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domingo, 2 de agosto de 2020

3111 - Auto-censura não existe (reedição)


O BISCOITO MOLHADO 

Edição 2106     Data: 30 de junho de 2004 
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NO ÚLTIMO ATO, O TIRO 

 - ”Eu já não te vi em algum lugar?”

Ora, uma pergunta dessa feita ao Dieckmann é uma oportunidade para ele abrir toda a sua plumagem de pavão. 

- “Não teria sido no Faustão?... Ou foi no Bom Dia, Brasil?... Também dei umas entrevistas na TV a cabo...” 

Não; o senhor que fora apresentado ao Dieckmann, por mais que exigisse da memória, não se lembrava do local. 

 - “Califórnia... Sou nome de armazém na Califórnia, sem o “c”... 

Explico: um admirador mexicano, não muito afeito aos sobrenomes batavos, comeu o “c”, e meu nome ficou Diekmann. Diekmann Store. Não teria sido lá que você viu, não a mim, pois viajo mais à Europa, mas o meu nome?” 

Não. Não fora no estado da indústria cinematográfica. A memória do interlocutor do Dieckmann falhara, mas o seu entendimento não: fora apresentado a uma pessoa assediada pela mídia. Nosso amigo percebeu, então, que era o momento de se mostrar mais próximo da realidade. 

- “Apesar dessas aparições, evito o que posso expor-me na mídia. Sabe como é: aglomerações ao redor... 

Agora mesmo, o Faustão me convidou de novo para ir ao seu programa. Recusei o convite. Pediu-me, então, permissão para mostrar o meu retrato. Dei a permissão, porém impus uma condição: 

“Pode mostrar o meu retrato desde que seja o mais rápido possível.” 

Faustão ainda tergiversou, gaguejou com aquele sotaque paulista que a disputa no IBOPE com o Gugu se acirrara, que precisava me mostrar mais... Não adiantou: fui incisivo. 

No dia seguinte, amigos falavam que viram o meu retrato no programa do Faustão, e que o meu retrato estava com pressa...” O interlocutor do Dieckmann, que já estremecera com um estalo na memória quando ele falara no sotaque do apresentador da TV Globo, sentiu a mesma sensação de Arquimedes quando descobrira a Lei do Empuxo. 

- “Eureka! Foi em São Paulo... Eu te vi em São Paulo por ocasião das festividades dos 450 anos da cidade com um amigo, assistindo a um desfile de carros antigos.” 

- “É verdade – meneou Dieckmann a cabeça – eu lá estava com um amigo que pertencera ao governo da prefeita Marta Suplicy. Fui lá para fazer-lhe companhia, ver os carros clássicos e, principalmente, porque, dias antes, a Rita Lee se queixara num show, no Canecão, que não via celebridades em São Paulo...” 

Nesse momento, Dieckmann tentou não imitar, mas caricaturar a Rita Lee: 

-“...Paulista não sabe fazer festa. Vejam os 450 anos de São Paulo...Enquanto no Rio se esbarra em cada esquina com uma celebridade, lá em São Paulo o máximo que a gente vê é a Hebe.” 

Dieckmann, agora, despia a máscara da Rita Lee, e vestia a sua: 

- “Resolvi, mais pela queixa da cantora e compositora, ir a São Paulo, naquela ocasião. Não poderiam agora reclamar de falta de celebridade na festa dos 450 anos...” 

Bem, leitores do Biscoito Molhado, com pequenas traições aos fatos, pois procuramos deter o máximo o ímpeto da nossa imaginação, foi esse o diálogo do Dieckmann com o senhor que sofrera uma rápida crise de amnésia. Dirá um, ou talvez dois leitores mais caturros, que nós incomodamos muito o nosso amigo com piadinhas. Bem, às vezes comparamos o Dieckmann com personagens do Nélson Rodrigues, como recentemente à consultora sentimental Myrna, como ao Otto Lara Resende... Alguém talvez diga que o escritor mineiro nunca foi personagem nelsonrodriguiano; mas foi. Nélson Rodrigues escreveu centenas de páginas galhofeiras onde Otto Lara Resende se destacava como personagem. Muitos estudiosos garantem que a frase “O mineiro só é solidário no câncer”; foi criada na realidade por Nélson Rodrigues que, para deixar Otto Lara Resende em situação constrangedora perante os seus conterrâneos, atribuiu-lhe a autoria. Não contente, o dramaturgo escreve uma peça em que um personagem cita por diversas vezes essa “frase do Otto”, e a intitula “Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende”. 

