesperadamente de dólares.
Não pretendendo testar seu conhecimento de economia, falei-lhe da desolação de um torcedor argentino na Copa do Mundo de 1982:
-Depois da derrota para o Brasil de 3 a 1, eu li, no Globo, um portenho, que disse: “Perdemos, neste ano, a Guerra das Malvinas para a Inglaterra, acabamos de ser derrotado pelo Brasil no futebol. Só falta agora descobrirmos que Gardel não era macho.
-Pelo menos, nessa Copa na Espanha, o Brasil ganhou da Argentina. - manifestou-se mais uma vez.
A chegada à Rua Modigliani encerrou a nossa conversa que, pela disposição verbal do taxista, iria até Corrientes, 348.


No dia subsequente, a corrida se deu no táxi do Paizão.
-Tudo bem? - indaguei, enquanto afivelava o cinto de segurança.
-Sendo você o meu primeiro cliente do dia, é sinal de que tudo está bem, pois o seu astral é muito bom.
-Embora ele estivesse enganado, agradeci.
-Deu a sua caminhada hoje?
-Rapaz, acompanhei a patroa nas compras da semana. Isso me impediu de andar pelas ruas de Maria da Graça.
-Procure manter uma rotina de caminhadas. - aconselhei.
-É claro; o meu cardiologista ordena que eu ande três vezes por semana no mínimo.
-No táxi do 081, dia desses, ele reclamava que teria de caminhar, depois de me deixar na Modigliani, queria mesmo, confessou, ir para casa, jantar e dormir.
-Eu tenho 78 anos de idade. A minha carteira de motorista foi tirada em 1955 (*). Estou aposentado desde 1992. Dirijo, agora, das quatro horas da tarde às onze e meia da noite, mas não saio de casa com a obrigação de fazer xis de diária.
Eu apenas o ouvia, para não interromper o fluxo das suas palavras.
-O 081 possui vários imóveis, além de outros bens... Não tenho olho grande nas suas propriedades; Deus o ajude, porém, ele fica numa ansiedade incrível, gritando o número dele no rádio da cooperativa em busca de passageiro. Parece que está com a corda no pescoço. Longe disso...
-Ele não desfruta o dinheiro que tem. - comentei.
-É isso. Viver não é só trabalhar. Eu administro o meu tempo.
-O senhor deve trabalhar, porque o cérebro tem de se manter ativo.
-Eu sei que não é aconselhável parar, nem me estressar. - enfatizou o Paizão.
-Transformar o trabalho em lazer é uma das mais sábias conquistas do cidadão. - disse-lhe.
-É o que eu tento fazer nos meus 78 anos de idade.
-E o senhor não aparenta.
Quase lhe disse que estava tão bem quanto o octogenário Sílvio Santos, mas ao notar a sua cintura, que se alargava ainda mais na posição sentada, calei-me a tempo.
-Rua Modigliani, aqui eu deixo o meu primeiro passageiro de hoje. - vibrou a voz do Paizão.


 O taxista do outro dia foi o Flamenguista. Chamo-o assim porque há um pequeno escudo do Flamengo no painel do seu carro, no entanto, raramente fala de futebol, menos ainda do clube da Gávea. Nessa corrida, tratou das agruras que sofreu no trânsito naquela semana.
-Eu rodava na Avenida Brasil quando caiu um contêiner.
-Era um contêiner refrigerado de vinte pés com frangos.
-Eu sei que aquele trambolho, em plena Avenida Brasil, na altura de Benfica, provocou engarrafamentos num raio de quilômetros e mais quilômetros, refletindo-se até em Niterói.
-Alguns dos poucos colegas meus, que não entraram de greve, chegaram atrasados ao serviço.
-Para culminar, ainda houve o protesto dos motoristas das Vans.
Sem pausas, foi adiante:
-Eu estava contente porque peguei, logo que saí de casa, uma corrida boa para Fazenda Botafogo, mal sabia que me depararia com aquele engarrafamento. Feitas as contas: perdi dinheiro.
-Ouvindo o noticiário, soube que o contêiner caiu às três horas da manhã.- disse-lhe.
-Eles não podiam remover esse contêiner até seis horas da manhã? - mostrou-se inconformado.
-O estorvo só foi removido às onze horas da noite por causa do protesto dos motoristas das vans.
-Este país não tem jeito.
Tirou as mãos do volante e as levou à cabeça, mas podia fazê-lo, pois o seu táxi já parara na Rua Modigliani.


