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sexta-feira, 28 de junho de 2013

2408 - almoço com as estrelas


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4208                            Data:  14  de Junho  de 2013
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UM JUDEU E DOIS GÓIS NO ÁRABE

Quando o Elio Fischberg marcou, depois de meses e meses, um almoço, e no Damasco, com o Luca e comigo, Luca se mostrou meio errático, não porque era na capital da Síria, país em guerra civil desde março de 2011, e sim pelo fato de o seu paladar desconhecer a comida árabe, com exceção dos quibes e das esfirras. Sua filha Carolina, como me revelou, deu-lhe algumas orientações.
Vindo pela Rua Uruguaiana, parei defronte ao restaurante, na Rua do Rosário. A atendente, com um sorriso largo de boas-vindas, escancarou a porta de entrada para a minha passagem, mas eu recuei um passo e pedi que me esperasse. No momento, ela não entendeu nada, mas eu tinha visto o reflexo do Luca no espelho da porta do árabe com o celular no ouvido.
Entramos juntos e subimos a escadaria do Damasco, pois a parte de baixo estava prenhe de gente e eu imaginava o Dieckmann que, nos restaurantes de mais de quarenta degraus, sobe de elevador, como no extinto Beirute da Rua da Assembleia.
O Elio chegou, menos de cinco minutos depois, e propôs ao Luca que os dois não falassem, que o almoço fosse um monólogo meu. Pretendia, assim, deixar-me sem assunto para o Biscoito Molhado. Sua intenção é evidente, fracassou; greve de silêncio dos dois seria como uma greve de fome do Jô Soares. Logo, os dois conversavam sobre arte culinária.
-Elio, a comida árabe é boa?
Elio teceu loas à arte de cozinhar dos descendentes de Ismael e frisou que, nas suas viagens a Jerusalém regalava-se com os pratos das arábias. Em seguida, elogiou a comida portuguesa e de outros países, como não citou a França, Luca estranhou.
-Olha, já estive em Paris três vezes, há muita propaganda sobre a culinária francesa. - comentou o Elio.
E muitos queijos, também – associei, comigo mesmo, aquele diálogo a De Gaulle, que dissera: “Como podemos conceber um sistema de um único partido num país que tem mais de 200 variedades de queijos?”
-E a culinária brasileira?- foi a minha vez de perguntar
-Ótima. - respondeu o Elio sem o chorrilho de adjetivos próprios do Dieckmann.
Luca aproveitou para enaltecer Recife com suas iguarias, quitutes e pitéus.
Quando o assunto se esgotou, a Tamoio, que fora relembrada no Rádio Memória de domingo, voltou ao ar.
-Gostei muito quando citaram o “Pick-Up Sabido”, eu já não me lembrava mais desse programa. - interveio o Luca.
Elio Fischberg, que também foi ouvinte assíduo dessa emissora, relembrou algumas programações. Para não ficar mudo, reportei-me ao Humberto Reis, um dos locutores da rádio. Sobre ele, Luca falou para o Elio o que já me contara algumas vezes.
-Era fascinado pela minha irmã. Ele me abriu as portas para mestres da literatura, como Rainer Maria Rilke.
Humberto Reis foi para o Luca uma espécie de Rosa Grieco, com menos erudição, evidentemente, pois nesse quesito ela é insuperável.
Como ele também atuou como jurado do programa do Flávio Cavalcanti, deflagrou-se um jogo de memória sobre os integrantes daquele juri, o que nos fez citar até o Carlos Renato, o poeta do adultério, Mister Eco e Hugo Dupin, do Diário de Notícias. Todavia, uma integrante daquele grupo não saía do canto das nossas memórias nem a fórceps. Iniciou-se, então, uma espécie de aproximação mnemônica.
-Ela namorou aquele cirurgião plástico, Hosmany Ramos. - disse o Luca.
-E, sobre esse caso, ela escreveu o livro “Amor Bandido”.
Elio cerrou as vistas para exigir mais da memória e obteve êxito:
-Marisa Raja Gabaglia.
-Marisa Raja Gabaglia. - fez eco o Luca, como costuma acontecer depois que alguém se lembra do que esquecemos.
Nesse momento, já devorávamos os pães árabes cujas circunferências superam as dos pratos com pastas de grão de bico e já bebíamos Bohemia, suco de uva e água mineral, cada um com sua bebida.
Veio-me à mente o relógio que o Hosmany Ramos furtara do Pelé, quando ele o tirou para mergulhar na piscina de um clube chique, mas o Luca já levara uma dúvida do último Sabadoido, que não fora desvendada, ao Elio.
-Como era conhecido o estádio da Portuguesa?
A resposta era tão óbvia que escapara dos nossos olhos naquele sábado: Estádio da Ilha do Governador.
O assunto passou, então, a ser futebol. Com a palavra o Luca:
-O Ruy Castro escreveu sobre a bofetada na Copa de 50...
Houve um pequeno desvio no tema para que fosse citada uma frase do meu irmão Cláudio sobre os dois únicos brasileiros que morreram sem ser anistiados, Barbosa e Wilson Simonal,  por coincidência negros, e retornou-se ao jogador que teria sofrido uma bofetada do Obdúlio Varella.
-Bigode. - disse eu.
-Mas ele não recebeu  bofetada alguma. - frisou o Luca.
-Eu sei que isso é lenda, Luca.
Nesse instante, Elio fez uma intervenção de valor inestimável:
-Certa vez, meu pai chamou um técnico de televisão. Sabem quem apareceu?... o Bigode. Ele queria deixar o futebol no passado, sem trazê-lo de volta, mas meu pai, muito diplomaticamente, conseguiu que ele falasse da final da Copa de 50 contra o Uruguai. Bigode contou que houve xingamentos entre os jogadores, até cusparadas, mas bofetada, nunca.
Luca retomou a palavra com o tom enfático:
-Sabem quem inventou essa história de bofetada no Bigode, segundo o Ruy Castro?
E respondeu:
-Mário Filho.
Eu, que há um mês, assistira ao documentário “Mário Filho” e considerei exagerada a afirmação do Luís Mendes sobre a sua supremacia como cronista esportivo (seu irmão Nélson, sim, é insuperável), consolidei ainda mais o meu juízo.
Nessa crônica esclarecedora do Ruy Castro, que eu leria depois, merece destaque esse trecho: “O perigo é quando tomamos Mário, o fabuloso cronista, pelo historiador que ele queria ser.” Nesse perigo não incorreu Nélson Rodrigues, cujo segredo era radiografar a alma dos jogadores. “Daí porque suas crônicas podem ser lidas e saboreadas hoje, 50 anos depois...”
Bigode, técnico de televisão... Imaginei o susto que eu levaria se pegasse o táxi dirigido pelo Escurinho, ponta-esquerda do Fluminense.
Vale frisar que os kaftas, os tabules, os quibes, o arroz com lentilhas não atrapalharam o fluxo da conversação.
 Agora, o tema era teatro. Elio aludiu à peça, em cartaz no SESC Ginástico, com Antonio Fagundes e o filho Bruno.
-A história é verídica. - disse.
E aconselhou a nossa ida ao teatro para conhecermos o embate entre o consagrado pintor russo do expressionismo abstrato Mark Rothko e o jovem assistente Ken.
 Citei o que eu lera, um espectador não parava de tossir e o Antonio Fagundes, fugiu do texto para comentar o quanto ficava sensibilizado com as pessoas que adiam o hospital para ir ao teatro. Luca se reportou à edição do Biscoito Molhado sobre a velhinha tossigosa numa récita da Madame Butterfly do Teatro Municipal do Rio de janeiro. E assim o almoço transcorreu até o final, com muita conversa. Inacreditavelmente, não se tratou de música popular brasileira. Para o Dieckmann, imaginei, foi um alívio, mesmo estando à distância, pois Luca e Elio costumam, não contentes só em falar, em cantar. E as músicas que entoam são geralmente mais tristonhas que os lamentos do profeta Jeremias.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

