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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

2927 - a década perdida


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5177                                    Data:  27 de agosto de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRICO XLV

1ª PARTE

 

NOTAS (4) – Black dog quando abocanha custa a largar, quando larga.

Bem, doze anos depois, voltei às provas. Muitos anos haviam transcorrido e não havia tempo a perder. Buscava exemplo de personalidades que, mesmo tardiamente, retomaram os estudos e avançaram, não se arrastando com o peso do passado. Uma delas era o primeiro-ministro-alemão Helmut Schmidt que, depois de pertencer à juventude hitlerista, teve, contando 21 anos de idade, de trocar os livros pelas armas, combatendo na terrível frente russa e na ofensiva de Ardenas. Com a derrota alemã, foi aprisionado pelos britânicos. Depois desses percalços, voltou aos livros e se formou em Economia com 32 anos.

Para eu conseguir o feito do ex-combatente da Alemanha, formar-me em Economia com essa idade, eu não tinha tempo a perder, afinal, o exame supletivo fora criado para isso mesmo e havia uma vantagem que eu não podia desperdiçar: o exame do 2º grau não exigia o diploma do 1º. Ora, eu cursei oito meses do 4º ano ginasial do Visconde de Cairu, o que valia, com muitas sobras, mais do que o ensino integral equivalente ao curso ginasial ministrado em meados da década de 70.

O problema era o 2º grau que, na minha época de Visconde de Cairu, era o curso científico ou clássico. No longo período em que fui abocanhado pelo black dog, fiquei tão atraído pela literatura, que raramente peguei livros didáticos  para ler. Agora, nutrindo o objetivo de voltar às aulas, eu tinha de trocar a minha atenção: o tempo de ler em pouco mais de 15 dias as quase 1200 páginas do “Guerra e Paz”, de Tolstoi, ficara para trás.

Ajudou-me o fato de o Claudio, meu irmão, ter ainda as apostilas do Curso GB, onde estudara para prestar os exames supletivos dos dois anos imediatamente anteriores a 1975, quando chegou a minha vez. Com elas, refresquei a memória do que eu já estudara e avancei no que era novidade para mim.

Uma medida do Presidente Ernesto Geisel complicou um pouco os meus planos: ele fundiu o Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, nomeando Governador o Vice-Almirante Floriano Peixoto Faria Lima. Assim, saíam Chagas Freitas e, com ele, Romualdo Carrasco, que era a autoridade designada para administrar os exames supletivos. Saía também um pouco do populismo do MDB, herdado dos partidos políticos pré-Revolução 64, UDN, à parte, as provas sem maiores complexidades e a nota 4,5, em alguns casos, suficiente para a aprovação. Com o substituto do Romualdo Carrasco - aquele que, na realidade, justificava o sobrenome do antecessor - a aprovação seria com a nota 5, e duas provas, pelo menos, foram arrasa-quarteirões. Mas não vamos nos antecipar.

Inscrevi-me para as provas no Colégio República do Peru, localizado no Méier. Ele me trazia uma recordação de êxito.  A minha irmã, que fracassara no ano anterior, 1961, no concurso para o ginásio, foi animada pela Guiomar, sua nova amiga e vizinha, na vila da Rua São Gabriel, onde fomos morar e se inscreveu para cursar o ginasial nesse colégio. Eu, que cursava o primeiro ano do Visconde de Cairu, me pus a prepará-la para as provas; e gostei da minha missão, pois a minha irmã mostrava, como sempre mostrou, disposição para aprender. Bem, ela passou, mas a Guiomar, não; como as aulas eram noturnas, o nosso pai, alegando que ela teria de se deslocar a noite para o colégio, sem companhia alguma confiável, lhe podou o desejo de se aprimorar intelectualmente. Tal veto a deixa indignada até hoje, pois meu pai movera mundos e fundos para os nossos dois irmãos - que fugiam dos livros, na época, como os vampiros dos crucifixos - estudarem, enquanto ela se tornava mais uma vítima da sociedade machista daqueles anos. Mas assim eu me desgarro da minha história.

Saí do República do Peru mais decidido do que nunca a estudar.

A primeira prova foi de português e se realizou no Instituto de Educação. O meu pai me acompanhou para me dar confiança. Era um sacrifício e tanto para um senhor de 60 anos de idade, que trabalhava duro de segunda a sexta-feira, perder uma tarde de sábado para levar, esperar e buscar um filho que prestava exames escolares. Eu não poderia decepcioná-lo. Desfaço, agora, uma injustiça: ele também moveu mundos e fundos por mim, sem esquecer a minha mãe que estava sempre por trás de tudo.

Era a primeira vez que eu entrava na Escola Normal Instituto de Educação, o sonho dourado das meninas que pretendiam ser professoras nos muitos anos que antecederam a minha entrada no Visconde de Cairu e alguns anos depois. À guisa de curiosidade, quem tirou o primeiro lugar no concurso que eu prestara para o Cairu também foi aprovada no Instituto de Educação e, logicamente, preferiu ingressar do educandário da Rua Mariz e Barros.

Bem, lá, eu não tinha tempo de me maravilhar com nada, nem mesmo com aquela arquitetura; estava fixado em tirar uma nota maior do que 5 para não cair fora logo no primeiro obstáculo.

Era a minha primeira vez, como estudante, que eu topava com uma prova de múltipla escolha e logo com a nossa língua portuguesa. Eu levaria uma boa vantagem se houvesse redação, tinha uma boa bagagem de leitura; não precisava copiar uma página de Balzac, como o garoto do filme “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, que tentou enganar seu professor. Eu guardava um número razoável de páginas e escritores na memória. Mas tinha de lidar com cruzinhas em 20 questionamentos com cinco quadradinhos em cada um deles, ou seja, eu, como os demais candidatos, tínhamos pela frente 100 quadradinhos para inserir 20 cruzinhas.