O taxista, que se seguiu, não costumava frequentar o ponto da rua Domingo de Magalhães, por isso titubeou quando eu lhe disse o nome da minha rua.
-Onde é mesmo?
-Junto à Praça Manet.
-Sei qual é a praça, eu ia lá anos atrás, sempre cheia de macumbas.
-Os despachos foram comuns até os anos 90. De sexta-feira para sábado, eles eram tantos que os urubus desciam para bicar as galinhas sacrificadas que colocavam nos alguidares (**). Bicavam e brigavam com os cachorros vadios que também queriam participar daquele banquete.
-Era isso mesmo. - exultou ele com essas lembranças malsãs.
Com o sucesso da igreja do bispo Macedo, muitos umbandistas se tornaram evangélicos, e o número de macumbas caiu drasticamente.
-É por isso que o bispo está cheio da nota.
Depois dessa observação, a conversa esfriou e fomos em silêncio até o destino que eu lhe indicara.

(*) Uma investigação para o redator do seu O BISCOITO MOLHADO: qual terá sido o primeiro táxi do Paizão?
O Distribuidor aposta em Chevrolet 37.

(**) Taí um assunto merecedor de uma edição exclusiva. Briga de cachorro com urubu, os sindicatos dessas duas categorias deveriam entrar com ação contra os evangélicos, que destronaram a macumba. Ou não?





quarta-feira, 22 de agosto de 2012

2208 - dinheiro no bolso


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4008                                          Data: 17 de agosto de 2012
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TÁXI OLÍMPICO

-E o metrô?
Depois que o 184 apareceu no ponto da Rua Domingo de Magalhães, é a terceira vez que entro no seu táxi e a conversa se inicia com a mesma pergunta.
-Estava vazio.
-Vazio?!... – expressou uma admiração comparável a de uma pessoa realista que foi informada que todos os corruptos serão agora punidos no Brasil.
-Dentro dos parâmetros normais, considera-se vazio um trem de metrô em que os passageiros viajam em pé sem se esbarrarem.
-Duas pessoas por metro quadrado?
-Mais ou menos isso. -
Depois de satisfazer a sua curiosidade, prossegui:
-No entanto, alguns desses passageiros pegam o celular e falam...
-Não podem falar?- interveio.
-De uma maneira educada, sim, mas não em voz alta, expondo a sua privacidade para todos. Eu não quero saber se o namorado da filha de um desconhecido sai à noite para a balada, nem de conhecido quero saber, aliás. - expressei-me com alguma irritação.
-Eu não consigo falar baixo, as minhas cordas vocais são assim... – manifestou-se o 184.
Continuei:
-Descobri, por acaso, que pessoas falando no telefone perto de mim, em voz alta, envelhecem meu cérebro em 15 anos pelo menos.
Sem esperar qualquer reação dele, fui adiante:
-Há um teste japonês, na internet, em que você calcula a idade do seu cérebro através da memorização de algarismos em décimos de segundo. Pois bem, na sala do meu trabalho, no meio do silêncio, eu me submeti ao teste e obtive como resultado 36 anos. Assim que me submeti pela segunda vez ao mesmo teste, o telefone da mesa ao lado tocou e foi atendido por um colega, com cordas vocais de barítono, que deu de contar as fofoquinhas da atual greve do funcionalismo público. Terminei o teste e a minha idade pulou de 36  para 51 anos.
-Você prestou atenção no que ele falava?
-Com aquele vozeirão?!... Havia um compositor, Villa Lobos, que compunha no meio de uma barulheira infernal. Ele dizia que os ouvidos de dentro não têm nada a ver com os ouvidos de fora. Eu não tenho esse poder de abstração.
Quando chegamos na Rua Modigliani, o 184 voltou a falar do Edinho, sua   ideia recorrente como o metrô.
-Sim, agora eu sei quem é o Edinho.
E rumei para casa.