2405 - tolices e asneiras em debate


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4205                              Data:  09  de Junho  de 2013
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O QUE FLAUBERT TERIA ESCRITO

Disse o grande escritor norte-americano Mark Twain:
“A diferença entre a palavra exata e a palavra quase exata é a mesma diferença entre o vaga-lume e o raio.”
Essa frase se coaduna com a busca incessante de Flaubert pela palavra precisa, Le mot just. Pelo que se diz, ele, mesmo noivo, se confinou por cinco anos para escrever “Madame Bovary”, romance publicado em 1857, embora já fosse do conhecimento público por ter saído em série na revista literária La Revue de Paris durante dois meses e meio em 1856. O romance não é volumoso como “Guerra e Paz”, de Tolstoi”, e “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, que ultrapassam as 1000 páginas, “Madame Bovary”, dependendo da edição, não alcança 300. Por que, então, Flaubert demorou tanto tempo para escrevê-lo? Por causa da sua busca obsessiva pela palavra precisa,  Le mot just. Escreveu ele que “Uma boa frase em prosa deve ser como um bom verso na  poesia: imutável.”
Nélson Rodrigues, autor prolífico, quando citava Flaubert, nas suas crônicas, era para falar da comemoração que fazia quando punha no papel duas frases em 15 dias. Exagero compreensível, porque o estilo do nosso dramaturgo dostoievskiano era hiperbólico e, muitas vezes, sarcástico.
Nessa questão de colocar a palavra errada numa frase, já exemplifiquei, tempos atrás, com o técnico da seleção brasileira de 1994, na Copa do Mundo nos Estados Unidos, mas não custa repetir a frase agora. Criticado porque a nossa seleção jogava defensivamente, Carlos Alberto Parreira disse, numa entrevista, que o gol era um detalhe. As críticas, naturalmente, recrudesceram ainda mais, e tudo porque ele não usou a palavra exata: consequência. O gol era uma consequência.
Aquela seleção, que se tornaria campeã do mundo, não tomava a ofensiva, deixando a defesa com brechas para o inimigo ocupá-las, por isso, o gol passou a ser a consequência de uma estratégia cautelosa.
Formado com 23 anos de idade em Educação Física, estudioso da teoria futebolística, Carlos Alberto Parreira também se dedicava à pintura e à fotografia, não era, portanto, de cometer erros na sua fala. O mesmo não acontece, por exemplo, com a apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga, que apresenta um programa de amenidades que descamba, às vezes, para as futilidades, tudo entremeado com receitas gastronômicas. Nada contra as receitas, até o celebrado escritor Alexandre Dumas, que era gourmet e gourmand, escreveu um livro sobre os ingredientes de diversos quitutes, iguarias e pitéus. Sem esquecer Rossini, mestre da ópera, que deu nome a suculentos tournedos. Na verdade, o chef de cuisine Marie-Antoine Carême criou o prato em que homenageou o grande compositor: “Tournedos Rossini.
Zapeando pelos canais da TV a cabo, parei por minutos no “Só Você”, porque mostrava uma exibição de artistas brasileiras em Portugal com a citada apresentadora. Trata-se de um vídeo tape, pois ao término do mesmo, vê-se a Ana Maria Braga nos estúdios da TV Globo concluindo sobre o que se viu:
-“A gente volta de Portugal com um adjetivo: saudade.”
Adjetivo?... Eis um erro substantivo. Mas cabeças coroadas da cultura europeia cometeram também erros, alguns ainda maiores do que o erro gramatical acima, se é que existe um estalão para dimensionar as besteiras ditas e escritas. Temos, então, de voltar ao perfeccionista Gustave Flaubert.
Depois de escrever “Bouvard e Pécuchet”, dois desastrados funcionários que se conhecem e passam a estudar e a praticar tudo o lhes ampliasse o horizonte cultural, acumulando equívocos e incompreensão, Flaubert se detém em transcrever as asnices que lia e escutava. Infelizmente, a morte cortou a pretensão metódica e racional do seu trabalho, que já tinha um título: Dicionário das Ideias Feitas. Ficaram os manuscritos inacabados com o Catálogo das Ideias Convencionais, alguma delas transcrevemos aqui para mostrar que mesmo os mestres erravam rotundamente. Lembrando o que escreveu Carlos Drummond, numa crônica, quando se referiu ao passe que Pelé deu para o adversário, a poucos metros dele, numa partida, “Também Pelé tem seus momentos de não Pelé.”