Algumas pessoas que nunca se destacaram em matemática, que nada entendem de números, insinuam que a múltipla escolha capacita os sortudos. Não é nada disso; a chance de, em 3 questões, se acertar 3 é de uma em 125; em 4 questões  é de uma em 625, e, assim, exponencialmente. Prova de múltipla escolha não é loteria, não é jogo, a sua deficiência é de não testar o talento argumentativo do candidato.

Até mesmo em matemática, é preciso que o aluno apresente a sua memória de cálculo, que mostre os caminhos que seu raciocínio desbravou.

Bem, mesmo com todas as múltiplas escolhas, em me saí bem no exame de Português, mas o valor da nota fugiu da minha memória para nunca mais ser alcançada.

 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

2926 - as Bandeiras da Suburbana


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5176                                    Data:  26 de agosto de 2015
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208ª CONVERSA COM OS TAXISTAS
 
-Houve algum problema com vocês, ontem, quando incendiaram dois ou três ônibus no viaduto de Del Castilho?- perguntei ao 262.
-Para mim, não, porque evitei ir para aquele lado.
-Aconteceu pouco depois da minha chegada e eu soube, pelo noticiário do rádio, que teve reflexo no trânsito até Cascadura.
-Esses bandidos são folgados. - resmungou ele.
-Disseram que um morador da favela Bandeira 2 foi ferido numa batida policial e isso revoltou a comunidade.
-Nada; mexeram com os traficantes e eles dão ordem para incendiar os ônibus. Não é só a Bandeira 2, não.
-Um colega seu me disse que existe também a favela Bandeira 3. Deve haver mais bandeiras do que na sede da ONU.
-Os traficantes do Jacarezinho estão também nessa bagunça. - afirmou.
-Logo que colocaram uma UPP no Jacarezinho, fecharam uma ruela que fazia esquina com a Domingos de Magalhães, onde passaram a vender drogas. Eu via, de vez em quando, retornando do serviço, um PM lá.
-Foi a Polícia Civil que reabriu a rua, derrubando as barreiras que puseram lá, afinal, por ela se encurta bastante o caminho de Maria da Graça para o Shopping Nova América.
Nossa conversa se encerrou com a chegada na Modigliani.
No dia subsequente, no táxi do 140, reiniciei o tema da conversa com o 262, que ficara inconclusa devido a trajetória da estação de Maria da Graça até a minha casa ter ficado mais curta por causa da pressa do taxista.
-Aqueles ônibus incendiados...
-Tratei de contornar aquele trecho. Eu já avisava, antes, ao passageiro que o bicho estava pegando por aquele lado da Avenida Suburbana.
-Autódromo Suburbana, quando vou atravessá-la na hora de ir para o trabalho; os carros passam ventando.
-Com o incêndio, todos estavam a uma velocidade média de 10 quilômetros por hora. – afirmou.
-Logo após esse ato criminoso, quando me dirigia à estação de Del Castilho do metrô, por volta das cinco e meia da manhã, no dia seguinte, destacavam-se dois carros da polícia na esquina da Rua Luiza Vale, com aqueles giroscópios ofuscantes.
-Você viu anteontem e ontem?... E hoje?
-Nada; nem sombra de carro da polícia.
-Esse patrulhamento tem de ser constante. Nessa Rua Luiza Vale, os cracudos se instalaram. Eles fazem sexo na calçada e os moradores assistem nas suas casas.
-Eu sei disso – disse-lhe. É o Big Brother Brasil dos miseráveis.
-Eles, de lá, se espalham pelas redondezas.
-Nesse ultimo sábado, eu me alongava, depois de ter caminhado pela Praça Manet, quando fui abordado por uma cracuda. Pediu-me dinheiro e eu lhe falei que não caminho com dinheiro no bolso.
-E ela foi embora? – expressou curiosidade.
-Não saiu do lugar; olhava-me. Indiquei-lhe a Rua Itamaracá e lhe informei que havia lá uma padaria. Disse-me que, na padaria é que não dão nada mesmo e ainda, por cima, enxotam quem não tem dinheiro.
-Ela era daquelas mulheres magricelas?
-Não, não foi chupada ainda pelo vício; como estava de short, via-se que as suas coxas eram, ainda, grossas.
-Por cinco reais, elas fazem qualquer negócio.
Pensei no libidinoso pai dos Irmãos Karamazov que dizia, cinicamente, que todas eram filhas de Deus.
-Fiquei penalizado; a roupa dela era imunda. Creio que um só banho de bucha não tiraria toda a sujeira do seu corpo.
-O Antônio, o 081, diz que esses cracudos são filhos do Lula.
-Eu assisti a um documentário sobre a história de Londres que mostra que, séculos atrás, o vício do Gim criou uma multidão de miseráveis. Pelas fotografias, eles me lembraram os cracudos daqui. O governo inglês resolveu o problema taxando a bebida num valor elevadíssimo.
-Com o crack, não dá para fazer isso.
-É verdade; está inserido na economia marginal.
-E a tal cracuda ainda lhe perturbou muito?
-Ela desistiu e foi procurar outro. Já vejo muitos cracudos quando passo por aquele corredor a caminho da estação do Nova América. Debaixo da escadaria, alguns deles fumam crack.
-Não sei como vai ficar depois dessas batidas da polícia no tráfico da Bandeira Dois. - lançou a dúvida enquanto me deixava na minha rua.
Depois de uns sete anos, mais ou menos, após o furto do meu carro, indo de casa até o metrô de Del Castilho, o que me dava um gostinho de caminhada de 15 minutos com uma subida de escada de 45 degraus, eu fui obrigado a mudar a minha ida ao trabalho. Agora, na Rua Itamaracá, buscava por um táxi. Aproximei-me do que estava estacionado na calçada da padaria com um senhor ao volante.
-O senhor me leva até a estação do metrô de Maria da Graça?
-Para qualquer lugar do Brasil.
-Soube que a TV Record fez uma reportagem sobre aquele corredor que liga a Suburbana com o metrô de Del Castilho e foi dito que ocorrem assaltos ali até com faca. Eu, na última sexta-feira, tive a impressão que seria assaltado, creio que não fui porque o sujeito titubeou.
-Meu amigo, passou deste sinal (Suburbana na altura da Renoir) tudo fica perigoso.
-Soube depois que a TV Globo também fez uma reportagem com os cracudos que consomem droga debaixo daquela escadaria.
-Hoje, eu mal cheguei ao posto para abastecer, já veio um me pedir dinheiro. “Cara, eu nem comecei a trabalhar ainda. Tenha dó.” – reproduziu o efusivo taxista a sua reação diante do pedinte.
Com votos mútuos de bom trabalho, despedimo-nos diante da rampa que conduz à estação de Maria da Graça.
No dia seguinte, no mesmo horário, procurei por ele, deixando para trás um taxista do Copaméier que aguardava passageiro, Ele, infelizmente, já partira ou ainda não chegou. Voltei até o tal taxista.
-Algum problema de me levar até o metrô de Maria da Graça?
No caminho, eu lhe contei, resumidamente, o porquê dessa minha mudança de ida ao trabalho.
-Os assaltantes são muitos – disse ele. Saiba o senhor que um rapaz, exemplo de trabalhador, estava sempre, no posto, dando duro no lava à jato, tornou-se assaltante. Dia desses, ele ia assaltando o meu cunhado, quando reconheceu quem era ficou sem graça e foi embora sem nada levar.
-Onde ele trabalhava mesmo? – indaguei.
-No lava a jato.
-O nome já não ajudava... comentei.
-É verdade. - concordou.
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