No dia subsequente, mostrei-me preocupado; descia as rampas da estação de Maria da Graça e não avistava um táxi sequer no ponto da Rua Domingo de Magalhães. Passei entre os estudantes do CEFET, que frequentam apenas as aulas nas oficinas por causa da greve dos demais professores e quase corri para atravessar a rua. Nesse instante, despontou um táxi apressadamente; fiz sinal e ele parou.
-É o 009, o Gaguinho. – constatei, enquanto ele abria a porta da frente.
-Parei porque era você.
E explicou-se.
-Recebi, nesse momento, um telefonema do meu filho; ele precisa ir agora a Madureira, e está na Rua Luiza  Vale.
-É caminho. – aparteei.
-Ele vai jogar handebol.
-O Brasil se saiu bem nesse esporte, em Londres, talvez agora haja divulgação na mídia. - comentei.
-Ele joga handebol muito tempo antes das Olimpíadas de Londres. Treina no Fluminense. – gaguejou o 009 mais do que o costume.
-Eu assisti a alguns jogos na televisão.
-O handebol é muito violento. – gaguejou ainda mais.
-Eu vi a fotografia de duas africanas estrangulando uma norueguesa, se não me engano era da Noruega, no meio de uma partida.
-Ela ficou desacordada. - completou o 009 a notícia.
-Houve muitas atletas truculentas nessa Olimpíada de Londres; por exemplo, na partida dos 100 metros, um camarada atirou uma garrafa de plástico na pista...
-Na frente do Usain Bolt?... – interrompeu-me.
-Não, os atletas não viram porque foi arremessado atrás deles sem prejuízo algum para a corrida.
E continuei com a narrativa.
-Mal o sujeito arremessou a garrafa, foi imobilizado por uma judoca da Holanda, com mais de 1,80 m, de altura,  que o entregou aos policiais.
-Chegamos a Rua Modigliani. – avisou.
-Um bom jogo de handebol para o seu filho. - desejei, enquanto saltava para a calçada.

Na quarta-feira, o táxi do 081 ponteava a fila do ponto da  cooperativa.
-Lá vamos nós. - falou ele, na sua voz altissonante, sem perder o acento português, apesar das muitas décadas no Brasil.
Notei que não acionara o taxímetro, como nas últimas dez ou quinze corridas que fiz com ele, mas nada falei, pois receberia os 8 reais com gorjeta.
-Você agora, depois do trabalho, vai para casa?
-Sim. - respondi.
-Eu, depois dessa corrida, vou caminhar.
-As caminhadas são muito boas.
Ele, no entanto, se mostrou contrariado.
-Eu não queria caminhar, mas tenho de ir porque meu pé... deu um negócio no meu pé. – disse abrindo e fechando a mão por várias vezes.
-Seu pé latejou. – tentei adivinhar, imaginando o dedo que lhe fora amputado por causa da diabetes.
-Isso aí, latejou. Eu gostaria de ir para casa jantar e dormir, mas tenho de caminhar. O médico mandou.
-Eu caminho uma hora.
-Muita coisa; meia-hora para mim está bom e três vezes por semana.
-Muito pouco. – pensei sem me manifestar.
-Olha a sujeira dessas árvores. - disse de mal humor, indicando as folhagens no chão.
Aquela má vontade com os vegetais me fez esquecer das limitações do 081.
-As árvores são vitais para nós por causa da fotossíntese.
-Que porra é essa? – alteou ainda mais a voz.
-As folhas absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio.
-Olhe como elas estão: secas, caídas, entrando nos bueiros para entupir tudo nos dias de chuva.
Emudeci, só falei quando saltei do seu táxi para lhe desejar uma boa caminhada.

No outro dia,  peguei o táxi do Botafoguense.
-E o nosso técnico que colocou o Seedorf no banco contra o Atlético Goianiense... – reclamou mal eu encaixara o cinto de segurança na cintura.
-A argumentação do Oswaldo de Oliveira é plausível; Seedorf veio da temporada europeia, entrou de férias e, agora, estaria em pré-temporada, ou seja, o calendário dele, fisicamente falando, ainda não se ajustou aos jogadores de futebol daqui.
-Ele só jogou vinte minutos. – lamentou.
-Você viu que, no dia seguinte, o Seedorf corria em volta do campo. Diante do espanto dos repórteres, ele explicou que precisava de mais atividade física para entrar em forma.
O Botafoguense me ouviu e se manifestou:
-Veja se a garotada faz isso?... Mal termina o treino, eles disparam para os seus carrões imaginando a noitada.
-Na época dos grandes craques, eles ficavam depois do término do treino para aprimorar batidas de falta, entre outras coisas. – lembrei.
-É verdade.
-Isso não acontece só no futebol, em outros segmentos também. No meu trabalho, por exemplo, os jovens, de maneira geral, só pensam em dinheiro no bolso e não em se tornarem mais capacitados para o serviço.
E o papo se encerrou com a chegada do táxi à minha rua.