“A água foi feita para sustentar esses prodigiosos edifícios flutuantes chamados navios.”
Quem mostrou essa fixação pelas majestosas embarcações marítimas, não vendo outra serventia para o mar, foi Fénelon. Era um poeta e escritor francês (1651/1715), cujas ideias liberais contrariram a Igreja e o Estado.
O que diria, então, Flaubert, se presenciasse a aula de um professor meu de Acondicionamento de Cargas na Marinha Mercante, ao ouvi-lo dizer extasiado: “Não existe nada mais lindo do que um navio bem carregado.”?
Alexandre Dumas Filho criou “A Dama das Camélias”, mas nem sempre esteve inspirado, o que prova esse texto que Flaubert julgou digno dos seus personagens  Bouvard e Pécuchet:
“A posteridade, a cujo julgamento Goethe confiou suas obras, fará o que lhe compete, escrevendo no bronze: “Goethe, nascido em Frankfurt, em 1749, morto em Weimar, em 1832. Grande escritor, grande poeta, grande artista.” E quando os fanáticos da forma pela forma, da arte pela arte, do amor acima de tudo e do materialismo, vierem pedir-lhe que ajunte “Grande Homem”, a posteridade responderá: “Não!”
Lembramos aqui que o filho do autor do “Conde de Monte Cristo” contrariou Napoleão Bonaparte que, ao se avistar com o grande artista, em Erfurt, no dia 2 de outubro de 1808, declarou para ser ouvido por todos: “Eis um homem. Vejam: é um ser humano por inteiro.”
Guy de Maupassant, talvez o maior contista da literatura universal, discípulo de Flaubert, registrou a surpreendente capacidade do seu mestre para descobrir, de imediato, as tolices.  E conta que, ao ouvir a frase que se segue do discurso de recepção ao teatrólogo Eugène Scribe, na Academia Francesa, Flaubert registrou:
“Revogação do Édito de Nantes, 1685. Morte de Molière, 1673.”
Eis a frase:
-“A comédia de Molière nos instrui a respeito dos grandes acontecimentos do século XIV? Diz-nos uma palavra sobre os erros, as fraquezas ou as faltas cometidas pelo grande rei? Fala-nos da revogação do Édito de Nantes?”
Com isso, fui levado para anos atrás quando, no meu trabalho, falei sobre a vida de Tchaikovsky vista por Ken Russell no filme “Delírio de Amor”.  Fui interrompida por uma colega, com penachos de culta, que disse que Beethoven deu em cima da mulher de Tchaikovsky.
Flaubert teria escrito: morte de Beethoven, 1927, nascimento de Tchaikovsky, 1840.




quarta-feira, 26 de junho de 2013

2404 - vá brincar no quintal!




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4204                              Data:  08  de Junho  de 2013


162ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

Há meses que eu não conseguia pegar o táxi do Gaguinho, estava interessado no desfecho da saga da bolsa de estudos do seu filho. Um e outro leitor se lembrarão certamente dessa história. O garoto, de 15 ou 16 anos, joga handebol e o seu pai, endividado com o financiamento do táxi, necessitava de uma folga no orçamento o que aconteceria caso o filho obtivesse uma bolsa de estudos, sem falar do aprimoramento nesse esporte, o que poderia render dividendos futuros.
Lá por janeiro, Gaguinho me disse que o menino estava praticamente encaminhado para estudar no Colégio Castelo Branco, com chances de ele não ter de pagar a mensalidade e de, mais tarde, cursar a universidade desse educandário, representando o mesmo como jogador de handebol.
Em fevereiro, o taxista, me disse desoladamente que meteram a mão nos cofres, e todo o complexo Castelo Branco teve de cortar as despesas a começar pela verba para os estudantes que praticam esportes. Em seguida, um brilho de esperança veio dos seus olhos, e a sua gagueira até que não foi tão acentuada quando me disse que o técnico do handebol selecionou doze adolescentes, entre eles seu filho, para estudarem no Colégio São José, de Realengo, que nada deve ao outro como centro poliesportivo (É claro que ele nem tentou falar essa palavra). As vantagens financeiras seriam praticamente as mesmas do Colégio Castelo Branco.
Quinze dias depois, em outra corrida com o Gaguinho, perguntei-lhe, de um modo um tanto brincalhão, se o seu filho já assinara contrato com o Colégio São José.
-Está por muito pouco. Muito pouco mesmo.
-Daqui a pouco, começa o ano letivo, e o guri não pode perder aula. - mostrei-me agora sério.
-Não; tudo se resolverá nesses dias.
Passaram março, abril, maio e junho já começava, e nada de eu pegar o táxi dele, o 009, para saber se tudo se resolvera mesmo, pois para mim aquilo se tornara uma novela cujo final eu, que a acompanhava, desconhecia.
Nessa última sexta-feira, notei que o táxi 009 ponteava a fila do ponto da Rua Domingo de Magalhães, no entanto, um sujeito, que se achava a minha frente, tinha o propósito, ainda que involuntário, de deixar, por mais uns dias ou meses, de frustrar a minha curiosidade. Alarguei as passadas e consegui entrar no carro do Gaguinho.
-E a bolsa de estudos?... Ficou resolvida no Colégio São José?
A sua língua travou durante uns cinco minutos na palavra “desmoronou”, o que me fez temer pelo pior.
-Desmoronou tudo. Mas ele conseguiu a bolsa no Colégio Realengo, que é enorme.
-Que bom.
-Não deve nada aos outros; tem muitos esportes lá. A única coisa ruim é que ele tem de acordar muito cedo.
-Mas essa garotada tem de ser sacudida da cama. - aparteei.
-E ele volta para casa às 6 horas da noite, hoje veio mais cedo porque não houve treinamento.
-A bolsa é de cinquenta por cento?
-Cem por cento. - disse sem gaguejar.
-Maravilha. Também porque não estão privilegiando só o futebol neste país.
-Handebol... Handebol.
Repetiu o nome do esporte, enquanto me deixava na Rua Modigliani.