2925 - tornei-me um ébrio


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5175                                    Data:  25 de agosto de 2015

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O DIA 23 DE AGOSTO NO RÁDIO MEMÓRIA

 

-O que aconteceu hoje, Sérgio?

-Vamos começar o calendário um pouco tarde; em 1939, Jonas... Olhe os personagens envolvidos, dois anjinhos: Adolf Hitler e Josef Stalin.

-Puxa vida! - exclamou o Jonas Vieira.

-Eles assinaram sabe o quê?... Um pacto de não agressão. Imagina que bicho deu um pacto de não agressão envolvendo esses dois.

-Não demorou muito...

Sérgio retomou as palavras do Jonas e concluiu:

-Não demorou muito para que houvesse uma agressão.

-No ano seguinte, 1940, aconteceu o primeiro bombardeio a Londres. Uma história da têmpera do povo inglês.

-Da genialidade do povo inglês. - acrescentou o Jonas.

-Genialidade, coragem, determinação.

-Eu tenho uma grande admiração pelo povo inglês. - afirmou o titular do programa Rádio Memória.

-Em 1969, entra no ar o Jornal Nacional, o primeiro programa transmitido em cadeia nacional.

-Perfeito.

-Jonas, o Jornal Nacional já foi melhor... Quando o Jornal Nacional ocupa dez minutos do tempo com temas absolutamente...

Deixou os substantivos bagatela, mixaria, insignificância e outros sinônimos nas reticências.

Jonas Vieira retomou a palavra:

-A morte daquele cantor caipira... É a negação do Jornalismo.

-Quando vi aquilo, lamentei não ter cronometrado o tempo que o Jornal Nacional dedicou à notícia da morte do Frank Sinatra.

-Frank Sinatra perdeu longe para esse cantor.

-Todo o mundo perdeu longe. Nós é que perdemos, enfim.

Depois dessa amarga constatação, o Homem-Calendário prosseguiu no seu ofício.

-Em 1979, ocorre a deserção de Alexander Godunov, estrela do Balé Bolshoi. O povo quer saber, Jonas: por que ninguém, numa excursão de uma companhia americana, foge? Alguém de uma companhia finlandesa, por que não foge? Quando se trata de excursões, eventos envolvendo atletas, artistas cubanos, russos, foge todo mundo. Por que será?... O povo quer saber.

-A resposta é muito simples: porque eles vivem no paraíso, as pessoas estão fugindo do paraíso, que nem Adão. - entrou o Jonas Vieira no clima de ironia.

-Deve ser isso.

-É evidente.

-Nesses últimos Jogos Pan Americanos fugiu a metade da população cubana. O Fidel só não fugiu, Jonas, porque está com dificuldades de locomoção.

-Pois é; e o Chico Buarque de Holanda não foi lá ajudar.

Estava em Paris sofrendo com a pobreza do povo brasileiro.

Jonas Vieira, agora, se mostrava mais indignado:

 -Os nossos intelectuais... Como é que pode?... As pessoas cristalizam a verdade e não se afastam dela nem que a vaca tussa.

O mundo muda, o comunismo fracassa, mas eles permanecem empacados com a sua verdade.

-Em 1990, é anunciada a união da Alemanha Ocidental, que era a República Federal da Alemanha, com a Alemanha Oriental, que era a República Democrática Alemã (aquela que estava sob o domínio soviético).

-E ninguém se lembra mais da República Democrática Alemã.

-Foi atropelada pelos acontecimentos. - seguiram-se as palavras do Sérgio Fortes às do Jonas Vieira.

A Alemanha Ocidental, de regime capitalista, bancou, sob a liderança do primeiro-ministro Helmut Kohl, a Alemanha Oriental, economicamente bem atrasada e a fez prosperar. Vale ressaltar que falou alto, para o êxito, a índole do povo alemão. Como curiosidade, vale lembrar que os pais da atual primeira-ministra Angela Merkel eram da Alemanha Oriental.

Após os eventos históricos, o homem-Calendário seguiu com os nascimentos.

