Total de visualizações de página

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

3151 - Um pouco de passado.


---------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO


Volume 1 Edição 1854                         Data: 13 de Junho de 2003 

----------------------------------------------------------


NO ALVORADA...


-“Pretendia receber o Kirchner com a mulher no palácio do Planalto, mas os manifestantes contra as reformas eram tantos, que tive de receber aqui.” – reclamou o presidente que, sentado na sua poltrona preferida, esticava um dos braços, observando os dedos entreabertos.

 -“É assim que eu vejo se estou nervoso.”

-“E o senhor está calmo, não é presidente?” – preocupou-se o assessor sabujo.

 -“Calmo, nada.”

-“Quer que eu chame o Gilberto Carvalho?”

Todos, principalmente o assessor sabujo, já conheciam  o chefe de gabinete como o fio terra por onde era descarregada a ira presidencial.

-“Não; dia desses passei uma descompostura no companheiro Gilberto que.., depois a Marisa me aconselhou a pedir-lhe desculpas.

-“Ora, presidente, não foi nada comparável àquelas descomposturas da Maria da Conceição Tavares.” – mostrou-se o assessor sabujo paciente com a dor de dente alheia.

-“Mas eu disse pro Gilberto “não vou te pedir desculpas, apesar da Marisa mandar.”

O assessor de jornal na mão interveio:

-“Acabo de ler que a CUT afirma que não será correia de transmissão do PT.”

-“Nem no próprio PT a correia de transmissão está bem azeitada.” – suspirou o presidente, de desalento.

-“Logo, aprenderão...”

Excitado, Lula ergueu-se da poltrona:

-“Meu governo está chegando no sexto mês. Esses dissidentes julgam a criança no ventre. Esperem a criança nascer para então julgar. Ora bolas!”

-“O seu governo ainda não fez nem o teste do pezinho...” – murmurou um assessor com um livro nas mãos.

-“O quê?” – não entendera o assessor sabujo.

-“Nada. Uma coisa que lia sobre  Lei de Terras.”

Lula, ainda sem sentar-se, prosseguia indignado:

-“Parece que não entenderam o meu discurso na CUT.”

E tentou relembrá-lo:

-“Há gente que se afoga, não por não saber nadar, mas porque se agita; bate por demais as mãos, mexe em demasia as pernas; falam demais, e falando demais bebem muita água, e afundam.”

-“A metáfora  era bem cristalina.” – aprovou o assessor sabujo.

-“O debate, porém, está aceso.” – observou o assessor de jornal na mão, enquanto o presidente refestelava-se de novo na poltrona.

-“São aquelas discussões que provocam muito calor, e pouquíssima luz.”- prosseguiu esse assessor.

-“Gostei da metáfora.” – disse o presidente.

-“A sua com o afogamento e com o bebê é bem melhor. É uma metáfora mais bem resolvida, literariamente falando.” – comparou o sabujo.

-“Quem  citava muito essa frase sobre as discussões que provocam  muito calor e pouca luz era o Roberto Campos.”

-“Não fale em Roberto Campos que me dá arrepio.” – reclamou do assessor com o jornal o assessor sabujo.

-“Há muita gente que odeia as idéias do Roberto Campos, mas adora embolsar o Fundo de Garantia que surgiu com ele, quando ministro do Planejamento do Castelo Branco. Injustiças...” – lembrou o assessor com um livro.

-“Vamos tratar das injustiças com o nosso presidente.” – solicitou o sabujo.

-“Essa reforma da previdência...” – torturou-se o Lula.

-“O companheiro Brizola é um dos seus mais empedernidos adversários, principalmente no que se refere à aposentadoria por idade.” – queixaram-se.

-“O Lula já disse: ele pisaria no pescoço da mãe para ser presidente. Como ele não foi presidente, atrapalha quem é.”

Era mais uma vez o sabujo que intervinha. E prosseguia:

-“Ele, que assumiria a presidência da República até com cem anos; atacar a idade avançada para se aposentar.”