E o metrô?
Eis uma pergunta inevitável dos taxistas, certamente porque os passageiros que aguardam vêm dele, completando o transporte intermodal, completo, no meu caso, se considerarmos que estive por oito horas no mundo marítimo.
-Foi constrangedora essa viagem de volta.
-Por quê? - perguntou o Flamenguista.
-Na estação da Uruguaiana, entraram duas senhoras de uns 80 anos de idade.
-E os que estavam sentados fingiram que dormiam. - disse ele.
Deduzi que o meu interlocutor já viajara algumas vezes de metrô, e prossegui.
-Uma senhora, junto a mim, que estava com os costados na lataria do vagão falou a uma desconhecida da sua intenção de ceder seu espaço para as duas, mas titubeava.
-Titubeava como?
Ela dizia que idosos não gostam, às vezes.
-Alguns não gostam mesmo que lhe cedam o lugar. - concordou.
-As duas velhinhas estavam tão combalidas que não podiam se dar ao luxo de gostar ou não. Elas tinham, na verdade, de sentar.
-E elas sentaram?
-O caso se desenrolou de uma maneira cruel. Uma senhora puxou conversa com as duas e percebeu que elas estavam no trem errado, pois pretendiam ir para Tijuca.
-Mas o que elas faziam na rua?
Essa indagação do Flamenguista me remeteu ao filme “A Última Sessão do Cinema”, quando, na cena do atropelamento alguém critica a vítima porque saíra à rua. “Ele saiu para viver” - retrucaram.
Não era, porém, esse caso. Elas, provavelmente, foram à rua para dar prova de vida ou, então, tinham consulta médica. O lamentável era não haver um parente com elas, protegendo-as e guiando-as.
-Bem, a boa cidadã, que também viajava de pé, orientou-as a saltar na estação de Cidade Nova, passar para a outra plataforma e pegar o trem que viesse. Deveriam, depois, saltar na Central do Brasil e embarcar, na mesma plataforma, no trem que viesse com as luzes vermelhas, pois esse rumava para a Tijuca.
-E tudo ficou resolvido?
-Nada; logo que as duas velhinhas desembarcaram e as portas do trem se fecharam, ouvi a tal cidadã exclamar “Meus Deus”. Olhei e vi que elas, em vez de caminharem até a plataforma paralela, subiram a escada rolante a caminho da prefeitura.
-O piranhão?!... - reagiu estupefato.
Confirmei com a cabeça.
-E como tudo acabou?
-É o que me pergunto. - disse enquanto o carro parava na Rua Modigliani.

A corrida, no dia subsequente, se deu no táxi do Sarará (como não descobri ainda seu nome, aqui vai essa identificação sem sentido pejorativo algum).
-Até que enfim o sol apareceu. - quebrou o silêncio.
-E muita gente deixa essa oportunidade passar.
-De aproveitar o sol? - perguntou.
-Uma colega minha de trabalho contou-me que, ao ser examinada num desses laboratórios, a médica lhe revelou seu espanto em descobrir tanta gente com carência de vitamina D. E a maior fonte de vitamina D é o sol.
-Mas não há outros alimentos?...
-Há o salmão, mas quem come salmão além dos brasileiros que a Dilma Rousseff tirou da miséria com 70 reais por mês?...
-O preço dos alimentos subiu muito. - comentou.
-Mas o sol está bem na frente – enfatizei - de qualquer alimento como fonte de vitamina D.
Depois de uma pausa, acrescentei:
-Mesmo os presidiários têm direito ao banho de sol.
-É o computador. Com essa história de Facebook, a minha filha fotografa a comida e posta nessa rede social para as suas amigas verem. Já disse para ela largar essa maluquice e ir brincar no quintal.
A disposição de ele desabafar a sua preocupação preencheria umas duas horas, mas teve de parar na Rua Modigliani.


terça-feira, 25 de junho de 2013

2403 - a amante




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4203                            Data:  07  de Junho  de 2013