-Em 23 de agosto de 1910, nascia Giuseppe Meazza, futebolista italiano. Esse cara foi um cracaço.

-É verdade. - concordou o Jonas Vieira.

-Ele foi muito importante naquelas duas primeiras copas do mundo que a Itália ganhou.

-Em 1912... Este, Jonas, se você disser que não se lembra, eu pego o meu chapéu e vou embora: Gene Kelly.

-Oh! - encantou-se com a lembrança. Ele foi genial, um gênio.

-Ele não dançava mal.- brincou o seu parceiro.

O deslumbramento do Jonas Vieira não arrefecia.                                                                                                         

-Eu tenho muitos amores na minha vida, como jornalista, evidentemente. Entrevistei grandes nomes, grandes figuras e uma delas foi Gene Kelly, no Copacabana Palace, quando ele, com mais dois artistas de que não me lembro agora. Eu estava, assim, na frente do Gene Kelly, ele sentado olhando para mim e eu olhando para ele.

-Você perplexo.

-Eu perdi a voz, rapaz.

-Que artista!

-Sensacional!

Lembro aqui que o falecimento do Gene Kelly, em 1996, nem foi citado no Jornal Nacional.

Sérgio Fortes seguiu adiante com o calendário.

-Em 1912, nascia outro talento: Nélson Rodrigues.

-Grande Nélson! Eu trabalhei com o Nélson. - orgulhou-se o Jonas Vieira.

-Um frasista, uma figura incrível.

-Em 1922, Tônia Carrero.

-Grande Tônia Carrero. Está viva ainda.

Caso o Simon Khoury estivesse presente, apartearia o Jonas Vieira para falar da sua grande amiga.

-Em 1925, Marcelo Alencar. Ele não é meu autor preferido, mas...

Jonas Vieira foi mais incisivo:

-Ele fez um belo governo.

-Ele fez um bom governo e foi muito carinhoso comigo, quando o meu pai faleceu. Marcelo Alencar estava no cemitério São João Batista e me abraçou.

-O Marcelo era muito leal, Sérgio.

-Era uma pessoa boa.

-Sérgio, eu convivi muito com o Marcelo porque ele foi do tempo do Jango e eu cobria a Presidência da República para o jornal Última Horas. O Marcelo estava sempre lá e ficamos muito amigos.

-Que legal!

-Muito amigos.

-Outra peculiaridade, Jonas: ele jogou basquete no Botafogo com o meu pai. A amizade dos dois é muito antiga.

O Homem-Calendário passou para outra data natalícia:

-Em 1929, Czibor, futebolista; pertenceu ao escrete húngaro do Armando Nogueira. Jogava pra burro.

A expressão “escrete húngaro do Armando Nogueira” foi criada pelo Nélson Rodrigues, que considerava exageradíssima a exaltação que o jornalista Armando Nogueira fazia da seleção húngara de 1954. Era uma ficção do jornalista, segundo o irônico Nélson Rodrigues.

-Em 1957, nascia um grande artista brasileiro: o violoncelista Antônio Meneses.

-Certamente.

-Em 1963, nascia a nossa atriz brasileira Glória Pires. Está fazendo sucesso aí com uma novela. Dizem que já matou de 30 a 35 pessoas.

-Um morticínio. Ela está ganhando do Morro do Alemão. - pilheriou o Jonas Vieira.

Em seguida, Sérgio Fortes passou para os falecimentos em 23 de agosto.

-1891, Deodoro da Fonseca morria pouco depois de deixar a presidência.

-Em 1926, Rodolfo Valentino, o quindim da mulherada.

-Em 1968, Vicente Celestino.

-Um grande cantor.- ressaltou o Jonas.

-Era isso, Jonas: “A Voz Orgulho do Brasil”?

-Era o slogan dele, “A Voz Orgulho do Brasil”. Também foi compositor.

-Uma curiosidade, Jonas: quando pensamos em Vicente Celestino, vem aquela voz impostada, de ópera e tudo o mais... A pesquisar diante dos problemas do meu computador: eu acho que Vicente Celestino jamais, ou muito pouco, pisou o palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

-Que eu saiba, Sérgio, não cantou.

-Eu tenho de pesquisar. Vou fazer um paralelo depois... 

-Vicente Celestino era um cantor popular. – foi peremptório o Jonas Vieira.

-Exatamente; aquele vozeirão, aquela coisa toda... Eu acho que ele não cantou lá.

A persistência da dúvida do Sérgio deu ensejo que saísse da memória do Jonas Vieira uma história com o cantor.

-É uma delícia essa história. Quando surgiu a Bossa Nova, com aquela voz baixinha, você sabe como é, não?... O nosso Vicente Celestino se apresentou num programa da Rádio Nacional cantando os sucessos do momento. Sabe o que ele cantou?... “O Pato”.

Risadas.

-Dizem que a história é verdadeira.

-Eu queria ver o Vicente Celestino cantando “O Pato”.

E quem não queria, Sérgio?

-Isso é verdadeiro. - ratificou o Jonas Vieira.

Sabe-se, porque ficou registrado, que João Gilberto colocou toda a plateia, maciçamente de americanos, no Carnegie Hall, para cantar “O Pato” naquele lendário concerto de 1962.

-Ele (o Vicente Celestino) deve ter despertado a ira dos caçadores. - imaginou o Sérgio Fortes.

Jonas Vieira se animou a cantar até o quén-quén, o que nos fez lembrar os dubladores do Pato Donald.

Quanto ao Vicente Celestino, no longo recitativo da melodramática canção “O Ébrio”, que era do filme do mesmo nome, ele diz que cantou a “Tosca” e “A Força do Destino”, daí a confusão, acreditamos. Quem cantou as óperas foi o personagem da canção e do filme, não ele. Vicente Celestino cantou operetas como “Juriti”, de Chiquinha Gonzaga.