2207 - momentos dobrados e redobrados



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4007                                      Data: 16 de agosto de 2012
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NOS BASTIDORES  DO  PALÁCIO CAPANEMA

Subitamente, eu e Elio, que estávamos junto aos voluntários da pátria que retornavam da Guerra do Paraguai, nos vimos em pleno Rio de Janeiro, em 1936, próximos de arquitetos. Como isso ocorreu? Dirão os leitores da nossa viagem pelo tempo que a causa foi o ópio, mas, para que não imaginem que este periódico enaltece qualquer tipo de droga, garantimos que não. Dirá o Dieckmann que tudo foi provocado pelo pó de pirlimpimpim que choveu sobre nós. Que seja.
-Carlos, aquele cidadão, debruçado sobre uma prancheta no meio da turma, é o Lúcio Costa e o Oscar Niemeyer também está aqui..
-Veja, Elio, um senhor se aproxima deles.
Em seguida, propus que os ladeássemos com o objetivo de ouvi-los.
-O que o senhor acha do projeto, Le Corbusier? - mostrou-se ansioso o Lúcio Costa.
-O edifício do Ministério da Educação e Saúde tem de destoar da merda do Agache com aquele estilo eclético horripilante dos prédios dos outros ministérios. - esbravejou.
-Carlos, o Le Corbusier é rival do arquiteto francês Alfred Agache, que responde pelo plano urbanístico da nossa cidade, incluindo a Esplanada dos Ministérios. - murmurou-me o Elio.
-Olha, Elio, ele faz modificações no projeto.
-O ministro é vaidoso e quer um palácio nos trópicos, o Palácio Capanema. – enfatizou Lúcio Costa.
Olhamos no relógio e constatamos que o tempo voara, já estávamos em 1945, nos estertores do Estado Novo.
O Palácio tinha sido inaugurado; ostentava toda a fachada de vidro com persianas brise-soleil projetadas por Le Corbusier de tal maneira que vedava o sol acompanhando o seu movimento.
-Carlos, o Palácio Capanema é o embrião das obras que serão criadas por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer daqui a dez anos, em Brasília.
-Muitos acadêmicos consideram isto aqui uma aberração. - frisei.
-Estive, por aqui, poucos anos antes de nós iniciarmos esta série de viagens pelo tempo e constatei que a decadência se instalou com elevadores interditados, pisos com rachadura e infiltrações. Soube, depois, que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) envida esforços para reformar esse prédio de tantas histórias. – disse o Elio.
-Já que estamos aqui, em 1945, vamos tirar proveito e testemunhar algumas dessas histórias. - animei-o.
Vimos, então, o ministro Gustavo Capanema, ao telefone, solicitando de um marchand estadunidense quadros de Van Gogh e Picasso para pôr no seu gabinete.
-Não conseguirá; não há verba para isso. - cochichou o Elio.
Em seguida, o ministro ligou para Cândido Portinari e contratou uma obra, com motivo marinho, para ficar sobre os pilotis do edifício. O artista brasileiro pintou, então, um painel de 33 metros quadrados com inúmeros peixes enquadrados em losangos.
-Elio, você vê o que eu vejo?
-Os peixes têm a cara do ministro Gustavo Capanema.
-O Carlos Lacerda dizia que o ministro tinha uma testa de dois andares, os peixes também.
-O Portinari caricaturou o Gustavo Capanema. - deduziu o Elio.
O ministro teve o mesmo pensamento, pois mandou que encaixotassem tudo aquilo e, em seguida, pediu que o pintor apresentasse outra obra com motivo marinho.
Eu e Elio nos encontrávamos no térreo do edifício, quando vimos um grupo de mulheres à espera dos elevadores.
-Elio, vamos nos juntar a elas, pois nada temos a perder e tudo a ganhar.
-Talvez haja uma costureira entre elas. - assanhou-se.
A mulherada saltou no segundo andar onde trabalhava o chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema.