Carlos Drummond de Andrade, que nada tinha a ver com isso, a não ser a mineiridade, telefonou certa vez para Otto Lara Resende, incitando-o a dar um basta a esses deboches do Nélson Rodrigues. Não me recordo onde li isso, faz muito tempo, mas a resposta do escritor ao poeta que o chamava ao mau humor... digo: à compostura de macho, foi mais ou menos esta: 

- “Fique sossegado: quando chegar ao último ato, eu dou um tiro no Nélson Rodrigues.” 

Talvez no quinto ato do Rigoleto – sussurrou, talvez.  

Eles, na verdade, eram fascinados um pelo outro. Conta Ruy Castro, no “Anjo Pornográfico”, que Nélson Rodrigues muitas vezes batia à porta da casa do Otto Lara Resende e ouvia da empregada o aviso que o patrão não estava em casa. Passados alguns minutos, o dramaturgo repetia o ritual até o próprio dono da casa aparecer e abrir a porta com essas palavras: “Está bem, Nélson, você venceu.” Era tamanho o encantamento que escritor mineiro exercia sobre os ouvintes, numa conversação, que o cronista Rubem Braga afirmava que o Otto Lara Resende era que nem passarinho: de quem pegasse primeiro. 

Nesta altura da nossa edição, talvez um ou outro leitor note o desaparecimento do Dieckmann. Mas é proposital: vamos deixá-lo desaparecido, senão ele fica mais mascarado do que já é.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

3110 - Biscoito Sacro-Fundamentado (reedição)

O BISCOITO MOLHADO

Edição 2105                                            Data: 29 de junho de 2004       
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   DO TIO DO ESTÁCIO DE SÁ AOS JUDEUS NO BRASIL

Na Fortaleza de São João, na extremidade do bairro da Urca, foi fundada a cidade do Rio de Janeiro por Estácio de Sá que, pouco depois, morreria aos 24 anos, flechado pelos tamoios que lutavam ao lado dos franceses. Parece que não existia uma estátua para lembrar o fundador da nossa cidade pois, não faz tanto tempo assim, uma música com o refrão “Cadê a estátua do Estácio de Sá?” alcançou um grande sucesso na voz do Miltinho. Hoje, no entanto, vê-se a estátua de Estácio de Sá, trabalhada em  bronze, lá na Urca. 

O barítono Paulo Fortes, com um diafragma infinitamente  mais possante do que o do Miltinho, andou fazendo pergunta quase igual: “Cadê a estátua do Carlos Gomes?”; isso porque ela estava  bem longe da casa da ópera da cidade do Rio de Janeiro. Resolveu, então, contratar uns sujeitos parrudos que trouxeram o Carlos Gomes para o seu local de direito, o Teatro Municipal e enviaram a estátua de Chopin, que ali se encontrava com a sua melancolia de romântico empedernido, para a Praia Vermelha. Dia desses, na Rádio MEC, num programa sobre serestas cantadas por Paulo Fortes, a viúva do barítono, Dona Zilca Fortes, contou como o marido arquitetara o remanejamento das estátuas de Carlos Gomes e de Chopin.

Estátuas têm motivado confusões e, no Don Giovanni de Mozart, a estátua do comendador assassinado resolveu dar um corretivo no seu assassino no fim da ópera, já que os vivos não se mexiam. Mas vamos retornar ao Estácio de Sá, ou melhor, ao seu tio Mem de Sá.

Mem é uma letra hebraica, uma das três letras mães, Aleph, Mem e Schin. Há indícios, portanto, de que o governador-geral do  Brasil, sucessor de Duarte da Costa, tenha sido judeu como, anteriormente a ele, Tomé de Sousa. Contudo, o que aprendemos  nos livros de escola é que os judeus chegaram ao Brasil com as invasões holandesas no Nordeste em busca de liberdade religiosa. Sabemos hoje que o principal estímulo para a colonização sistemática do Brasil, a partir de 1516, foi a cultura da cana de açúcar para cá trazida da Ilha da Madeira por “alguns judeus proscritos de Portugal”, segundo um relato de 1779, redigido pelo membro da Academia Real de História e Letras de Sevilha, Don António Capmany de Montpalau. Também  sabemos hoje que, no grupo de Fernando de Noronha, o cristão-novo que arrendara terras no Brasil, encontravam-se outros cristãos-novos que se tornaram senhores de engenho, mercadores de açúcar, administradores de fazenda, etc. 