O calendário chegava, agora, ao fim. Sérgio Fortes informou que nesse 23 de agosto  se comemora o Dia do Aviador Naval e o Dia do Internauta. Como muitos lidam com computadores, afirmou que era o dia de todo o mundo.

Citando os santos do dia, deteve-se em São Lupo, que julga protetor das meias e das cuecas, e deu como cumprida a sua missão de Homem-Calendário. 

 

terça-feira, 25 de agosto de 2015

2924 - ao pó voltarás


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5174                                    Data:  24 de agosto de 2015

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SABADOIDO

 

-E isso de Democracia Corinthiana, Claudio?

-Não havia democracia alguma, eram uns poucos que decidiam.

-É como a democracia petista de hoje: 90% dos eleitores querem a maioridade penal aos 16 anos e os 10% do PT decidem o contrário. Não quero dizer com isso que baixar a maioridade penal resolva alguma coisa sobre a violência, mas acho a comparação válida.

-Quem decidia na chamada Democracia Corinthiana?

Era uma pergunta retórica, pois ele mesmo respondeu:

-Sócrates, Casagrande, Vladimir, Zé Maria e o diretor Adílson Monteiro Alves decidiam e os demais jogadores seguiam atrás.

-O Adílson Moreira Alves chamou o publicitário Washington Olivetto, que criou a expressão e o Juca Kfouri, como jornalista corinthiano e esquerdista, foi o seu maior divulgador.

-Desses detalhes eu não sabia. - confessou meu irmão.

-Sei porque terminei há dias de ler um livro sobre o Casagrande, que até mereceu a leitura pois cheguei à última página.

-Mas não foi ele que escreveu?

-Não; o Casagrande forneceu o material sobre a vida dele e o jornalista Gilvan Ribeiro transformou em livro; aliás, os artigos do jogador para um jornal de São Paulo eram copydeskados, aperfeiçoados pelo Gilvan Ribeiro.

-Outra coisa, Carlinhos, falar em democracia em 1982, quando entrou o Figueiredo com a missão de atenuar a ditadura era fácil, eu queria ver antes.

-O livro conta que o Casagrande não admitia a contratação do Leão para o campeonato de 1983, queria que permanecesse no gol o Solito, goleiro campeão paulista pelo Corinthians no ano anterior.

-Por que essa bronca toda dele com o Leão? – estranhou o Claudio.

-Porque o Leão era a sua antítese; disciplinado, cumpridor de horários, seguidor de uma vida regrada.

-Era, então, a antítese do Sócrates também. – concluiu.

-Mas o Sócrates aceitou, prontamente, a decisão do Adílson Monteiro Alves; creio que eles já se entendiam bem na seleção brasileira; O Casagrande só iria para o escrete alguns anos depois.

-O que se dizia era que o Sócrates se entendia bem mesmo era com o Casagrande.

-Eu também imaginava isso, mas depois da leitura desse livro, vi que não foi bem assim.

-Eles não eram almas gêmeas?... petistas, viciados, atraídos pelo mundo artístico...

-O Sócrates colocou o nome do filho de Fidel, o Casagrande pretendia fazer a mesma coisa quando nasceu o seu primogênito. Acontece que a mulher dele, Mônica, ex-jogadora de vôlei, protestou com veemência. O menino se chamou, então, Victor Hugo. Casagrande se resignou porque era o escritor de “Os Miseráveis”.

-A mulher dele ganhou a parada.

-A diferença de Victor Hugo para Fidel Castro é do vinho para o vinagre. – comparei.

-Mas os dois eram amigos, ou o livro não diz isso?

-Claudio, quando o Casagrande foi detido portando drogas, com 19 anos de idade, no início de carreira, levou uma reprimenda de pai para filho do Sócrates.

-Logo ele?!...

-Anos depois, os papéis se invertiam: o Casagrande ralhou com o Sócrates, porque ele, possuindo um grande potencial, não concluía nada. Como jogador de futebol, não despontou no futebol europeu; como médico, não seguiu a carreira; como técnico, não se dedicava; como um político cheio de ideias, chegou a ser secretário de esporte e não foi além disso.

-Era o álcool.

-Claudio, você deve saber que, em Ribeirão Preto, ele investiu 300 mil dólares, em 1992, e criou a Medicine Socrates Center, uma clínica para atender profissionais da área esportiva e pacientes comuns. Mas o alcoolismo impediu que ele carregasse esse projeto, mais um, até o fim.

-O Casagrande era outro viciado, então, um passando sermão no outro seria cômico se não fosse trágico.

-Eu dizia antes que eles não se entendiam tão bem, soube por esse livro. Quando o Casagrande foi trabalhar na Globo, o Sócrates comentou que ele se vendera ao sistema. Casagrande, quando soube, não deu um pio, mas evitou o Sócrates, não quis mais saber dele.

-É o patrulhamento ideológico.

-O patrulhamento ideológico é asqueroso e vai ao encontro daquela frase em que o Nélson Rodrigues dizia que a mais desprezível das paixões é a paixão política. – manifestei-me.

-Parece-me, Carlinhos, que eles se reconciliaram.

-Esse jornalista, Gilvan Ribeiro, amicíssimo dos dois, procurou restaurar a amizade deles e a oportunidade surgiu com um programa de televisão do Paulo César Caju. O Casagrande se fez presente e nada de aparecer o Sócrates, preocupando todos.

-Devia estar curtindo uma carraspana. – imaginou meu irmão.

-O Casagrande lembrou que, no seu casamento, quando o escolheu para padrinho, todos esperaram muito tempo por ele, inclusive a noiva...

-A Mônica, a ex-jogadora de vôlei?

-Isso. Eles tiveram, então, de substituir o padrinho para que o casamento se realizasse. Sócrates apareceu bem depois como o diabo gosta.

-E nesse programa do Paulo César Caju?

