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terça-feira, 5 de março de 2024

3154 WM - O golpe da cafeteria

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O BISCOITO MOLHADO


Volume 3023                     Data: 05 de Março de 2024 

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A GAROTA DA CAFETERIA


Estava sentado na cafeteria. Na mesma cafeteria que sempre frequentei, no bairro do Rio Tavares, tomando o mesmo café de sempre. Cappuccino italiano com adicional de canela.

A cafeteria encontrava-se quase deserta, com apenas eu e um homem trajando roupas sociais, ambos imersos em mundos próprios, situados em extremos opostos. Em meio ao ambiente tranquilo, eu apreciava a arte de não fazer nada enquanto degustava o meu café. Optava por não utilizar nenhum dispositivo tecnológico ou mergulhar em leituras. Embora seja um amante dos livros, reservava o horário do café para uma prática contemplativa, uma espécie de mindfulness – a aclamada ferramenta predileta dos coachs digitais. Ao que tudo indica, já vinha adotando essa prática intuitivamente, sem sequer estar ciente do termo. Para não afirmar que minha mente estava completamente vazia, ao saborear o café, concentrava-me em direcionar meu foco para apreciar suas nuances através das papilas gustativas, especialmente o sabor adocicado e amadeirado da canela, com suas impressões cítricas.

Pois bem. Eu estava lá, sem pensar em nada. Apenas focando na temperatura do líquido ao passar pela minha garganta e em como meus sensores de sabor reagiam às suas essências. Sem ler, sem nenhum gadget, sem nada, praticamente um psicopata. Foi quando, de forma abrupta, minha atenção foi capturada por uma presença inesperada. Uma jovem desconhecida surgia diante de mim. Uma ruiva, aproximadamente vinte e cinco anos, trajada inteiramente de preto. Seu figurino compreendia uma legging preta e um moletom preto adornado com um delicado desenho de uma caixinha de música. Num dia de verão, o clima abafado contrastava com sua escolha de vestuário, divergindo muito do estilo do executivo imerso em seu notebook, que ostentava uma camiseta branca lisa e uma calça caqui de tecido fino.

Meu mindfulness foi para o espaço sideral quando ela entrou. A música ambiente que tocava uma bossa nova instrumental, pareceu aumentar de volume, e voltou a estabilizar conforme ela ostentava passadas firmes por entre as mesas da cafeteria. Uma mulher determinada.

E foi aí que aconteceu uma coisa absurda. ABSURDA, repito, em maiúsculo.

Ela andou na minha direção e se sentou na mesa que eu ocupava. Isso mesmo que você leu: na minha mesa, na cadeira bem em frente da minha. Como assim? Com tantas mesas vazias, por que se sentar logo na minha? O que ela queria comigo?

Achei o fato de uma gravidade descomunal. Sempre considerei um ato absurdo, desrespeitoso, interromper um ser humano que contempla o nada. Abalar o ócio alheio deveria ser incluído na lista de pecados capitais.

Eu estava nervoso, me sentindo invadido, mas não queria ceder. Não seria o primeiro a falar. Ignorei sua presença e continuei tomando meu café, fingindo que nada estava acontecendo. Tratava de evitar qualquer contato visual, mesmo me corroendo por dentro, como se parasitas devorassem meus órgãos internos. Podia sentir a quentura do olhar da ruiva me fitando. Eu derretia naquela cafeteria.

Conseguimos manter a competição por cerca de uns três minutos, e confesso que fiquei aliviado quando ela disse a primeira palavra, me tornando um campeão do jogo da “Vaca Amarela”, no qual o primeiro a falar é eliminado e insultado. Vocês sabem, né? Enfim... fui o vencedor e, no caso, a palavra que a fez ser derrotada foi:

– Oi.

– Oi – respondei, virando o rosto com calma para o primeiro contato visual. Parecia uma cena clichê de novela mexicana em reprise.

Seu rosto era delicado e os cílios longos. A boca era pequena, como de uma gueixa. A pele tão clara que era possível ver, além das pintas típicas das ruivas, pequenas veias verdes circularem pela testa. Apesar da delicadeza, o olhar passava um tom imperioso.