Acontecia com o Brasil, no que diz respeito aos judeus, o que acontecera  com Portugal muitos séculos antes.

Nas invasões romanas, às terras que seriam posteriormente Portugal, avultavam muitos povos considerados decisivos na formação étnica dos portugueses: sírios, itálicos e, principalmente, judeus.  Lê-se no Pequeno Dicionário de História de Portugal que inscrições funerárias descobertas no Conselho de Lagos, no século VI e VII, comprovam a existência dos judeus no que viria ser a terra lusitana. 

O leitor do Biscoito Molhado já percebeu, certamente, a nossa intenção: provocar o Causídico Verborrágico, catedrático no assunto, a complementar com palavras e mais palavras esta nossa pequena  resenha. Mas prossigamos na nossa provocação.

Em 1147, Dom Afonso Henrique, ao tomar Santarém dos mouros, encontrou populosas e proeminentes colônias judaicas. Os judeus gozaram, na verdade, de certa paz na terra lusa, sobretudo do século VIII ao século XI e de 1450 a 1480, quando alcançaram grande prosperidade. Porém, já começaram a aparecer na Espanha as  perseguições ferozes aos judeus: Toledo, em 1355, com a estimativa de 12 mil mortos, Palma de Mallorca e Sevilha, em 1391, com 50 mil mortos. Em 1478, com a instituição da  Inquisição, muitos milhares de espanhóis buscaram refúgio em Portugal. 

Em 1492, foi declarada a expulsão de 90 a 130 mil judeus da Espanha que, então, se transferiram para  Portugal. Entre esses judeus, encontrava-se Isaac Abravanel, ascendente do Sílvio Santos Vem Aí, e que fora ministro da rainha Isabel I. Também se achava nessa leva o importante astrônomo Abraão Zacuto. Historiadores calculavam que a população judaica acrescida dos judeus expulsos da Espanha atingia a um quarto de toda população portuguesa. 

Em 1495, Dom Manuel, o Venturoso,  subindo ao trono e, vendo nos judeus, homens do comércio e da ciência que possibilitariam o crescimento de Portugal, concedeu liberdade aos judeus castelhanos que tinham sido escravizados. 

Depois, pretendendo casar com a filha dos reis católicos, Fernão de Aragão e Isabel de Castella, deparou-se com uma cláusula no contrato de casamento que lhe exigia  a expulsão dos hereges de Portugal, ou seja, os mouros e os judeus. Sem conseguir convencer os reis católicos da Espanha do desastre econômico que tal medida acarretaria, Dom Manuel I assinou, em 5 de dezembro de 1496  o decreto da expulsão dos hereges, com o  prazo limitado até 31 de outubro de 1497. 

Aos judeus, sob a punição de  confisco de bens e morte, foi dada a opção do desterro ou da conversão pelo batismo. Surgiram, assim, no Brasil, os desterrados e  os cristãos novos  de que já falamos de passagem nesta edição. E com  os batizados dos cristãos novos, surgiram os Coelhos, os Baratas, os Aranhas, os Nogueira, os Pereira, os Carvalho como eu, etc, etc. 

Dia desses do mês de abril, no programa do Rodolfo Botino, na TV Educativo, ele entrevistou o professor de Arquitetura e Urbanismo, Nireu Oliveira Cavalcanti, que publicara um livro sobre crônicas da História do Brasil que redigira anos antes no Jornal do Brasil. 

O professor lembrou o fato de o tribunal da Inquisição de Portugal enviar um inquisidor às colônias para se enfronhar das denúncias de práticas judaicas de cristãos novos. E por causa de uma dessas denúncias, a família Paredes, de senhores de engenho, que celebrara um casamento em Jacarepaguá, com rituais estranhos ao catolicismo, segundo uma delatora, foi presa e destituída dos seus bens (parte dos bens confiscados passava para o delator - o que incentivava o dedurismo). 

Essa mesma delatora, segundo o entrevistado do Rodolfo Botino, apontara o cristão novo João Ximenes como praticante de ritos judaicos, e a sua chácara, no Largo do Machado,  depois de confiscada, passou para a Carlota Joaquina.  

Entre os rituais judaicos no casamento dos Paredes denunciado estava o fato de  os homens ficarem num compartimento da casa e as mulheres noutro. 

Ainda dentro da prática dos rituais judaicos, depois da chegada dos judeus ao Nordeste com a invasão dos holandeses, passaram ser observados, com suspeição, os seguintes hábitos: pintar a casa no final do ano, arrumá-la às sextas-feiras, comprar mercadorias à porta de casa, etc. 