-Elio, é o Carlos Drummond de Andrade. – exultei de admiração.
-E ele fala de poesia para elas. - disse um Elio não menos extasiado.
-Carlos, recite um dos seus poemas para nós. – solicitou uma das suas admiradoras.
O poeta se escusou, alegando que era mau declamador, mas as moças retrucaram com o argumento que Manuel Bandeira sim, declamava mal, mas ainda assim as atendia. Dando-se por vencido, o poeta recitou “Poema de Sete Faces”.
Nesse momento, Lúcio Costa passou e, pela sua expressão fechada, via-se que aquela chacrinha o desagradava. Ele, na verdade, se sentia incomodado com aquele fluxo de admiradoras porque a sua sala ficava ao lado; mudou, então, de sala.
Não passou muito tempo e a sala do chefe de gabinete do ministro também foi transferida, situava-se, agora, no oitavo andar. Junto à porta de entrada dessa sala encontrava-se a biblioteca e a responsável por ela era a funcionária Lygia Fernandes.
-Carlos, as mulheres que agora sobem ao oitavo andar para ouvir as poesias de Drummond não conseguem o seu objetivo.
-A responsável pela biblioteca sempre diz, para elas, que o senhor chefe gabinete está em reunião com o ministro.
-Carlos, agora eu me lembro, Lygia Fernandes foi a outra na vida dele por mais de trinta anos, até ele morrer.
Não era só essa história do Palácio Capanema que atraía a nossa atenção.
Um dos mais elogiados escultores do Brasil, Celso Antônio, contribuiu com a estátua “Maternidade” para a arte do Palácio Capanema. No alto da escada que conduz ao primeiro andar, lá estava ela para ser apreciada.
-O que você acha, Carlos?
-Gostei, mas Lúcio Costa, que passou perto de mim, pelo rosto crispado, parece que tem outra opinião.
-Talvez seja uma dor de cabeça apenas. – especulou o meu companheiro de viagem pelo tempo.
E um dia as pessoas que chegavam ao Palácio Capanema deram pela falta da estátua.
-Onde está a “Maternidade”? – perguntavam sofregamente.
Mistério profundo.
Meses se passaram, e nada. Jorge Amado, lá de Moscou, até pensou em escrever um livro que intitularia “O Sumiço da Estátua”, mas terminaria, anos depois, redigindo “O Sumiço da Santa”.
Um funcionário chegou, meses depois, ao trabalho anunciando que vira a “Maternidade” numa praça pública.
Era a estátua, de fato, de Celso Antônio.  Lúcio Costa, chefe de arquitetura do Departamento do Patrimônio Histórico, confessou o “crime”.
-Aquilo me desagradava profundamente. Eu não aguentava mais me deparar com essa estátua todos os dias. Eu a doei, então, para a prefeitura. – revelou.
-Pelo jeito, a “Maternidade” não volta mais para cá. – previu o Elio muito acertadamente.
Enquanto isso, no telefone, o ministro Gustavo Capanema, que não conseguira quadros de Van Gogh e Picasso, cobrava os quadros que pedira ao Museu Nacional de Belas Artes. Dias depois, chegaram “Oficinas”, de Pancetti, e “As Gêmeas” de Guignard.
-São duas belas obras. – disse o Elio, quando as viu.
-O ministro não vai devolver esses quadros ao Museu Nacional de Belas Artes. – apostei.
-Vamos ao oitavo andar ouvir as poesias do Drummond. - propôs o Elio.
Fomos, mas ele estava namorando.[†]





 


[*] O redator do seu O BISCOITO MOLHADO foi alertado para a falta de lógica de dois viajantes poderem surpreender o poeta e a namorada em outro dia que não o da visita. Elegantemente, aquiesceu, porém devolveu e manteu, considerando que a emoção do encontro com o poeta deu-lhe a devida licença. Acredita o Distribuidor que tanta poesia o faria também resguardar o poeta, caso a Dona Lygia não houvesse chegado antes.
Claro que não existe manteu, mas se ele pode, o Dieckmann também pode.
[†]  Bem que o Dieckmann avisou.