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terça-feira, 13 de setembro de 2011

2008 - o bibico e a dragona

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3838 Data: 31 de agosto de 2011

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NOTA

Como eu fiquei exposto com a criação de um blog e os casos

que se seguem são verídicos, os nomes foram trocados.


TRÊS MOMENTOS NA VIDA DE CARLOS ÁTILA

PRIMEIRO MOMENTO

Anos 70. O chumbo tetraetila que saía dos canos de descarga dos carros não nos fazia bem. Líamos nos jornais, entre notícias do futebol e receitas de culinária, que essa química elevava a octanagem da gasolina. Mas a que preço?!

Apesar de morar numa rua de pouco trânsito (o tráfego de veículos para o Méier era feito pela Rua Chaves Pinheiro, não pela Rua Estevão Silva), Pirulito preferia a nossa movimentada área à quietude, automobilisticamente falando, da sua vizinhança. Para o Pernetinha, estudante de Medicina da UFRJ, a Chaves Pinheiro era a capital cultural do Cachambi. Lá, ele encontraria pessoas que discutiam os últimos filmes em cartaz, os sucessos do Gil, Caetano, Chico Buarque, Tom Jobim, os livros de Julio Cortazar e de Sartre, entre outros. Na Rua Estevão Silva, onde morava, o horizonte da turma não passava do Maracanã.

No entanto, a poucos metros da residência do nosso futuro médico, morava o Carlos Átila. Cursava o Científico, hoje, 2º Grau, de um colégio sem destaque. Sua frustração, escondida pela sua imensa vaidade, era estudar no Colégio Militar. É verdade que os alunos desse educandário sofriam com os xingamentos, com a alcunha de “cachorrinhos matriculados”, mas isso era fruto da inveja daqueles que eram desprezados pelas futuras professoras que ainda sonhavam, na década de 70, em se casar com oficiais das Forças Armadas. Carlos Átila gostava de ser invejado, embora ninguém nutrisse esse sentimento por ele, que se soubesse.

-Se Carlos Átila valesse a terça parte do que julga, seria a oitava maravilha do mundo. - pilheriava o Pernetinha, nas malidicências entre amigos.

Quem também aparecia no nosso grupo da Chaves Pinheiro era o Bezerra, não porque quisesse falar de filmes, canções e livros, nada disso. Bezerra era um garotão alegre, de uns 18 anos, que gostava de jogo de bola sobre todas as coisas. Meu irmão mais novo o conheceu numa escola em Del Castilho, onde os dois concluíram um curso técnico aos trancos e barrancos. Nessa época, foi formado um time de futebol de salão e o Bezerra jogava na posição de goleiro. No futebol de campo, entretanto, como era de estatura mediana, tinha de jogar na linha, pois, se fosse defender o gol, os atacantes mais talentosos chutariam bolas altas sobre ele com facilidade.

Casou-se, anos depois, com uma moça bonita e parruda. A responsabilidade da nova vida o afastou do futebol, e ele, sedentário, engordou muito. Certa vez, reportando-se aos treinos do Vasco da Gama no campo do Manufatura, precisamente ao curto passeio que os jogadores Brito, Fontana e Buglê deram pela calçada da rua Fernão Cardim, disse:

-Como os três jogadores do Vasco, eu, minha mulher e meu cunhado tomamos toda a largura da calçada; eles, por serem musculosos e nós, por sermos gordos.

Mas as boas lembranças me levam a falar do Bezerra, quando o protagonista dessa edição do Biscoito Molhado é o Carlos Átila.

No campo Cachambi, que se estendia por uns 100 metros, pela Avenida Suburbana, da esquina da Rua Estevão Silva até as proximidades da Rua Silva Mourão, se reuniam todos: populares e detestados, maconheiros e não-fumantes, policiais e malandros, estudiosos e vagabundos. Mais de uma vez, testemunhei, nas famosas peladas das terças e sextas-feiras, diálogos travados entre policiais e jogadores de carteado sobre batidas em que eles estiveram em campos opostos. Agora, a bola de futebol os unia.

O campo Cachambi, que acabou lá pelo ano de 1974, para ser transformado numa concessionária da FIAT, era uma referência para nós, moradores do bairro. Meu pai costumava levar a mim e aos meus irmãos, pela mão, em meados da década de 50, para assistirmos, aos domingos, as partidas que, para os nossos olhos de criança, pareciam épicas. Aquele campo que, com o passar dos anos, como muitas pessoas, se tornou careca, exercia uma atração irresistível.