Hoje, falamos do fundamentalismo islâmico, mas também foi terrível o fundamentalismo católico que, entre outras coisas, levou Dom Sebastião a lutar contra os mouros em Marrocos e Felipe II a querer destituir a igreja anglicana com a Invencível Armada.


domingo, 21 de junho de 2020

3109 - Tem Bububu no Bobobó (reedição)

O BISCOITO MOLHADO
Edição 2104                                           Data: 28 de junho de 2004       
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PARA ERRAR MENOS...


O gosto musical de Napoleão Bonaparte eram as marchas militares. Mesmo diante das ginásticas  virtuosísticas e das pirotecnias de Paganini com o violino, bocejava e sonhava com uma batalhazinha. Apesar do tédio, tinha, às vezes, de ir  à ópera, pois é aconselhável, politicamente, um chefe de Estado mostrar-se despreocupado diante do seu povo. Numa dessas idas à ópera, já se aborreceu com a mulher, que levara horas para ficar pronta.

- “A ópera que vamos assistir certamente foi composta num tempo mais curto do que o que você levou para se arrumar.” - disse à Josefina.

No caminho para o teatro, o imperador e a imperatriz, seguidos por um cortejo de carruagens interminável, sofrem um terrível atentado a bomba, que mata um punhado de gente. Fouché, o ministro da Segurança, como o chefe de polícia de Vichy, séculos depois, no filme “Casablanca”, emite logo a ordem de prisão dos suspeitos de sempre. Napoleão Bonaparte, no entanto, cismara que os cabeças do atentado foram os monarquistas da França com o apoio logístico dos ingleses, e não os jacobinos. O imperador ordena, então, o seqüestro do Duque de Elghien, que se encontrava abrigado no território de Baden, para ser julgado em corte sumária, e, em seguida, fuzilado. Ao tomar conhecimento da execução do nobre francês, Talleyrand proferiu uma frase sobre a decisão de Napoleão que se tornou célebre:

- “Mais do que um crime, foi um erro.”

Nós, do Biscoito Molhado, de modo algum consideramos o erro mais grave do que o crime; os erros são corrigidos, mesmos os grosseiros. Aliás, falamos na última edição dos erros inteiramente  palatáveis do Sérgio Brito no seu programa de quinta-feira, e vamos agora citar erros espalhados na televisão difíceis de engolir que, logicamente, não serão desse animador cultural.

 Um desses erros foi do locutor, do torcedor, do comentarista, do propagandista e do espaçoso Galvão Bueno, que cismou de informar que um piloto fora “penalizado” com dez segundos nos boxes, quando o referido piloto não sentiu pena de ninguém nem por um segundo e muito menos nos boxes, ele só foi punido.  Outro erro foi do Luciano do Vale que, ao transmitir dos estúdios da TV Bandeirantes um jogo de futebol realizado na Espanha, reclamou da TV espanhola que deu uma panorâmica nas proximidades do estádio: “Até morrotes eles mostram agora...” O comentarista interveio rapidamente: “...Luciano, são os Pireneus.” Sem sair do mundo dos esportes, chegamos ao Sílvio Luís, que sempre conversa mais do que transmite os jogos. Certa vez, falando sobre  o filme Malcolm X, perguntou ao seu repórter de campo se ele já assistira ao Malcolm 10. Ou estava ele de gozação e sabia muito bem que o X do sobrenome representava uma incógnita, porque o líder negro, que adotara a religião muçulmana, desconhecendo o seu sobrenome africano,  recusou-se a adotar um sobrenome cristão? Ficou a dúvida; nos outros dois casos não: foram erros, pachouchadas ou, para repetirmos o sinônimo preferido pelo Dieckmann, batatadas. Já que falamos do Sérgio Brito, vamos prosseguir com o Dieckmann, que também possui o viés de animador cultural.

Como já escrevemos, as reuniões das segundas-feiras, às  8h e 30min, do Dieckmann foram uma antecipação dos  Brainstorming dos nossos melhores professores do curso de Regulação Econômica. Como temos espaço no papel, vamos reproduzir algumas palavras sobre Brainstorming: “É a técnica para reuniões de grupo que objetiva ajudar os participantes a vencer as suas limitações em termos de criatividade e inovação.  Foi criada em 1963 por Osborn, adotada em Harvard, e pode  durar de minutos a horas, mas a regra são 30 minutos. Tem quatro regras básicas: nunca critique uma sugestão, encoraje as idéias bizarras, prefira a quantidade à qualidade, e não respeite a propriedade intelectual. O líder da sessão de Brainstorming deve manter um ambiente relaxante e propício à geração de novas idéias.”