-“E Brizola chegará aos cem.” – sorriu o presidente, com algum sadismo.

O assessor com o livro nas mãos interveio:

-“Ele sempre garantiu que os Brizolas chegam aos noventa. É bem capaz de ele chegar. Brizola, às vezes, me lembra o doge de Veneza, Enrico Dandolo. Com 95 anos, comandou a Quarta Cruzada, em 1202. Eram 20 mil homens  e quase 500 navios sob as  ordens de um ancião quase cego.”

-“Quantos anos?” – pediram para repetir.

-“No-ven-ta-e-seis- a-nos.” – escandiu bem as sílabas. E continuou:

-“Derrotou o exército bizantino e tomou Constantinopla. E temos de saber que Enrico Dandolo se tornou doge com 85 anos.”

-“E há gente que quer se aposentar com pouco mais de 50 anos...” – lastimou o assessor sabujo.

-“Psiu! O nosso presidente se aposentou com 42.” – soprou-lhe no ouvido o  chefe da Segurança.

-“É verdade que Enrico Dandolo cometeu muitas maldades na sua longa existência?” 

Aproveitando a oportunidade, o assessor de jornal na mão, que conhecia algum emaranhado de história geral,  tirou uma dúvida com o assessor do livro:

-“Não foi Dandolo o idealizador da chamada Cruzada das Crianças, quando milhares de rapazes e raparigas se dirigiram para Alexandria e lá foram vendidos como escravos?”

-“Não; isso foi em 1212, e Dandolo teria 106 anos, se vivo fosse. Além disso, a Cruzada das Crianças, em nome do papa, embarcou em Marselha, não em Veneza.”

Lula, até então calado, manifestou-se:

-“Eu não quero intervir porque o meu forte é a biografia de Napoleão Bonaparte. Suas viagens à China...”

-“Vamos falar de coisas atuais.” – repreendeu o assessor sabujo os outros dois colegas.

-“Os sem-terra daqui a pouco...” – parou no meio o chefe de Segurança, primeiramente porque o seu discurso não era articulado, e também porque julgou que essa parada brusca comunicava melhor a intensidade do problema dos sem-terras.

Lula estendeu de novo o braço para examinar a tremedeira dos quatro dedos daquela mão.

-“Os sem-terra...” – tentou o chefe de Segurança prosseguir.

O assessor do livro assenhoreou-se, então, da palavra:

-“Todo o problema começou com a Lei de Terras de 1850. Como nesse mesmo ano de 1850 a Lei Euzébio de Queirós proibia o tráfico dos navios negreiros, os proprietários de terra se prepararam para a inevitável abolição futura da escravidão. Assim, os saquaremas, membros do Partido Conservador, trataram de aprovar a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a Lei de Terras, que deixava bem claro, e bem separados,  os proprietários das terras daqueles que trabalharam nelas. Com a Lei de Terras, só se tornava proprietário de terras quem as comprasse.  Os imigrantes europeus tinham também de encontrar dificuldades à propriedade da terra no Brasil. Como diziam os saquaremas “a luta pela terra é um germe fecundíssimo de desordens e de crimes.”

-“Esse problema dos sem-terra tem mais de 150 anos.” – suspirou o assessor sabujo.

-“Enquanto, no Brasil,  os lafundiários cercavam os seus domínios, nos Estados Unidos do presidente Lincoln, doze anos depois, 1862, era aprovada o “Homestead Act”: os colonos que chegavam no oeste bravio e trabalhavam na terra tornavam-se seus proprietários. O filme “Os brutos também amam” retrata magnificamente essa   época.” – assinalou o assessor com o livro. 

-“Esse discurso todo me deu vontade enorme de jogar bola.” – ergue-se Lula da poltrona.

-“O Palocci já retirou o gesso.” – informou o chefe da Segurança.

-“Vai jogar no seu time, não no meu.” – garantiu o presidente da República.