---------------------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 3848 Data: 14 de setembro de 2011
---------------------------------------------------------------------------------------
011, UM TAXISTA NO ESPAÇO
Antes do meio-dia de uma segunda-feira, eu já voltava do trabalho. Do ponto mais elevado da rampa da estação do metrô de Maria da Graça, vi que o táxi estacionado era um utilitário da FIAT, comum nos aeroportos.
- Desde uma corrida do Galeão até em casa que não entro num táxi desse tipo. - pensei, enquanto me aproximava.
Caramba! O carro, o único do lugar, não se encontrava exatamente no ponto, ficara recuado uns dois metros. Olhei para o seu interior e, por causa do vidro com tonalidade escura do insulfilm, não vi qualquer pessoa.
O taxista deve fazer como o Bob Esponja, o Gaguinho e outros que não deixam seus veículos exatamente no ponto e vão a um botequim para enganar a fome. - pensei.
Assim, pus-me no banquinho de espera e fixei minha atenção na condução que vinha da Rua Miguel Ângelo. Mais de cinco minutos se passaram e nada. Previdente, separei umas moedas para o ônibus, embora não estivesse animado em subir a Rua Van Gogh a pé, depois da minha caminhada de madrugador.
Saquei o celular e, após encontrar o telefone da “Metrô Táxi”, premi a tecla verde. Não ouvi “Pour Élise”, a bagatela de Beethoven. Aliás, nada escutei, ninguém se manifestou. Liguei novamente e, dessa vez, houve resposta. Pedi um táxi para a Rua Domingo de Magalhães, no ponto do metrô. A interlocutora solicitou o número do meu telefone. Atendi seu pedido, mas avisei que não estava em casa e sim na rua, no local de costume.
-Vamos providenciar.
Levantara-me do banquinho de espera para telefonar e, depois, sentei-me de novo. Nesse momento, o táxi 011, o que estava parado a dois metros de distância, deu sinal de vida: a porta do motorista se abriu. Fui até ele.
- Está trabalhando?... - perguntei.
- Estou.
- Agora que ele saiu do mundo da lua... - pensei, enquanto entrava no carro e afivelava bem o cinto de segurança.
- Praça Manet.
- Não sei onde fica isso, não.
Ele tinha no máximo vinte e cinco anos de idade. Procurei, então, ajudá-lo:
- Não faz mal, eu lhe ensino o caminho. Siga direto por toda esta rua.
Ele me obedeceu por uns trezentos metros e, sem nada dizer, girou o volante para a esquerda.
- Não! Aqui não!
Será que ele não viu o paredão do viaduto que fecha esse caminho?! Ele voltou para o espaço sideral. - conjecturei, enquanto ele reposicionava o carro para seguir pela Rua Domingo de Magalhães.
- Nesse lugar, os instrutores de autoescola treinam baliza com os seus alunos. - informei-lhe.
Ele subia a íngreme rua, quando o preveni.
- Lá em cima, há um cruzamento perigoso, a nossa visão não será privilegiada e os veículos que vêm da direita, quando dobram à esquerda, não costumam abrir, entrando na nossa faixa.
Duvidando que ele me tivesse entendido, enfatizei uma palavra:
- Atenção.
Por sorte, o tráfego estava tranquilo àquela hora.
- Siga para aquela rua ali em frente. - apontei.
Era outra subida, mas que não exigiu esforço algum do motor do seu táxi.
- Pegue a Rua Van Gogh, ali. Isso! Dobre a segunda rua à esquerda, a Sisley, dobre a segunda à direita, a Modigliani, e pare no segundo poste. Aqui mesmo. – disse, diante do meu prédio.
- A praça é por aqui?
- Está ali, e aquele trailer é a Fofoca da Madrugada.
E mostrei-lhe o caminho para a Avenida Suburbana, antes que ele retornasse para o espaço.
No dia subsequente, o táxi que me conduziu era de um velho conhecido: o Botafoguense. A sua primeira pergunta me surpreendeu:
- Foi à Bienal do Livro?