Somos testemunhas que o Dieckmann, como líder dessas sessões, sempre procurou deixar o ambiente relaxado e preparado para as novas idéias, o diabo é que, em vez de novas idéias, muitos participantes só queriam novos cochilos. Era difícil fazer do DMM uma Harvard, principalmente às segundas-feiras de manhã cedo... Como os leitores do Biscoito Molhado já viram, a tomada de decisão, matéria fundamental não só na administração das empresas, foi posta em prática no teste dos perdidos na lua. Mas houve segundas-feiras não tão dinâmicas como esta da tomada de decisão no satélite da Terra, como aquelas em que o Dieckmann se pôs a ler um livro. Lia trechos, por exemplo, sobre o relacionamento dentro de uma equipe de trabalho para, em seguida, despertar alguém com uma pergunta.  

Ouvimos as leituras do Dieckmann numa reunião, mas na reunião seguinte, o Biscoito Molhado chegava às bancas comparando o nosso coordenador com o Caetano Veloso. Explico: o compositor, na época, exibia-se de terno e gravata num espetáculo intitulado “Livro”. Lia ele trechos do livro que acabara de escrever, “Vereda Tropical” e, em seguida, pegava o violão e entoava uma música. Esse espetáculo, diga-se de passagem, acabou certa vez em confusão porque um engraçadinho perturbou tanto o compositor com gritos “Tira a gravata, Caetano”, que o baiano soltou meia dúzias de palavrões e perdeu a voz. Nós do Biscoito Molhado, que ouvíamos as leituras do Dieckmann, apenas lhe perguntamos, nas nossas páginas, quando começaria a cantar como o Caetano Veloso. Antes que o Brainstorming do Dieckmann se transformasse em caraoquê, ele aposentou o livro.

Também se falou em cinema nessas reuniões, pois através de todas as artes podemos exercitar os neurônios e expandir o poder criativo. E, nessa ocasião, tomamos conhecimento de um endereço da internet que era um autêntico arquivo de filmes, o www.imdb.com.

Retornando ao Sérgio Brito e aos erros palatáveis, ele exibe, atualmente, nos seus programas  uma retrospectiva dos filmes do Hitchcock. Já passou da fase inglesa do cineasta, com a Dama Oculta, e chega agora à fase americana, com “Um corpo que cai”. E não é que nesse filme a Kim Novak aparece com uma echarpe que, de tão comprida, lembra a peça do vestuário que se enrodilhou na roda traseira de um Bugatti, matando a Isadora Duncan? 

Se o James Stewart, com toda aquela fobia de altura, em vez de tentar puxar a Kim Novak pela mão, tentasse puxá-la pela echarpe, talvez ele a salvasse da queda... Sim, sei que a idéia é bizarra, mas a boa técnica do Brainstorming ensina que as idéias bizarras devem ser incentivadas, pelo menos na sua germinação.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

3108 - D Chicão Tirano

O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5367 D                           Data: 03 de junho de 2020

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVII

                     UMA ESPINGARDA NA MÃO 
                                
                            E NADA NA CABEÇA               


As famílias de Santa Teresa que eu conhecia eram lacerdistas. Ou, pelo menos, a minha, mistura de Dieckmann, Klinger e Rodrigues Gomes, e a do Chico, Figueiredo com Rios, eram. E nós dois decidimos fazer alguma coisa contra o recém eleito Negrão de Lima, em atos completamente à revelia dos desejos dessas famílias deprimidas com a derrota do candidato lacerdista. Tínhamos 14 anos e a firme ideia de espalhar o terror por Santa Teresa. 

Lembro de discutirmos uma atitude semelhante aos mau-mau do Quênia e aos tonton macoute do Haiti. Como essas identidades não eram corriqueiras em dois garotos, imagino que tenham advindo de algum estudo sociológico do pai do Chico, como exemplo de terrorismo atual da época. E como mau procedimento, o que não levamos em conta.

As primeiras vítimas foram os reservatórios de areia dos bondes. Colocávamos um morteiro de São João com um cigarro aceso atravessado no pavio, acomodando o petardo na areia que servia para dar tração ao bonde. Apenas uma vez seguimos a pé o bonde para ver no que dava. Uns trezentos metros depois, achamos ao longo de um trecho dos trilhos uma boa quantidade de areia; a nossa ideia funcionara.