SOB AS ORDENS DO GENERAL PATTON

Hitler nunca se mostrou tão irado, que até mesmo sua cadela, que era sempre acariciada por ele, meteu o rabo entre as pernas, depois de receber um safanão. Eva Braun, quando viu essa cena disse consigo mesmo que, se Hitler trata assim a Blondi, o que não fará com seus subordinados e tratou de ficar o mais longe possível do olho do furacão.
Depois de gritar, se esgoelar e xingar os militares alemães pelo recuo na Rússia e o fracasso na Normandia, ocorrido três meses antes, exigiu um contra-ataque que abalasse as forças aliadas.
Seu plano era lançar uma arremetida surpresa sobre as tropas aliadas na Bélgica. O objetivo primordial consistia em isolar as forças inimigas de sua base de suprimento e capturar o porto de Antuérpia, que se achava a cerca de 200 km do ponto de partida. O avanço alemão se daria pelo flanco noroeste através da floresta de Ardenas. Para tanto, foram organizados quatro exércitos, o 7º, o 5º Panzer, o 6º Panzer SS e o 15º. Totalizavam 48 divisões empregadas nos estágios iniciais da batalha.
Eu e o Dieckmann nos encontrávamos na 28ª Divisão de Infantaria conversando com alguns soldados americanos sobre as pernas da Betty Grable e a proximidade do Natal – estávamos no dia 16 de dezembro de 1944 - quando o terrível som da guerra nos ensurdeceu.
As baixas aliadas foram tamanhas, que Dieckmann temeu pela própria vida. Lembrei-lhe, como fizera outras vezes nessa guerra, que ainda não nascemos e, por isso, não poderíamos morrer.
Mas era de assustar: sofremos milhares de baixas e, no primeiro dia de ofensiva, eles conseguiram abrir uma brecha de 22 km na nossa linha de frente.
Os aliados mostravam bravura, mas não conseguiam resistir.
O chefe supremo das forças aliadas na Europa, o General Eisenhower, no Quartel General, decidiu enviar reforços para as cidades estratégicas de Bastogne, St Vith e Malmedy e ordenar duas alternativas para barrar o avanço alemão: minar trechos da estrada e criar bloqueios estratégicos na rota nazista.
-Olha, Dieckmann: vacas e bois na estrada.
Mal acabei de falar, e uma pobre vaquinha foi estraçalhada numa explosão.
-A 1ª Panzer SS está utilizando gado para limpar os trechos minados da estrada. - explicou.
Dois dias depois da ofensiva, os principais pontos de resistência já estavam destruídos. Alguns grupos de soldados americanos se desgarraram de suas unidades.
Na estratégica cidade de Bastogne, chegou a 101ª Divisão Aerotransportada liderada pelo general Mc Auliffe. Ele logo tratou de adotar medidas de defesa, pois os alemães não poderiam, de modo algum, ocupar as sete rodovias e as duas estradas de ferro de lá, seria um desastre de proporções monumentais: eles teriam acesso aos centros de comunicações, logísticos e de comando aliado.
Acrescida da 10ª Blindada e do que restou da 28ª Divisão de Infantaria, eram 18 mil soldados preparados para defender aquele importante polo rodo-ferroviário.
O confronto foi renhido, mas os alemães conseguiram romper o flanco e alguns destacamentos aliados tiveram de recuar.  Com o passar das horas, a situação ficou crítica para as tropas aliadas, estávamos em menor número, além de necessitarmos de munição, alimentos, suprimentos médicos, cobertores e combustível.
Chegou, então, ao general Anthony Mc Auliffe, a proposta do 5º Exército inimigo para que se rendesse.
-Malucos! – foi a resposta do Comandante.
-Dieckmann, eu julguei que a resposta dele seria a mesma do general Cambrone na Batalha de Waterloo.
-Conheço bem o Mc Auliffe, ele não é de falar palavrões. - observou.
De repente, o turbilhão que costuma nos deslocar no tempo e no espaço, nessas viagens ao passado, nos colocou ao lado do General Patton, numa reunião do Estado-Maior com o comandante supremo das forças aliadas na Europa.
-Eisenhower queria saber quem ali se considerava apto a resgatar as forças aliadas em Bastogne.
-Eu. - vibrou a voz vigorosa do general Patton.
Houve ceticismo de muitos, pois a distância das suas tropas até lá era grande, mas ele demonstrava tanta confiança, que ninguém tentou verbalizar seu pessimismo.
Na véspera de Natal, as coisas ainda pioraram: as nuvens negras se afastaram, abrindo caminho para a Luftwaffe atacar.  Uma mensagem do General Patton, já em plena campanha, foi um alento que chegou aos combatentes sitiados:
-“Aos combatentes de Bastogne, Feliz Natal. Estou a caminho. Mantenham os hunos.”
Eu e Dieckmann seguíamos agora com o 3º Exército. No início, eu me iludi.
-Dieckmann, agora, nós podemos escutar o piano do Dave Brubeck.
-Não vai dar; não haverá um minuto para o lazer, ainda mais com o Patton por perto.
-Reconheço que saí da realidade cruel, como os poloneses, que enviaram a cavalaria para enfrentar os panzers alemães.
-O General Patton transformou os tanques Sherman na sua cavalaria. Um tanque desses tem a eficiência de mil  cavalos, apesar de serem interiores aos Tiger e Panther alemães.  - assegurou-me o Dieckmann.
Dave Brubeck nos surpreendeu, pois não notamos a sua proximidade.
-Ouvi o que vocês falavam.  O General, pela sua liderança, pelo seu conhecimento tático e estratégico, entusiasmou-me de tal maneira que até esqueço o piano quando estou com uma arma na mão sob o seu comando.
-Entendo; ele acompanha o combate a pouca distância, o que inflama ainda mais seus liderados. - manifestei-me.
-Patton merece um filme sobre a sua história.
-Será feito esse filme, Dave. - disse-lhe o Dieckmann, enquanto o jazzista se afastava correndo para alcançar seus companheiros que se adiantaram.
-Você ainda tocará com Duke Ellington. - gritei-lhe sem saber se fui ouvido.
Dieckmann me falava agora em tom professoral.
-Patton pensa em tudo. Sabe que o funcionamento do sistema operacional logístico é essencial para o êxito da campanha. Se não vejamos: um batalhão com 42 tanques Sherman necessita de mais de 50 mil litros de gasolina para um deslocamento de 260 km, como ocorre agora com o 3º Exército. Sem falar na munição, que são centenas de milhares de projéteis, além dos mantimentos.
-Todas as vezes que a força de ataque estaciona, repõe ao grupo de combate os recursos que faltam. - interferi.
-Isso, quando as colunas aliadas recomeçam o avanço, já foram municiadas de novo e reabastecidas.
E enfatizou:
-Patton pensa em tudo.
No entanto, a natureza conspirava contra o General, que não podia perder um segundo; a neve estava alta e o vento e a chuva fustigante  impediam o avanço, sem falar que a estrada para Bastonge era longa, sinuosa e margeada pela floresta.
Patton convocou o capelão e ordenou que ele fizesse uma oração aos céus pedindo bom tempo.
A oração foi atendida São Pedro, Patton condecorou o capelão, enquanto investia sobre o inimigo. 
-Nada o deterá, logo as tropas do 3º Exército resgatarão os soldados sitiados em Bastogne, que terão um Feliz Natal. - afirmou o Dieckmann.
-Se não pararem o General Patton, ele chega na jugular do Hitler.
-Não chegará, porque o Eisenhower dá mais força ao General Montgomery, ainda mais que ele arrumou uma amante inglesa e faz tudo o que ela pede. - comentou o Dieckmann.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