-Apareceu quase que no apagar das luzes. Os desafetos se abraçaram, deram tapinhas nas costas, quase que fizeram juras de eterno amor...

-Era tudo jogada para a plateia.

-Sim. O escritor conta no seu livro que a sua desilusão veio na carona que deu ao Casagrande; ele disse que só fizera aquilo pelo Paulo César Caju, porque o Sócrates continuava a não respeitar ninguém.

-Mas eles não se reconciliaram? – voltou meu irmão com a pergunta.

-Quando o Sócrates estava no leito do hospital, com poucas chances de sobreviver, eles se abraçaram, choraram. Quando o Sócrates morreu, Casagrande redigiu um texto para o Diário de São Paulo que intitulou “Confesso que Te Amei.”

-Inspirou-se nas memórias do Pablo Neruda. – lembrou.

-O grande problema do Sócrates, diz esse livro, é que ele não se conscientizava que era um alcoólatra, que se tornara um joguete da bebida, assim sendo, não se tratou como deveria.

-E ele era médico.

-O Casagrande, viciado em cocaína e, em heroína, bem mais em cocaína, sofreu três overdoses em que não morreu porque o coração dele era de atleta. Não tinha como ele não saber que era escravo do vício. Ficou um ano numa clínica de reabilitação sob um tratamento pra lá de severo, não podia nem ter contato com os familiares. E o sistema, ou seja, a Globo, não deixou de pagar seu salário em momento algum o que foi uma ajuda e tanto para ele.

-A Globo tem seus altos e baixos.

-O Sócrates não teve essa chance.

Uma longa pausa representou o esgotamento desse assunto para nós.

-E quando o Daniel e a Gina vão retornar de Petrópolis?

-Só à noite, Carlinhos. 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

2923 - pensando bem


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5173                        Data:  20 de agosto de 2015
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METRÔ – IDA À ESTAÇÃO E CONVERSAS
 
IDA
Por que vou, por volta das 5h 30min da manhã, a pé até o metrô de Del Castilho? Acredito que seja um resquício das corridas que eu fazia desde 1983, antes de ir trabalhar. Passaram-se os anos e o que chegou a ser uma corrida de uma hora de duração é, agora, uma caminhada de 15 minutos, que ainda me faz ser grato às minhas pernas como Brás Cubas de Machado de Assis. 
                   No caminho, passo pelo que já recebeu o cognome de beco da morte, que é o corredor estreito que liga a Avenida Suburbana até a escadaria de 45 degraus que leva à passarela da estação do metrô. Exageraram, porque eu passava por lá antes de me tornar freguês dos taxistas do ponto Domingo de Magalhães, ou seja, transitava pelo beco indo para o trabalho e voltando, e, nessa minha experiência, não soube de ninguém que morrera ali. Soube sim de um assalto, contado pela vítima, numa tarde, que desancou o Padre João, da Igreja Nossa Senhora do Rosário, porque, segundo ele, o padre impediu que o caminho do beco atravessasse o meio do terreno da igreja. Será que a proximidade física maior com a casa do Senhor regeneraria o assaltante que, assim, se tornaria um novo São Dimas? Não creio.
                   Falando de dias mais recentes, nessa minha passagem pelo beco tenho visto cracudos perambulando, viciados fumando debaixo da escadaria e passageiros do trem do ramal de Belford Roxo, o popular matassapo, que, para não pagarem a passagem, aproveitam o buraco que fizeram no alambrado, sob essa escadaria, saltam do muro para a linha férrea e, entre os dormentes, caminham até a estação de Del Castilho da Supervia, onde dão outro salto, agora para cima, colocando-se entre os pagantes que aguardam o trem.
                   Testemunho essas irregularidades, mas, no que diz respeito a assaltos aos cidadãos que pagam impostos escorchantes, não soube de nenhum, por isso, não me privo da minha curta caminhada.   
                   Ontem, porém, houve um ponto fora da curva (também aqui vai a nossa contribuição para tornar a imagem geométrica do ministro do STF, Luís Roberto Barroso, um clichê), eu dera uns dez passos a caminho da mencionada escadaria, quando vi que, do lado contrário, caminhava um sujeito. Ao me notar, olhou para trás. Não vinha, infelizmente, ninguém. Éramos eu e ele naquele beco, suspeitei que seria assaltado. Não cruzou comigo, veio em minha direção.
                 -Eu quero sair do tráfico...
                
                 Entendi que dissera “alemão”, provavelmente o morro.
                 -Vai falando que eu vou ouvindo.
                 Disse-lhe isto sem parar um momento, creio até que acelerei os passos.
                 -A minha filha precisa de leite, chora... Eu não sou ladrão, tio... Mas eu não suporto ver a minha filha chorar...
                  -Já sei; você quer dinheiro.
                  Nesse instante, eu parei e levei a mão para o bolso traseiro da minha calça, coberto por um casaco, porque entrara uma frente fria na cidade.
                  -Não é isso... não é isso.
                  Na hora não entendi sua reação; mais tarde, aventei a hipótese de ele ter julgado que eu puxaria uma arma, pois a minha voz era firme e meu gesto rápido de levar a mão para trás, para um lugar do meu corpo que ele não via, por causa do casaco, o assustara.
                  Senti-me mais aliviado, e apressei as passadas, pisando já os primeiros degraus da escadaria, mas ele não desgrudava de mim.
                  -Tio, eu preciso do leite.
                   Michael Jackson pedia ao seu médico particular “milk”, o coquetel de drogas que o mataria. É verdade que esse pensamento me vem agora, quando escrevo, pois, na hora, eu só pensava em sair fora do que me parecia uma iminência de assalto.
                   -Então, você quer dinheiro?
                   -Aqui está escuro.
                   -Está, vamos para lá, que está mais claro, onde eu posso ver o dinheiro.
                   Já estávamos na passarela, e surgiam pessoas que vinham pela outra escadaria. Sem nunca parar, tirei a carteira do bolso e tive o cuidado de direcionar os meus dedos para a parte das moedas.
                   -Mas não dá para comprar o leite. – disse-me com a mão espalmada onde eu pusera duas moedas perfazendo R$ 1,50.
                  -Mas não dá para o leite... – insistiu.         
                  Tarde demais para ele e para os eleitores que votaram na Dilma acreditando que a inflação estava dentro da meta, nós dois já descíamos os primeiros degraus da estação do metrô de Del Castilho, onde se destacavam dois seguranças.
                   -Não dá...
                   -Dá sim.
                   E ele seguiu seu caminho, atrás, certamente, de mais R$ 3,50, para poder comprar o seu leite, ou “milk”.
 