Pelo menos umas três vezes por semana, lá, no campo Cachambi, se reuniam as turmas da redondeza. Eram vistos todos os que citei aqui, inclusive o Pernetinha, que não jogava bola, mas adorava debochar daqueles que a maltratavam. Bezerra e Carlos Átila, que tinham a mesma idade, tornaram-se menos assíduos porque foram chamados para o serviço militar. Bezerra foi para o R.E.I. , como recruta, e Carlos Átila para o C.P.O.R.

-Olhe: parece que ele escuta o Hino Nacional.

Pirulito tinha razão, Carlos Átila se mostrava aprumado como se ouvisse um Hino Nacional imaginário, mesmo à paisana, quando era visto na rua.

Conta meu irmão Cláudio que, certa vez, viu o Bezerra, passando pelo Cachambi, fardado de soldado, com o bibico (*) dobrado sobre o ombro. Foi parado por um Carlos Átila furioso.

-Você está nu! Você está nu! Um soldado tem de manter a compostura!

Atônito, Bezerra tirou o bibico do ombro e o colocou na cabeça.

Carlos Átila examinou detidamente cada botão do seu uniforme, o brilho das botinas, os amarrotados da calça, passou-lhe outra descompostura e, finalmente, o liberou.

Bezerra se aproximou do meu irmão, e prometeu:

-Depois que eu der baixa, entro de sola no joelho dele, na primeira bola dividida.

SEGUNDO MOMENTO

A entrada do Carlos Átila para o CPOR representou o que parecia impossível: ele se tornou mais insuportável ainda.

Um dia se meteu com o Pantera, que morava numa casa pobre da mesma Rua Estevão Silva. O apelido fazia justiça ao modelo. Crioulo retinto e muito musculoso, assemelhava-se mesmo ao felino. Os folgazões garantiam que Pantera adquirira toda aquela musculatura carregando ladrilhos para cima e para baixo na fábrica de cerâmica da Klabin. Sim, Pantera era trabalhador, as palmas de suas mãos eram tomadas pelos calos, o que não impedia que fosse detido pelo camburão da polícia, várias vezes.

-Os policiais já abordam o Pantera com a palavra: “Confesse”.- pilheriava o meu irmão mais novo.

Eu soube desse caso no campo Cachambi, numa conversa daqueles que chegaram tarde para a pelada. Vamos a ele.

-Ontem, o pessoal da Estevão Silva estava reunido, quando chegou o Carlos Átila. De repente, ele discutiu com o Pantera e disse que tinha autoridade para prender...

-Ele queria prender o Pantera?- interromperam.

-Se queria, desistiu, pois uns dez tiveram de segurar o Pantera, que partiu sobre o Carlos Átila, louco para enchê-lo de porrada.

TERCEIRO MOMENTO

Carlos Átila também se julgava um craque no futebol. Gostava de jogar na frente, tentando marcar gols. Vi, certa vez, ele parar, depois de uma corrida e levar a mão à parte posterior da coxa.

-Tive um estiramento.

-Então, sai para dar lugar a outro. - gritaram da lateral do campo Cachambi.

O estiramento não passava de pose de quem se julga craque dos gramados. Ele logo voltou a correr com a ameaça de substituição sobre a sua cabeça.

Um dia, descobriram que o seu ídolo era o maior artilheiro do futebol internacional da época, o alemão Gerd Müller. Veio, então, a reação dos inúmeros frequentadores do campo Cachambi contra tanta prepotência: todas as vezes que Carlos Átila pegava na bola, gritavam:

-Vai, Merd Müller! Merd Müller, vai!

(*) Bibico, a gente aprende cada coisa, trabalhando no nosso O BISCOITO MOLHADO. Bibico é um chapéu de dois bicos (!!!). Usados pelos soldados, no uso externo e por todos, no uso interno dos quartéis. Os soldados deveriam usar sempre, como pregava o Carlos Átila, porém era comum vê-los descobertos com o bibico passado na dragona da túnica (aquela alcinha do ombro) tal como descrito nesta edição.

2 comentários:

  1. Sr. redator,

    Afinal esta edição trata de uma personalidade controvertida, ou, como sugere o título, trata de indumentária militar?

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  2. Trata de uma personalidade que alcançou a unanimidade:
    ninguém gostava dele.
    Biscoito

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