– Seu café tem cheiro de canela.

– Sim. Eu peço com dose extra de canela – respondo e dou mais um gole enquanto volto a observá-la.

Ela parece ser ruiva natural. Posso dizer pela raiz do cabelo, pelas pintas no rosto e pela sobrancelha também avermelhada. Ou isso, ou ela se esforça muito para se parecer a uma ruiva natural.

– Eu não gosto de canela – diz a ruiva natural, ou que esforça muito para se parecer a uma ruiva natural.

– O problema é seu – respondo, malcriado.

Ficamos mais um tempo em silêncio. Diria que mais uns dois minutos. Ainda tinha um resto de café na xicara que já estava em temperatura ambiente. Entretanto, eu não estava disposto a dar o último gole para finalizar o café. Sempre acontece alguma coisa depois que o café acaba e, naquele momento, eu estava com receio do que estava por vir. O futuro poderia ser sombrio. O inverno poderia chegar antes da hora.

Foi quando o garçom passou e perguntou se queríamos algo. Para o garçom parecia muito natural duas pessoas uma na frente da outra. Afinal, é a configuração mais clássica quando falamos de disposição em uma cafeteria. Ele pode ter achado que éramos amigos, ou um casal, ou empresários discutindo o orçamento de uma empresa startup de tecnologia, ou qualquer coisa. Não pareceu nenhum momento suspeitar que éramos dois estranhos, sendo um deles com sua intimidade invadida, com seu ócio desrespeitado, atirado às traças.

A ruiva pediu um cappuccino.

– Sem canela, por gentileza. Eu não gosto de canela – fez questão de frisar, talvez apenas para me provocar.

Será que ele anotaria tudo numa única comanda? Estaria eu a financiar o café da mulher que se sentou na minha frente sem o meu consentimento?

– Para mim mais um cappuccino italiano, com a dose extra de canela – pedi para não ficar para trás.

Não é do meu feitio repetir o café matinal, porém, senti a necessidade de fazê-lo para continuar firme no jogo. Assim ganharia tempo até me preparar para a próxima jogada. Meus bispos e minhas torres estavam intactos e atentos para defender o rei.

– Ontem foi o meu aniversário – disse a ruiva.

– Parabéns – respondo, blasé.

– Eu não ligo muito para aniversários. É só mais um dia.

Respondo com os olhos algo como “tanto faz” e giro a xícara com o gole que resta do café que não tomarei.

O garçom chega com os novos cappuccinos. “Sem canela para a madame, e com canela extra para o amigo.” – diz o simpático garçom, prestativo, que quase nunca erra os pedidos, e que provavelmente anotou tudo numa única comanda. Nós dois agradecemos uníssonos.

A ruiva segurou o café com as duas mãos e o sorveu ainda quente. Ela parecia saber o que estava fazendo. Ao sorver o café, a bebida é pulverizada na boca, fazendo o líquido entrar junto ao ar, o que ativa as papilas gustativas da língua, aumentando a percepção de sabores.

– Bom – ela elogia num tom sério, como uma sommelier de cappuccinos sem canela.

Repito o olhar de “tanto faz”, percebendo que minha má educação forçosa veio como defesa à ruptura do meu precioso ócio. Foi então que escutei um pedido um tanto peculiar.

– Me fale da sua avó paterna.

Quase me engasguei. Com o cappuccino entalado na garganta, respondi:

– O quê?

– Isso mesmo que você ouviu. Me fale da sua avó paterna.

– Não vou falar da minha avó paterna. Por que falaria?

– Te entendo. O pedido pode parecer meio estranho mesmo. Mas... por favor. É importante para mim. Você poderia falar da sua avó paterna? Por favor – repete a suplica me encarando com olhar pidão. Seus olhos sabiam fazer um ótimo olhar pidão.

– Minha avó paterna faleceu há mais de vinte anos. – Eu sei.

– Como assim você sabe?

– Quis dizer... eu imaginei. É normal na nossa idade já não termos mais a presença dos avós.