                   CONVERSAS
         Não são todos os passageiros do metrô que estão dormindo, quando sentados, principalmente se há idosos nas proximidades, ou que estão absorvidos pelos seus celulares e smartphones, de pé ou abancados, há aqueles que conversam. Quando as conversas me interessam, eu as ouço discretamente.
        Dia desses, dividi o espaço entre o balaústre e a porta com quatro pessoas, entre elas, uma que expressava, com os seus sapatos surrados e roupa amarrotada, a dignidade de um trabalhador. Quando a porta se abriu em Maria da Graça,  entrou um sujeito de uns 40 anos, como ele, mas um pouco melhor trajado, notei que seu rosto se alegrou. Sem perda de tempo, tomou a iniciativa.
        -Então, tudo certo?
         Depois de se cumprimentarem com um aperto de mão, o sujeito que acabara de embarcar, lhe perguntou.
        -Está indo para onde?
        -Para a Tijuca no prédio do Bradesco.
        -Conheço esse Bradesco; você vai ter de saltar na estação de Afonso Pena e andar um pouquinho.
-Faço a baldeação na Central.
-Algum trabalho por lá?
-Estou limpando as janelas e hoje eu vou limpar as janelas até o décimo andar.
-Décimo andar?
-Tenho de ir cedo, porque tem menos gente passando pelas calçadas, menos pessoas para reclamar que está caindo água lá de cima.
-Você faz a limpeza pendurado naquela cadeirinha?
-Com a gente não tem esse luxo, não; é na corda, mesmo.
Será que o Bradesco não tem dinheiro para comprar cadeirinhas para os trabalhadores mais humildes arriscarem a vida?- perguntei-me.
-Aquela corda é um sufoco. – comentou o interlocutor que entrara em Maria da Graça.
-Eu é que sei; nem olho lá pra baixo quando estou preso naquilo.
-Mas você tem de olhar, se não vai cair pingos d’ água nas pessoas.
-Pior se eu cair nelas.
-É verdade.
-Então, morre todo mundo. - expressou seu conformismo macabro.
-Quanto você ganha por mês?
-Mil e trezentos reais.
-O que é isso?!... Uns dois salários mínimos.
-Mas já penso em largar esse emprego e procurar outro.
-Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; só larga se estiver certeza absoluta que o outro emprego é certo.
-Eu sei; tem gente por aí que está matando cachorro a grito; aceitaria o meu lugar sem cadeira, sem corda, sem nada.
-Sim.
-Como o Bradesco comprou o HSBC, vai haver mais janelas para limpar.
-Vai, mas com o mesmo número de trabalhadores, o meu serviço vai aumentar. Se eu puder largar, largo mesmo.
-Mas, meu amigo, mesmo não estando pendurado no décimo andar, continue tendo cuidado.
O trem do metrô já havia parado na estação da Central, e muitos passageiros se acercaram da porta que se abriria.
-Vou nessa. Até outro dia.
-Fica esperto.
-Tenho de ficar, se não, despenco lá de cima.
Depois que o trem do metrô reiniciou a viagem, o que ficara emudeceu durante todo o tempo em que eu estive próximo a ele, entregue aos seus pensamentos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

2921 - Armários e balangandãs


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5171                        Data:  18 de agosto de 2015
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SABADOIDO