- Não, o ambiente me parece mais de festeiros do que de amantes dos livros.
- Levei minha sobrinha lá no dia em que o Ronaldinho Gaúcho apareceu para divulgar uma obra.
- Ronaldinho com um livro é tão estranho quanto o Rubem Fonseca com chuteiras. - manifestei-me.
- Nesse dia, a Bienal estava apinhada de gente. Minha sobrinha bobeou com a bolsa e levaram o celular dela. Era um smartphone cheio de recursos.
- Ela se queixou aos guardas?
- Sim, mas os guardas disseram que não tratam de furtos.
- E quem trata? - perguntei.
- A única coisa a fazer foi pedir o bloqueio do celular na operadora. - disse, enquanto me deixava na porta de casa.
No dia seguinte, peguei o táxi do cunhado da Ivete. Falei-lhe de um passageiro do metrô que vinha do médico, por causa de constantes esquecimentos, e ele se mostrou curioso.
- A minha mulher volta e meia fala de Mal de Alzheimer. O que é isso, mesmo?
- É um mal degenerativo, que leva à perda progressiva dos neurônios, comprometendo a memória.
- A gente esquece tudo? Minha mulher fala de uma ou outra conhecida que estão com esse problema. E parece que não tem cura.
- Não tem cura, mas há prevenção contra a doença. Recomenda-se a prática de exercícios, a alimentação saudável, o cultivo do lazer e o convívio social.
- E resolve?
- Há pouco tempo, esteve no Brasil um especialista em memória, e quando lhe perguntaram sobre o que havia de melhor para evitar o esquecimento ele respondeu: a leitura.
- Então, eu já deveria estar sofrendo do Mal de Alzheimer há uns dez anos. - reagiu.
- Se me perguntarem qual é a memória mais impressionante de que já ouvi falar, respondo que é a de uma senhora de oitenta anos, que lê uma média de um livro a cada quatro dias, o que perfaz noventa e um livros por ano.
- Eu leio uma e outra manchete de jornal. Quando o Vasco vence, no dia seguinte, me torno um leitor voraz, mas não como essa sua conhecida.
- Ela se lembra de artistas coadjuvantes que atuaram em filmes a que assistiu na década de cinqüenta. É verdade que ela esqueceu o nome do gato do filme “Sortilégio de Amor” e eu tive de pesquisar para ela.
- Com essa caixa de lembranças, ela pode viver cento e vinte anos, que o Mal de Alzheimer não a pega.
- Creio que não, mas o mais importante, para afastar essa doença, são as lembranças de fatos recentes.
- Estou também enrascado, porque não me lembro do que comi ontem.
- Não tenho esse problema porque lá em casa é galinha todos os dias.
Depois dessas pilhérias, voltamos à seriedade:
- Você já deve ter notado que as crianças vencem os adultos com facilidade no jogo de memória. Está tinindo a memória de curto prazo da meninada.
- Nós guardamos muita porcaria antiga na cabeça e os garotos não, por isso eles levam vantagem. - reagiu.
- Um colega meu de trabalho foi visitar a filha, que mora nos Estados Unidos, e ficou admirado com a disposição dos velhinhos. Eles trabalham nos postos de pedágios, recolhendo o dinheiro, trabalham nas caixas de supermercado, empacotando. E todos que ele viu se mostraram satisfeitos da vida. São aposentados, que não querem deixar os cérebros ociosos.
- Eles estão tirando o emprego de quem precisa. - criticou o cunhado da Ivete.
Quando já estávamos na Rua Modigliani, disse-lhe:
- Outro dia, fiquei preocupado comigo mesmo, porque saí do táxi do Gaguinho, desejei-lhe um bom serviço e fui lembrado por ele de que não pagara a corrida.
- Rapaz, se eu me esquecer um dia de cobrar, procuro um médico como esse passageiro do metrô.
Nenhum comentário:
Postar um comentário