Interessante ela ter usado o termo “nossa idade”, estando eu próximo aos quarenta. Tomei como elogio e cedi:

– E o que você quer saber sobre minha avó?

– Qualquer coisa. Fale qualquer coisa.

Foi quando comecei a recordar da minha avó. Ela era uma boa mulher. Carinhosa, divertida, boa cozinheira. Me chamava de uns apelidos engraçados, típicos da cidade onde ela nasceu no sul do país. Gostava de contar umas histórias do folclore local, algumas que me aterrorizaram por anos, como a lenda do minhocão – uma espécie de serpente monstruosa com língua de fogo que morava na lagoa da cidade e que perseguia crianças malcriadas. Enquanto pensava na minha avó, ia soltando palavras que pareciam ser devoradas com atenção máxima pela mulher ruiva, de quem nem o nome eu sabia.

Falar da minha avó paterna ativou algo dentro de mim que não soube bem explicar. Só sei que comecei a falar sem parar, a entregar histórias e sentimentos com um nível de detalhes que não imaginava recordar. E a mulher na minha frente não piscava um olho. Que tremenda ouvinte estava ali, cem por cento atenta e presente. Seria ela uma psicóloga com a capacidade de atenção plena bem apurada?

Confesso que não percebi o momento que ela se comunicou com o garçom, mas sei que na mesa chegou uma porção de pão de queijo, brioches, manteiga e uns croissants. Enquanto ela comia e esparramava manteiga sem desgrudar os olhos dos meus, percebi uma certa emoção quando comecei a detalhar o amor da minha avó pela culinária. Contei que era especialista em fazer arroz de carreteiro, e o preparava com a carne bovina bem picada que sobrava do churrasco, além de linguiça e tomate. Fazia tudo refogado em bastante gordura, sempre caprichando nos temperos. O cheiro-verde salpicava com fartura para dar o toque final. As lágrimas caiam com discrição dos olhos da ruiva, que já havia dado conta de finalizar todos os carboidratos da mesa.

Interrompi minha narrativa para perguntar se estava tudo bem.

– Então é isso. Agora eu tenho certeza – disse ela, convicta, enxugando as lágrimas com o guardanapo.

– Certeza do que?

– De que eu te conhecia. Eu sabia que eu te conhecia desde o momento que te vi entrar na cafeteria.

– Desculpa, mas eu não tenho a impressão de ter te visto antes. Sou bom em reconhecer e guardar fisionomias.

– Mas eu te conheço – afirmou, plena.

– Você me conhece ou conheceu a minha avó? Ou as duas coisas?

– É muito mais do que isso.

– O que é então?

A ruiva respirou fundo e soltou algo que eu não estava preparado para escutar:

– Eu sou a sua avó!

– Ahn? – respondei incrédulo, tentando digerir o absurdo que havia escutado.

– É isso mesmo. Eu sou a sua avó. Sua avó paterna. Óbvio que não nessa encarnação, porém na última.

– Na última?

– Sim, sou muito sensível a esse tipo de coisa. Fiz uma regressão e consegui enxergar quatro gerações para trás. Na última, fui uma senhora de família aqui do Sul, que amava cozinhar. E adivinha qual era a minha especialidade? Isso mesmo: arroz carreteiro, com cheiro-verde como toque final.

– Você tem certeza disso?

– Absoluta. E estou feliz por encontrar o meu netinho.

– E por acaso você consegue lembrar do seu nome na última encarnação?

– Lembro sim – afirmou, resoluta.

– Maria Eugênia, não é mesmo?

– Exatamente. Maria Eugênia. Fui muito feliz sendo a Maria Eugênia. Obrigado por ser parte importante da minha vida. Agora preciso ir, é muita coisa para digerir. Adeus, meu neto.

A mulher ruiva se levantou, passou a mão no meu cabelo como num afago de vó e, assim como entrou decidida, saiu sem olhar para trás.

Obviamente a conta ficou comigo. O cappuccino sem canela e todos os pães foram parar na minha comanda. E tudo bem. Minha avó teria ficado feliz de eu tê-la convidado para um café da manhã, pena que ela se chamava Ignácia.