-A Gina não está?
Dei pela sua falta.
-Foi ao supermercado.- respondeu o Claudio na sua cadeira de chupar laranja, enquanto eu me acomodava na sua cadeira de ler jornal. Conosco, Daniel se punha no meio das almofadas do pequeno sofá de alvenaria.
-As compras aos sábados tinham saído da rotina dela.- observei.
-Ela foi fazer companhia a irmã, Carlão.
-E a Jura está bem?
-Quem não esteve bem esta semana foi o Daniel.
-O que houve? - voltei-me para o meu sobrinho.
-Tive um negócio aí...
Depois que o mal foi identificado, identificou-o com desdém:
-Gastroenterite.
-Poxa, Daniel, você tem de tomar mais cuidado com a alimentação. Parar com refrigerantes...
-Eu não bebo refrigerante.
-Não bebe, mas na visita `a mamãe, no aniversário dela, você levou uma garrafa de Coca Cola para casa.
-Foi uma exceção que confirma a regra.- justificou-se.
-Tem ido `a academia de ginástica? Você anda meio barrigudo.
-Falto, às vezes. Tenho de perder uns 8 quilos para chegar a 25 de índice de massa corporal.
-Você sabe calcular o IMC?
-Não só o IMC, como o MMC e o MDC.
-Falando sério, Daniel.
-Peso dividido pela altura elevado ao quadrado.
-A Gina levou o Daniel para a emergência do Prontonorte.- manifestou-se meu irmão que, pacientemente, descascava uma laranja seleta.
-Lá, a Gininha ficou pior do que eu porque, na sala de espera, ela teve de assistir ao programa da Ana Maria Braga e ao “Bem-Estar”.
-Quanto ao programa da Ana Maria Braga, eu tenho as minhas erisipelas assistindo, mas quanto ao “Bem-Estar”...
-Críticas candentes, Carlão, críticas candentes.
-Eu vejo o “Bem-Estar” no Canal Viva, depois da minha janta, e gosto. É um programa com médicos especialistas e com conhecedores das várias modalidades de exercícios físicos. Você, Daniel, até deveria seguir umas dicas deles sobre alimentação, principalmente.
-Aproveite que ela não chegou ainda do supermercado, pois ela vai arrasar com tudo isso que você disse agora. - alertou-me meu irmão.
-E você, Carlão, tem ido na Academia da Terceira Idade da Praça Mané Garrincha? - indagou-me em tom zombeteiro.
-A Praça Manet?... Vou duas ou três vezes da semana, umas 4 horas da tarde e fico por lá uns 40 minutos. Não encontro idosos, apenas crianças, algumas de 10 anos. Como aqueles exercícios, ao contrário da caminhada, são enfadonhos, puxo conversa com os garotos mais educados para o tempo correr mais rápido, enquanto me exercito.
-Cuidado para não ficar com a fama de pedófilo.
-O velho tem razão; como a criançada me adorava, eu era chamado de Michael Jackson.
-O problema é a erotização extremada que a Mídia despeja sobre nós de umas décadas para cá. Se o Charles Chaplin filmasse “O Garoto”, hoje, seria acusado de pedófilo. Se o romance “Os Miseráveis” fosse escrito na  nossa realidade, Jean Valjean seria procurado pela Inspetor Javert por pedofilia, porque levou Cosette, ainda menina, para morar com ele. - comentei.
-E com essa exaltação ao LGTB, estamos voltando à Grécia Antiga, sem a filosofia, é claro, e ao Império Romano. - seguiram-se as palavras do Claudio às minhas.
-É verdade – concordei. Segundo alguns estudiosos, o primeiro imperador romano heterossexual foi Claudio.
-Júlio César não era macho?- surpreendeu-se meu sobrinho.
-Júlio César disse que era homem de todas as mulheres e  mulher de todos os homens.
-O Júlio César?!...
-Daniel, você parece o Olavo quando lhe disseram que o Mazaropi era viado: “O Jeca Tatu?!...” - tentei reproduzir o desencanto do Olavo.
-A diferença é que a decepção do Daniel é fingida, a do Olavo não, foi sincera, ele era fã do Mazaropi.- disse meu irmão.
-Tibério, o terceiro imperador de Roma, colocava seus peixinhos na piscina...
-Peixinhos na piscina, Carlão?
-Meninos. Ele metia alguns peixinhos na sua piscina e os sodomizava. Calígula, que viria a ser imperador, foi um peixinho do Tibério.
E prossegui:
-Era tudo extremamente erotizado, na Roma dos césares, e parece que estamos regredindo. Hoje, as crianças, com a erotização por todos os lados, não vivem o ciclo completo da infância e se tornam adultos mal resolvidos.
-O Tibério era malucão.
-Malucão, Daniel, nomeou o cavalo dele Incitatus imperador.
-Calígula não era tão maluco assim, Carlinhos; pelo menos, o cavalo não roubava.
-O velho tem razão; o cavalo do Calígula não estaria envolvido na operação Lava-Jato.
-Falando sério, eu não sou homofóbico. Tenho grande admiração por Marcel Proust, Keynes, Tchaikovsky, Leonard Bernstein, Oscar Wilde, André Gide, Alan Turing, e muitos outros. Todos discretos, não se portavam como caricaturas de mulheres, não soltavam a franga.
Daniel, depois de me ouvir, interveio:
-Carlão, eu assisti ao filme “O Jogo da Imitação”.  O cientista inglês Alan Turing salvou centenas de milhares de vidas decifrando o código dos planos nazistas, no entanto, após a guerra, foi perseguido no Reino Unido por sodomia e acabou se matando.
-O Tchaikovsky bebeu água da bica, numa epidemia de cólera, ou seja, suicidou-se, porque tinha de reprimir a sua sexualidade. - foi o Claudio ao encontro das ideias do seu filho.
-Eles mais Oscar Wilde e muitos outros foram vítimas de homofóbicos e, como eu disse, não cultivo a homofobia, pelo contrário, acho desprezível. Eu tive dois grandes amigos que também gostavam de homens, mas não apregoavam isso; nós nos tratávamos com respeito. Um desses dois se insinuou discretamente, cantando “Menino do Rio”, com trejeitos afeminados, mas quando viu a minha cara de paisagem, voltou para dentro do armário.
-Já que o assunto é esse, vou para o teclado tocar “We Are The Champions”, imitando o Freddie Mercury. - disse o Daniel levantando-se e indo em direção ao seu quarto.
-Claudio, parece que o Aldyr Blanc não escreve mais aos domingos no Globo.
-O artigo dele não é mensal?
-Mas já passaram mais de 30 dias.
-Eu não reparei.
-Eis uma pessoa que entra na velhice de uma maneira lamentável. Quanta rabugem, amargura, ódio, humor raivoso naqueles artigos políticos! Nem me sinto bem quando leio aquilo, às vezes, evito.
-Como letrista, ele é, talvez, um dos três maiores da música popular brasileira nos últimos 50 anos.
-Pois é, Claudio, ele escreveu aquela inspirada letra “Resposta ao tempo”, mas, na realidade, ele foi derrotado fragorosamente pelo tempo. Eu gostava dele. Assisti duas vezes, no Teatro Glauce Rocha, em 1998, ao espetáculo do Claudio Tovar e Lucinha Lins “ Aldyr Blanc, um cara bacana.”
 -E o Luís Fernando Veríssimo, Carlinhos?
-Quando o filho do Érico escreve sobre economia e política, ele é a mescla da erudição com a falta de lucidez.
-É isso aí.- disse meu irmão.