2414 - Zeca Gavroche




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4214                                   Data:  22  de  junho de 2013

NA  REVOLTA  DO  VINTÉM

Esfreguei os olhos, como se não acreditasse no que via, pessoas de chapéu e bengala, e disse:
-Elio, estamos de volta ao Brasil.
-Não no Brasil de 2013, a não ser que seja carnaval.
-Com tanto tempo viajando pelo passado, você se esqueceu que o carnaval se resume, desde o final do século XX, a escolas de samba, trios elétricos... A criatividade popular se foi.
-Carlos, olhe ali. - apontou.
-Um bonde puxado por burros! - exclamou.
-Coitados dos burros. - penalizado, essa foi a minha primeira reação.
-Lembra-me uma crônica do Machado de Assis que tive de ler no Colégio Militar quando eu estava na turma do corte e costura.
-Entendo, você foi para turma de corte e costura atrás das costureiras. - não perdi a piada.
-Nos anos 50, não entravam meninas no Colégio Militar. - defendeu-se.
-Elio, nessa crônica do Machado de Assis, dois burros conversam sobre o fim da atividade deles porque seriam substituídos pelos bondes elétricos; um demonstra otimismo, o outro, pessimismo.
-O pessimista estava certo, pois não ficaria ocioso, puxar carroças de lixo seria o destino deles.
-Até que o Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, acabou com essa maldade; burros arrastando carroças de lixo debaixo de vergastadas a 45º de calor.
Elio, que não gosta do governador, não disfarçou a contrariedade quando mencionei seu nome, mas logo se refez.
-Fora o vintém. Fora o vintém.
O alarido de uma pequena multidão convergiu a nossa atenção.
-Carlos, uma passeata.
-Em que ano estamos?... Precisamos saber, pois essa agitação, pelo que vejo, entrou para a história do Brasil.
Elio foi, imediatamente, atrás de um menino que vendia jornais e retornou meio esbaforido com um monte de jornais nas mãos.
-Carlos, ele me deu todos os jornais dizendo que participar da passeata era o que lhe interessava.
-Se houver barricada e esse garoto estiver nela, não haverá mais dúvidas: ele é o nosso Gavroche.
-Carlos, hoje é 28 de dezembro de 1879. - informou-me ao ler o cabeçalho da Gazeta da Noite.
E, prosseguindo na leitura do jornal, disse:
-O ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, aumentou a passagem do bonde para vinte réis, ou seja, para um vintém.
-Como estamos em 1879, Joaquim Callado ainda vive, vou gravar uma apresentação do seu grupo de chorões e levar para o Dieckmann, que precisa conhecer melhor uma das mais representativas personalidades da música popular. (*)
-Carlos, o Fred Figner não trouxe ainda o gramofone e o fonógrafo para o Brasil, aliás, as invenções ainda não foram aperfeiçoadas.
 Não perdi, porém, o entusiasmo:
-Vamos, então, para a passeata, pois fatalmente encontraremos nela a Chiquinha Gonzaga, uma das mais combativas representantes da Revolta do Vintém.
-Calma, Carlos, isso não será resolvido hoje, as manifestações populares irão até o dia 4 de janeiro do ano que vem, ou seja, 1880.
-Sua mãe, Dona Sarita, lhe ensinou isso?
-Mamãe ensaiava suas aulas comigo, ela dizia que, se eu entendesse, seus alunos do Pedro II também entenderiam.
-E você aprendeu direitinho tudo o que ela lhe ensinou sobre a Revolta do Vintém?
-Esqueci muita coisa, mas sei que o ministro da Fazenda que citei se tornaria, mais tarde, o Visconde de Ouro Preto.
 -A São Cristóvão. - gritou alguém com o penacho de líder.
-Por que São Cristóvão se é tão longe?- intriguei-me.
-Porque lá fica a sede do palácio imperial. - lembrou-me o Elio.
Enquanto aquela pequena multidão marchava, nem sempre ordeiramente, para a residência de Dom Pedro II, eu e Elio esperamos o bonde.
-Temos 40 réis para pagar a passagem?
-Tenho um dólar no bolso e a moeda americana sempre teve valor no Brasil.
Não foi preciso o Elio tirar a moeda do bolso, pois negociou antes e, assim, viajamos ao custo de vinte exemplares de jornal, aqueles que ele recebera gratuitamente do nosso Gavroche.
Na viagem, soubemos que o bonde só subiria para um vintém no dia 1º de janeiro de 1880.
-Elio, o Mário Henrique Simonsen, quando ministro do governo Geisel, queixava-se das majorações dos preços na virada dos anos, chamando isso de inflação gregoriana, mas constata-se que a coisa é antiga no Brasil.
Meu companheiro de viagem pelo tempo limitou-se a sorrir.