Como éramos criativos, não repetimos essa manobra mais do que três ou quatro vezes. Deixamos de fazer o tedioso acompanhamento do sucesso e partimos para outras empreitadas, explosivas e inéditas. Um bom lugar é a coluna de recolhimento de lixo dos edifícios. Não só o estampido adquire uma sonoridade surda, entusiasmante, como é acompanhado pelo som da abertura das tampas de cada andar, em tempos diferentes. Testamos no meu prédio, mas ninguém ouviu porque a coluna era distante dos apartamentos. Mas, na Rua Triunfo, 63 obtivemos sucesso de público e de crítica - que éramos nós, os terroristas. Tampando o nariz do cheiro fedorento, colocamos uma cabeça de nego no depósito de lixo no térreo, com o cigarro em cima e fomos para a rua esperar.

Foi um senhor tiro, com o barulho surdo acompanhado de três aberturas das tampas e logo as janelas se iluminaram de rostos assustados, olhando para um lado e para o outro, lembrando uma cena de Mon Oncle, onde o pai e a mãe investigam, a partir de uma janela redonda para cada cabeça, parecendo duas pupilas à procura de um fato.

Já era tempo de nos localizarmos por alcunhas, caso fôssemos presos. O Chico virou Chicão Tirano e eu, qualquer coisa do gênero, que esqueci. Talvez fosse Demolidor.

Na varanda da casa das minhas tias nós, ficávamos de tocaia com duas espingardas de ar comprimido acertando as capotas dos carros que passavam na rua de baixo. A Ana Lúcia, irmã do Tirano, estava presente algumas vezes e, para dar graça, um dançava com a Ana, enquanto o outro ficava com as duas armas, em revezamento obrigatório, porque ninguém queria saber de dançar. Quando os disparos ocorriam, procurávamos escutar os dois tecos de Diabolô na capota, dois segundos depois e saboreávamos a boa mira.

Um dia custou a passar carro e Chicão alvejou um grupo na escadaria de Fátima. - Foi pedra! Apalpando a bunda, alguém gritou daquela escuridão fria, onde tudo se ouvia e eles recomeçaram a subir. Quando chegaram na rua, nós já estávamos na porta conversando e inventamos uma correria de crianças... vai ver foram eles... como a Ana estava junto e emprestava um ar solene ao trio, acho que aceitaram e foram embora. Voltamos a respirar logo que dobraram a curva. Como eles voltaram ao mesmo lugar, Chicão ainda queria dar um segundo teco, mas o bom senso prevaleceu.

Um bom senso que não atraiu o Roberto Guerra, meu colega de colégio que não tinha arma e morria de vontade de estar conosco. Aceitamos. A gente saía de calça lee e camisa de goleiro, às vezes com um casaco por cima. Na cintura, três ou quatro morteiros como se fossem os nossos colts. Na primeira noite do Guerra, passamos em frente à casa do Borghoff e a Chiquita estava lá, com um pneu furado. Fui ajudar, com o Chicão de ajudante do ajudante e trocamos a roda. No meio do trabalho, escutamos o triplo estampido de um morteiro. Do Guerra, que estava à toa e indócil. 

Mal o carro saiu, apareceram uns quatro caras da pequena comunidade na rua: - Foram vocês? Sorte que eu e o Chico não tínhamos soltado nada e negamos com a honestidade beatificada de origem pneumática. Um bonde passou por nós e só vimos o Guerra pegá-lo andando, já longe, para nunca mais voltar.

Sentamos no meio-fio, agradecendo a boa fé dos nossos vizinhos - uma revista na nossa roupa não teria escapatória, seria condenatória e executatória - e filosofamos sobre a exclusividade do nosso clube. Um por dois e dois por um, no máximo.

O novo governo do estado decidiu abrir uma agência do BEG - Banco do Estado da Guanabara no ponto mais central do bairro. Era uma boa iniciativa, mas que durou pouco, talvez menos de um ano, certamente por falta de movimento. Essa agência ocuparia o imóvel de um antigo armazém, a Casa Mauá e houve uma obra volumosa para a transformação. Virou objetivo imediato de Chicão Tirano e Demolidor.

