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sábado, 26 de agosto de 2023

259 - A RUA DO MURO




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O BISCOITO MOLHADO

Edição 2133.         Data: 9 de agosto de 2004

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FACADAS  EM  NOVA YORK



Vi o ator Daniel Day-Lewis pela primeira vez representando um pintor que nascera com paralisia cerebral e apenas movimentava o pé esquerdo.

- “Se atuando só com o pé esquerdo é essa maravilha, imagina com os dois...”

E saí maravilhado do cinema. 

No filme “Gangues de Nova York”, Daniel Day-Lewis, além de chutar com os dois pés (o verbo é chutar mesmo, porque o filme é violento), corta como poucos (é açougueiro), e atira facas com a mira de um artista de circo.

- “Além de ele, como trabalhador de açougue, cortar com perícia o gado bovino, caprino, ovino, suíno e, principalmente, o gado humano que chegava a Nova York nos navios de imigrantes, precisava atirar facas com essa perícia de profissional circense?...” - indagava-me no meio do filme.

O diretor desse filme é o Martin Scorcese, que despontou no “Taxi Driver”, quando permitiu que Robert De Niro, que também despontava, improvisasse na cena do espelho, permissão que só era dada a atores do calibre do Marlon Brando e que se tornou uma das referências do filme.

Gangues de Nova York tem ainda Leonardo DiCaprio que, num papel inteiramente oposto àquele romântico do Titanic – não podia, agora, colocar-se na proa e bradar que era o dono do mundo, pois uma faca voaria até o seu fígado. Afinal, Bill, the Butcher, o personagem do Daniel Day-Lewis era quem mandava no pedaço.

Também temos no filme a “Cameron Diaz”, que se chamava “Jenny” antes de esse nome se tornar corriqueiro entre as prostitutas. Era, além de prostituta, trombadinha e a cada trombada que provocava, ela acrescentava ao seu orçamento um cordão, um relógio, uma carteira, etc.

As primeiras imagens do filme são tão marcantes que trechos delas retornam durante os dezessete anos do desenrolar da história, 1846 a 1863, como se fossem “leitmotif” wagnerianos (as passagens musicais das óperas de Wagner que retornavam). Já conceituaram o cinema como a música das luzes e, assim, tivemos um Martin Scorcese quase operístico. As imagens recorrentes do filme acentuavam as personalidades, os comportamentos e explicavam as futuras facadas.

A história se inicia no bairro de Five Points com uma briga sanguinolenta entre duas gangues de Nova York: uma, os “Dead Rabbits”, de imigrantes chefiada por um padre irlandês (Liam Neeson), e outra, os “Bowery Boys”, de nativistas, cujo líder era William Cutting, o açougueiro, que se orgulhava de o pai ter morrido na luta contra os ingleses na Segunda Guerra da Independência (1812-1814).

O filho do padre, com cerca de dez anos, que acompanha o pai desde os preparativos da briga, quando ele mancha a lâmina da navalha ao barbear-se (uma das imagens que retornam como “leitmotif”) foge, mas não escapole, e é enviado para um reformatório.

Sai ele de lá dezesseis anos depois como Amsterdam Vallon, personificado por Leonardo DiCaprio, e a primeira coisa que faz é jogar no rio a Bíblia que o padre do reformatório lhe dera, porque está tomado pela idéia do olho por olho, dente por dente, e facada por facada (também tenta manejar a faca com destreza). Está ele tomado pelo desejo de vingança e, para isso, incorpora-se ao bando do açougueiro, e até alia-se a ele, convivendo com uma máfia que corrompia, roubava, promovia perseguições preconceituosas e se divertia com os irlandeses que chegavam nos navios-caixões chamando-os de comedores de batatas. William Cutting ou Bill, the Butcher, afeiçoando-se ao seu pupilo, cuja identidade desconhece, ensina-lhe até a esfaquear, usando como modelo um porco, “a carne mais parecida com a humana”, mostrando-lhe os lugares para ferir, para doer, para matar, e onde a lâmina encontra a costela e quebra-se.

O próprio rapaz se deixa envolver pela sua personalidade, esquece por momentos a vingança, e salva o assassino do seu pai de um atentado no teatro. Um antigo guerreiro da gangue do seu pai, “Os coelhos mortos”, o faz retornar à trilha da vingança além do triângulo amoroso que se formou com a trombadinha Cameron Diaz.

