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NO ALVORADA...
-“Pretendia receber o Kirchner com a mulher no palácio do Planalto, mas os manifestantes contra as reformas eram tantos, que tive de receber aqui.” – reclamou o presidente que, sentado na sua poltrona preferida, esticava um dos braços, observando os dedos entreabertos.
-“É assim que eu vejo se estou nervoso.”
-“E o senhor está calmo, não é presidente?” – preocupou-se o assessor sabujo.
-“Calmo, nada.”
-“Quer que eu chame o Gilberto Carvalho?”
Todos, principalmente o assessor sabujo, já conheciam o chefe de gabinete como o fio terra por onde era descarregada a ira presidencial.
-“Não; dia desses passei uma descompostura no companheiro Gilberto que.., depois a Marisa me aconselhou a pedir-lhe desculpas.
-“Ora, presidente, não foi nada comparável àquelas descomposturas da Maria da Conceição Tavares.” – mostrou-se o assessor sabujo paciente com a dor de dente alheia.
-“Mas eu disse pro Gilberto “não vou te pedir desculpas, apesar da Marisa mandar.”
O assessor de jornal na mão interveio:
-“Acabo de ler que a CUT afirma que não será correia de transmissão do PT.”
-“Nem no próprio PT a correia de transmissão está bem azeitada.” – suspirou o presidente, de desalento.
-“Logo, aprenderão...”
Excitado, Lula ergueu-se da poltrona:
-“Meu governo está chegando no sexto mês. Esses dissidentes julgam a criança no ventre. Esperem a criança nascer para então julgar. Ora bolas!”
-“O seu governo ainda não fez nem o teste do pezinho...” – murmurou um assessor com um livro nas mãos.
-“O quê?” – não entendera o assessor sabujo.
-“Nada. Uma coisa que lia sobre Lei de Terras.”
Lula, ainda sem sentar-se, prosseguia indignado:
-“Parece que não entenderam o meu discurso na CUT.”
E tentou relembrá-lo:
-“Há gente que se afoga, não por não saber nadar, mas porque se agita; bate por demais as mãos, mexe em demasia as pernas; falam demais, e falando demais bebem muita água, e afundam.”
-“A metáfora era bem cristalina.” – aprovou o assessor sabujo.
-“O debate, porém, está aceso.” – observou o assessor de jornal na mão, enquanto o presidente refestelava-se de novo na poltrona.
-“São aquelas discussões que provocam muito calor, e pouquíssima luz.”- prosseguiu esse assessor.
-“Gostei da metáfora.” – disse o presidente.
-“A sua com o afogamento e com o bebê é bem melhor. É uma metáfora mais bem resolvida, literariamente falando.” – comparou o sabujo.
-“Quem citava muito essa frase sobre as discussões que provocam muito calor e pouca luz era o Roberto Campos.”
-“Não fale em Roberto Campos que me dá arrepio.” – reclamou do assessor com o jornal o assessor sabujo.
-“Há muita gente que odeia as idéias do Roberto Campos, mas adora embolsar o Fundo de Garantia que surgiu com ele, quando ministro do Planejamento do Castelo Branco. Injustiças...” – lembrou o assessor com um livro.
-“Vamos tratar das injustiças com o nosso presidente.” – solicitou o sabujo.
-“Essa reforma da previdência...” – torturou-se o Lula.
-“O companheiro Brizola é um dos seus mais empedernidos adversários, principalmente no que se refere à aposentadoria por idade.” – queixaram-se.
-“O Lula já disse: ele pisaria no pescoço da mãe para ser presidente. Como ele não foi presidente, atrapalha quem é.”
Era mais uma vez o sabujo que intervinha. E prosseguia:
-“Ele, que assumiria a presidência da República até com cem anos; atacar a idade avançada para se aposentar.”
-“E Brizola chegará aos cem.” – sorriu o presidente, com algum sadismo.
O assessor com o livro nas mãos interveio:
-“Ele sempre garantiu que os Brizolas chegam aos noventa. É bem capaz de ele chegar. Brizola, às vezes, me lembra o doge de Veneza, Enrico Dandolo. Com 95 anos, comandou a Quarta Cruzada, em 1202. Eram 20 mil homens e quase 500 navios sob as ordens de um ancião quase cego.”
-“Quantos anos?” – pediram para repetir.
-“No-ven-ta-e-seis- a-nos.” – escandiu bem as sílabas. E continuou:
-“Derrotou o exército bizantino e tomou Constantinopla. E temos de saber que Enrico Dandolo se tornou doge com 85 anos.”
-“E há gente que quer se aposentar com pouco mais de 50 anos...” – lastimou o assessor sabujo.
-“Psiu! O nosso presidente se aposentou com 42.” – soprou-lhe no ouvido o chefe da Segurança.
-“É verdade que Enrico Dandolo cometeu muitas maldades na sua longa existência?”
Aproveitando a oportunidade, o assessor de jornal na mão, que conhecia algum emaranhado de história geral, tirou uma dúvida com o assessor do livro:
-“Não foi Dandolo o idealizador da chamada Cruzada das Crianças, quando milhares de rapazes e raparigas se dirigiram para Alexandria e lá foram vendidos como escravos?”
-“Não; isso foi em 1212, e Dandolo teria 106 anos, se vivo fosse. Além disso, a Cruzada das Crianças, em nome do papa, embarcou em Marselha, não em Veneza.”
Lula, até então calado, manifestou-se:
-“Eu não quero intervir porque o meu forte é a biografia de Napoleão Bonaparte. Suas viagens à China...”
-“Vamos falar de coisas atuais.” – repreendeu o assessor sabujo os outros dois colegas.
-“Os sem-terra daqui a pouco...” – parou no meio o chefe de Segurança, primeiramente porque o seu discurso não era articulado, e também porque julgou que essa parada brusca comunicava melhor a intensidade do problema dos sem-terras.
Lula estendeu de novo o braço para examinar a tremedeira dos quatro dedos daquela mão.
-“Os sem-terra...” – tentou o chefe de Segurança prosseguir.
O assessor do livro assenhoreou-se, então, da palavra:
-“Todo o problema começou com a Lei de Terras de 1850. Como nesse mesmo ano de 1850 a Lei Euzébio de Queirós proibia o tráfico dos navios negreiros, os proprietários de terra se prepararam para a inevitável abolição futura da escravidão. Assim, os saquaremas, membros do Partido Conservador, trataram de aprovar a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a Lei de Terras, que deixava bem claro, e bem separados, os proprietários das terras daqueles que trabalharam nelas. Com a Lei de Terras, só se tornava proprietário de terras quem as comprasse. Os imigrantes europeus tinham também de encontrar dificuldades à propriedade da terra no Brasil. Como diziam os saquaremas “a luta pela terra é um germe fecundíssimo de desordens e de crimes.”
-“Esse problema dos sem-terra tem mais de 150 anos.” – suspirou o assessor sabujo.
-“Enquanto, no Brasil, os lafundiários cercavam os seus domínios, nos Estados Unidos do presidente Lincoln, doze anos depois, 1862, era aprovada o “Homestead Act”: os colonos que chegavam no oeste bravio e trabalhavam na terra tornavam-se seus proprietários. O filme “Os brutos também amam” retrata magnificamente essa época.” – assinalou o assessor com o livro.
-“Esse discurso todo me deu vontade enorme de jogar bola.” – ergue-se Lula da poltrona.
-“O Palocci já retirou o gesso.” – informou o chefe da Segurança.
-“Vai jogar no seu time, não no meu.” – garantiu o presidente da República.