Era cercada por altos tapumes de madeira e os operários dormiam na obra. Vimos pela frestas que ocupavam um grande espaço e decidimos atacar os operários. Compramos um super morteiro, chamado Canhão; ele continha doze explosivos e era bem mais parrudo que o morteiro comum. Com alguma procura, encontramos um nó de madeira meio solto, que abrimos com uma chave de fenda. A visão pelo buraco era perfeita, a turma sentada no chão se preparando para dormir; o armamento foi introduzido raspando e ficou firme. Desta vez não teve cigarro, riscamos direto o pavio e caímos fora. Ainda deu para ouvir aquele suceder de estampidos enquanto subíamos o zigue-zague da Rua Triunfo (a mesma já abordada...). Nem vimos qualquer clarão, nossa imaginação foi suficiente.

A essa altura, manuseávamos os explosivos com desenvoltura e iniciamos a produção de artefatos mais poderosos. O objetivo de todo mestre-explodidor é chegar no canudo do rolo de papel higiênico, o que consumia mais de meia dúzia de cabeças de nego - uma fortuna em mesadas reunidas. Nasceu um dia a nossa mãe de todas as bombas.

Escolhemos na Joaquim Murtinho um trecho ermo e equidistante dos prédios. Nós medimos em passos, dividimos ao meio e cavamos um buraco no terreno, onde hoje tem uma pousada, tudo cientificamente. Enterramos o rolo, deixando um longo pavio de fora. Esperamos o bonde passar, nenhuma testemunha à vista, acendemos o cigarro e voltamos para a rua.

E toca a esperar. Uma senhora sai pela pontezinha do prédio e dobra na rua, em direção à "mãe". Aquilo nos deu um arrepio de pavor, pois certamente seria desastroso, mas ela passou pelo ponto, andando devagarinho. E nós contando cada um dos passos, torcendo por mais um, mais dois...

Quando ela chegou no prédio vizinho, um Gordini apareceu na curva da rua. Foi o tempo da senhora ainda atravessar um corredor cheio de janelas, entrar na casa e a bomba explodiu. A vibração foi de balançar a roupa e o Gordini estava exatamente no alcance da bomba, que jogou uma quantidade de terra em cima do carro. O dono parou na hora e ficou olhando de onde saíra aquilo. Deve ter achado que era alguma caixa de eletricidade, ou de gás, tirou a terra do vidro e prosseguiu.

Petrificados, em tempo decidimos abandonar os explosivos e só ficou a história para contar. 

Jackson de Figueiredo é o avô do Chico e vai saborear prazerosamente toda essa criatividade, bem herdada. Se ele tinha curiosidade sobre seu neto, agora eles terão tempo para tudo e, quem sabe, até para pegar no pé de um São Pedro desavisado.

terça-feira, 21 de abril de 2020

3107 - D O Reformatório



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5366 D                           Data: 21 de abril de 2020

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVII


                   TIAS-AVÓS, AVIÕES  E AEROMODELOS

As fotografias do Rio de Janeiro de tempos idos, que o blog “Saudades do Rio” publica, frequentemente trazem à tona eventos ocorridos com todos nós. Comigo se passa exatamente assim e comentei recentemente sobre uma fotografia do prédio da LBA – Legião Brasileira de Assistência, que fica na Avenida General Justo, em frente ao Aeroporto Santos Dumont:

Esta é a minha área, pois passei incontáveis dias na LBA, onde minhas tias-avós trabalhavam desde a fundação. Eu dava, possivelmente, algum distúrbio em casa e era encaminhado para o reformatório, que era a casa delas. Com dois andares e três platôs na Rua Oriente, em Santa Teresa, tinha tudo que uma criança podia pretender, espaço, espaço e espaço; cachorro, jardim para regar, frutas para pegar e ainda, uma mureta baixa rente à parede que podia ser tudo e qualquer coisa – trem para ser assaltado, corda bamba de circo, a mureta era um desafio estático à imaginação sempre acelerada.

Da casa, a gente descia a escadaria que sai da Oriente, esquina com Progresso e, em dois lances, estávamos no ponto final do 10 - Mauá-Fátima, no tempo daqueles micro-ônibus Chevrolet, amarelo e prata, e que usavam sutiã embaixo do parabrisa. Eram chamados de "caixotinho", mas só vim saber disso muito tempo depois...

O dia na LBA era uma janela de tempo integral, debruçada sobre o hangar da FAB, onde se testavam os motores dos aviões. Eu virei um quase especialista em motores Pratt&Whitney, de tanto que ouvi, pois aquilo era música para os ouvidos e eu ficava calminho. Eram C-47, T-6 e Beech, em sua maioria, mas os jatinhos Paris, brancos e lindos como um carro esporte, também eram guardados ali. Vez por outra, um C-82 fazia uma revisão lá. Mesmo quando reinava o silêncio, era só esperar que vinha um trator manobrar um avião, ou, ao longe, um avião decolava rumo ao Pão de Açúcar. Eram tardes deliciosas e só havia interrupção para um lanchinho – que eu não perdia. Pão e circo, duvido que eu desse trabalho, reformatório é para ser assim...