Chegamos, evidentemente, à Quinta da Boa Vista bem na frente dos manifestantes. Enquanto aguardávamos, compramos alguns rebuçados. Elio tirava o papel de um deles para levá-lo a boca, enquanto eu me detinha na leitura da única edição da Gazeta da Noite que restou conosco.
-Por que você franziu a testa? - interessou-se.
-Estou lendo um artigo do Lopes Trovão e ele escreve com uma ênfase de Zola contra o aumento do bonde.
-Ele foi um dos mais destacados republicanos, minha mãe me ensinou muito antes de o meu professor de História de História do Colégio  Militar se referir às causas e às consequências da República..
-Lopes Trovão era um dos intelectuais do grupo integrado por Chiquinha Gonzaga, ou seja, ele não era retrógrado. - comentei.
Um rumor que vinha de longe e, a cada minuto, crescia em intensidade abalava São Cristóvão.
-São eles.
E eram muitos, pelo caminho, mais pessoas engrossaram a marcha dos descontentes. A força policial, alertada, observava aquela massa humana sem intervir.
Pediram calma e uma voz se levantou sobre o barulho da massa: era Lopes Trovão que discursava.
O imperador se prontificou a receber os líderes do protesto, mas Lopes Trovão se recusou a negociar.
-Por que, Carlos?
-Porque Lopes Trovão está vivendo seu grande momento e vai prolongá-lo por alguns dias, pelo que deduzo.
-E Machado de Assis?...
-A essa hora, ou escreve um conto, uma crônica, algum soneto,  ou um romance. - respondeu-me.
-Se não estiver jogando xadrez, pois foi um enxadrista amador também talentoso. - acrescentei.
A multidão se dispersou, com o pedido do Lopes Trovão, mas a insatisfação, que estava no ar, deixava evidente que o desfecho não seria pacífico.
Eu e Elio conseguimos nos hospedar numa casa de pensão, não muita diferente daquela que foi descrita por Arthur Azevedo, no seu romance, à espera dos acontecimentos.
Na passagem do ano, ouvimos muitos foguetes, mas também sons suspeitos, que nos pareceram tiros de armas de fogo.
Bem, se o povo estava descontente antes de pagar um vintém pelo bonde, imagina-se o que aconteceu quando o aumento se concretizou. Não, não dá para imaginar. Na Rua Uruguaiana, Largo de São Francisco e arredores, cidadãos pacíficos, aparentemente, se tornaram possessos pela fúria. Paralelepípedos eram arrancados do chão, depois os trilhos, condutores dos bondes eram espancados violentamente...
-Carlos, esfaqueiam até os burros.
-O que os pobres dos burros têm com isso. - revoltei-me.
Mas os manifestantes estavam mais revoltados do que eu, a polícia avançou sobre eles com truculência fazendo vibrar sobre o lombo de muitos os seus enormes cassetetes.
-São as “bengalas de Petrópolis”, assim minha mãe me disse que era como o povo chamava os cassetetes dos policiais.
-Provavelmente, porque Petrópolis era a cidade de veraneio do imperador.
Mas não pude prosseguir porque quase escorreguei numa poça onde se misturavam o sangue dos burros e das pessoas.
-Os capoeiristas vieram para cá brigar, enquanto os arruaceiros para saquear as casas comerciais. - observei, olhando a agitação ao redor.
-As tropas do Exército chegaram para controlar a turba enlouquecida.
Mal o Elio disse essas palavras, um pedra arremessada atingiu em cheio a cara do comandante, o tenente-coronel Antonio Eneias, primo do Deodoro da Fonseca. Desatinado, ele ordenou aos soldados que atirassem. Muitos caíram feridos e mortos. No meio da fumaceira da pólvora, nós reconhecemos o garoto dos jornais. Entre os mortos e os feridos,  ele recitava:
-Se um vintém sai da algibeira,
Pobreza vem mais ligeira.
Quem provoca o despautério
É gente do ministério.

Cobre no bolso não tem,
E ainda nos tiram um vintém.
Maltrapilho, eu causo pena.
A culpa é de quem ordena.

E saltando sobre feridos e mortos, prosseguia:
-É muito suor no rosto
Para pagar tanto imposto.
Tudo fica mais sinistro,
A culpa é desse  ministro.

Com a morte raspando por ele, não parava.
-Chove bala em vez de chuva,
Machuca mais que saúva.
O quadro é desolador,
A culpa é do impera...

Uma bala o atingiu no peito, mas o menino valente ainda conseguiu pronunciar antes de morrer:
- dor...
Os sobreviventes não se deram por vencidos.
E não foram, de fato, derrotados. Quando tudo amainou, embora a pólvora ainda fedesse, lemos na Gazeta da Noite, no dia seguinte, que o reajuste do preço do bonde fora revogado.
-A Revolta do Vintém vai ser notícia até no The New York Times. - previu o Elio.
E acertou.
Logo depois, o ministério caiu.