Talvez dois ou três leitores do Biscoito Molhado, caso se achassem neste momento na redação do Biscoito Molhado, questionassem o fato de nos determos num filme do passado, já vencido na entrega do Oscar de 2003; ocorre, no entanto, que, com a disputa eleitoral americana entre George Bush e John Kerry, ele se atualiza, segundo alguns comentaristas. As discussões políticas, os posicionamentos dos componentes do Partido Republicano e do Partido Democrata que hoje se vê “à dorée” nos noticiários, no filme “Gangues de Nova York” são vistos “en su tinta”, segundo eles. As coisas no filme não são, contudo, tão simples quanto algumas resenhas que lemos na internet que afirmam que os antagonismos crescem, ultrapassam a briga entre as gangues e se transformam no nascedouro das disputas entre Republicanos e Democratas, sendo o Republicano, os nativistas, os xenófobos e os assassinos, como o personagem de Daniel Day-Lewis, e os Democratas, os imigrantes e “progressistas” como o personagem de Leonardo DiCaprio. 

Ora, não existem, ao que parece, essas divisões tão simples assim no filme e na história dos Estados Unidos da América: as coisas são bem mais complexas. A tendência bipartidária surgiu desde a disputa eleitoral entre Thomas Jeffereson e John Adams, onde o grupo democrata de Thomas Jefferson pregava a supremacia dos estados-membros, enquanto o grupo federalista de John Adams pregava a supremacia do poder central. 

Abraham Lincoln, que governava os Estados Unidos na época em que se desenrola a maior parte do enredo do filme Gangues de Nova York, pertencia ao Partido Republicano e impediu o desmembramento dos Estados Unidos da América com uma guerra.

Não foi só essa a grande obra do presidente republicano: libertou os escravos, incentivou a política de imigração e de povoação do oeste, assinando o Homestead Act (a reforma agrária), que concedia a propriedade de terras a quem as colonizasse. Décadas depois, o presidente Theodore Roosevel, também do Partido Republicano, executou as medidas de caráter sociais mais profundas até então.

As gangues de Nova York, naqueles efervescentes anos, mesmo aquela que foi vista por alguns espectadores como “republicanas”, insurgiram-se violentamente contra o alistamento obrigatório do presidente Lincoln para a Guerra da Secessão.

O filme que começou com a sanguinolenta briga entre as duas gangues, em 1846, encaminha-se para o mesmo final, em 1863, com Amsterdam Vallon no lugar do pai, na liderança dos “Dead Rabbits”. Porém, os acontecimentos políticos atropelam aquela disputa, a princípio, particular - e os bairros de Nova York se rebelaram contra o alistamento obrigatório, que só abria exceção para as famílias ricas que pagavam. 

Um político corrupto dissera, no filme, que sempre se pode contratar a metade pobre para matar a outra metade, mas eles resolveram também matar os ricos. Não bastasse essa sublevação, com casas aristocráticas invadidas pela turba enfurecida, Martin Scorcese fundiu outras explosões populares num mesmo cenário: a revolta antiabolicionista de 1834 (negros perseguidos e assassinados), os “election acts”, brigas entre adversários políticos, e os “flour acts”, mais conhecidos aqui no Brasil como saques aos supermercados.

Quando o filho do padre enfrenta o assassino do seu pai, mal se vê a faca na mão de um e de outro, pois a Marinha dera início ao bombardeio de Nova York com o objetivo de dar fim a revolta popular que punha em risco as instituições. Quando a poeira baixa, e a fumaça se torna maia rarefeita, vemos Bill, the Butcher, de joelhos, com uma faca cravada no abdomen. Amsterdam Vallon lhe dá a estocada de misericórdia.

Os historiadores garantem que a cenografia do filme é de uma precisão de ourivesaria, que foi baseada nas fotografias de “Five Points”, a parte baixa de Manhattan que hoje abriga Chinatown e prédios de repartições públicas. Era, na época do filme, uma paisagem urbana composta quase inteiramente por favelas. Tudo, então, era muito pobre, o que dá para entender o “muro” do nome Wall Street, que era um tapume de madeira que substituíra a cerca de pau a pique que impedia as cabras e e os porcos de se perderem naquela terra desconhecida que é hoje o East Side. Wall Street, aliás, é citada na revolta popular do fim desse filme épico; foi lá que posicionaram as canhoneiras que atiraram nos revoltosos.


COTAÇÃO DO FILME: bonequinho esfaqueado, mas aplaudindo.