Entretanto, no blog havia outra fotografia, que não era da LBA e sim da atual Defensoria Pública, segundo o Google Maps. Não me lembro do que seria na época, mas o que esta fotografia detonou na minha memória vem agora.

Nos espaços vazios foram construindo prédios, mas restou uma praça ainda existente, exatamente atrás da Defensoria. Nesta praça havia uma árvore (hoje tem umas 10) e era um grande espaço asfaltado cercado de prédios de oito ou dez andares. Na praça não havia um pingo de vento, mesmo estando tão próxima à entrada da Baía da Guanabara. Era ali que os aeromodelistas da minha rua levavam seus U-control.

U-control é um aeromodelo que, acho, não existe mais, nestes tempos em que tudo é radiocontrolado. Do avião partem dois finos cabos de aço, que formam o U na mão do “piloto”. Estes cabos comandam a subida e descida e o avião gira em um círculo de uns 10 metros, seguro pelos mesmos cabos. No Aterro, próximo ao Monumento dos Pracinhas, há duas pistas dessas, mas ali o vento pode ser terrível e a fila de espera para decolar pode ser grande.

A nossa praça era um paraíso, íamos numa Rural-Willys, que ficava na sombra da árvore e nós desembarcávamos com 4 ou 5 aviões; o meu era um Tamanco A, o mais pobrinho a motor da Hobbylândia, lembra um Curtiss P-40, era tosco, sua fuselagem era um perfil de madeira recortada, motor de lado, não tinha flap e não dava loop – zero em sofisticação, mas eu troquei o tanque de combustível por um maior, para ficar mais tempo no ar. E ficava mesmo, mas como resultado de um acidente logo de cara com os fios de controle, adotei linha de pesca como substituto e nunca mais me aborreci. Claro que a elasticidade do nylon dava uma inércia na resposta do avião, mas uma vez acostumado, eu voava sem susto. E planava, eram umas cinco voltas sem motor, descidas devagarinho, o que enervava bastante os coleguinhas à espera, que já agonizavam devido ao meu tanque maior.


O acidente aeromodelístico mais sensacional se deu com um avião bem grande, azul turquesa, com flaps e o escambau a oito, mas o controle partiu antes de completar a primeira volta (é sempre assim, você tem que examinar cada centímetro do cabo, enrolar e desenrolar com o maior cuidado, qualquer dobrinha tem que trocar os cabos, que partem ao menor nozinho). Uma vez partindo um cabo, o segundo também parte e o avião sai em, alegre e solto, voo solo. 

Naquela tarde, com seu leme aberto para manter o avião puxando para fora, o avião fez uma elegante curva  para a direita e alcançou o prédio. Não penetrou na parede, ao contrário, esta foi recebendo o bicho, começando pelo motor, fuselagem, asas, como se fosse um abraço de tamanduá-bandeira. Quando chegou na parte do leme, a parede cuspiu fora os restos ainda fumegantes, que, tepopóf, caíram no asfalto. 

Espetacular.

E já ia ficando por aqui, mas a palavra espetacular me impediu de parar. 

Havia um terreno baldio na Rua Teresina, onde nós, os garotos da rua, amaciávamos os motores, uma tarefa impossível de ser realizada em casa devido à fumaça e ao barulho atordoante. Esse amaciamento levava horas - as mães achavam ótimo longe delas -  e um dia acabei sozinho e com o dedo doído de tanto bater na hélice. Juntei as minhas coisas e vi que os outros haviam deixado um pouco de combustível glow - que não me servia - numa garrafinha de vidro. Pouca coisa, mas brotou a ideia!

Fiz um coquetel molotov e, com razoável temor, ou pavor, preparei um pavio. Acendi - acho que eu fumava.. - e  joguei na muralha que havia no fim do terreno. 

Eu morri de medo daquilo explodir na minha mão, ou de alguém reclamar, mas que nada! Deu tudo certo e certamente ninguém viu; e foi lindo ver, sozinho, as chamas avermelhadas que brotavam das pedras cinzentas daquele fim de tarde. 

Espetacular de novo, criança alguma deste século vai fazer parecido.