(*) O redator do seu O BISCOITO MOLHADO deve ter levado o celular. Não funcionaria como telefone, mas sim como filmadora, ou gravador, desde que ele soubesse mexer nos botões. Até que acabasse a carga da bateria...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

2413 - mais calado do que nunca 2




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4213                                   Data:  20 de  junho de 2013

A RÁDIO J.B. NO RÁDIO MEMÓRIA
2ª PARTE

Como o Simon Khoury já tinha citado, de passagem, o Carlos Kroeber, o Carlão, como produtor da peça “Computa, computador, computa”, quando Fernanda Montenegro cantou “Flor Amorosa”, agora, detinha-se nele. Carlão – disse – ia ser o rival do Tarcísio Meira na novela “Roda de Fogo”, que era chamada pelos mais íntimos, segundo o narrador, de “Cu em Brasa”. O ator seria rival de Tarcísio Meira e, como estava gordo, precisava emagrecer para que os espectadores ficassem convencidos do seu papel. Assim, procurou um médico, amigo seu de muitos anos, o Doutor Praxedes, que era homossexual, para uma consulta.
O Galeno lhe receitou, então, uma dieta, mas Carlão engordou dois quilos com ela. O Doutor Praxedes mudou o receituário, mas o rival do galã Tarcísio Meira não emagreceu, pelo contrário. Voltou, então, ao médico e o encontrou acamado, combalido; quando ele lhe contou que assim estava porque escorregara e caíra com o ânus bem em cima do gargalo de uma garrafa, Carlão exclamou:
-Que pontaria!
Chegara o momento da pausa da meditação, mas com as histórias que o Simon Cury contava, não havia tempo para meditar. O próprio titular do Rádio Memória o incentivava:
-E agora?
-Simon Khoury discorreu, então, sobre o programa que produziu que tinha como atração maior um questionário com perguntas a serem elucidadas pelos ouvintes, cujo prêmio, para quem acertasse tudo, era uma coleção história da Polygram. Não havia e-mail, computador, mas eram muitos os que concorriam, frisou.
-Ninguém acertou. Alguns ficavam perto, dez respostas certas, onze. - informou.
E exemplificou com uma questão sobre um compositor de música erudita que, no seu enterro, choveu e os acompanhantes se dispersaram, com isso, não se soube mais onde foi enterrado.
Expressando uma surpresa regressiva, exclamou:
-Não houve um que acertasse.
Se a pergunta fosse feita depois de 1984, ano em que foi lançado o filme “Amadeus”, de Milos Forman, certamente muitos acertariam. - imaginei.
Lembro-me do meu irmão Claudio, todo animado, porque acertou uma dessas perguntas do Simon Khoury, e o prêmio, anunciado depois, era uma viagem no ônibus espacial Challenge, aquele que explodiu com seus tripulantes.
Sempre gozador...
Agora, o apresentador da saudosa Rádio Jornal do Brasil mostrava outra preciosidade, a gravação de uma entrevista com Paulinho da Viola. Ele lhe pergunta se, no fundo do poço, só com uma guitarra elétrica por perto, tocaria. Paulinho, com a sua voz que relaxa os nossos nervos, respondeu que sim, tocaria guitarra elétrica, mas não garantiu que o faria com prazer. Diante da insistência do seu interlocutor sobre o assunto, afirmou que considera válido que pessoas toquem esse instrumento, mas que ele, particularmente, apenas não viu necessidade de fazê-lo. E, então, cantou “Guardei minha viola”.
-Maravilha! - extasiou-se o Jonas Vieira.
-A voz do Paulinho da Viola é uma grife. - pontuou o Sérgio Fortes.
Simon Khoury voltou aos casos.
-E a gafe do Jorge Veiga... Certa vez, num hospital de tísicos, que visitava, fez um pequeno discurso: “Ilustríssimos senhores, digníssimas senhoras, amigos tuberculosos...
Quando anunciou mais uma ocorrência, agora com o Orlando Silva, Jonas Vieira, amigo do grande cantor, já prevendo o que vinha pela frente, estrilou:
-Orlando Silva, não...
Simon Khoury seguiu adiante:
-Estavam juntos Paulo Gracindo e Orlando Silva, quando Paulo Gracindo disse: “Que canícula!” Orlando Silva reagiu indignado: “Canícula o cacete! Isto é seda pura.”
Com as gargalhadas do Sérgio Fortes ao fundo, Jonas Vieira negava, com veemência, que o seu grande amigo tenha dito isso.
Sérgio Fortes, aproveitando as raras pausas que apareciam, falou de um amigo dele e do Dieckmann que, na hora de pagar as despesas, puxa um talonário do BANERJ (*). Sorte do Sérgio, que não conhece outro amigo do Dieckmann; esse recolhe os cartões de crédito dos homens para obrigá-los a pagar a conta das mulheres. Mas isso não é assunto para uma hora de descontração.
Mais sério, Simon Khoury passou para outra raridade: a gravação sua com Durval Ferreira  e Maurício Einhorn. Perguntou-lhes o que houve, na música popular do Brasil depois da Bossa Nova. Responderam que nada, que houve a Tropicália, porém nada de novo surgiu com ela, diferentemente da Bossa Nova, que exportou música popular brasileira. Simon Khoury estabeleceu uma analogia entre Jazz e Bossa Nova e quis saber se eles seriam capazes de improvisar. E assim foi, com belos solos de harmônica do Maurício Einhorn.
Terminada a gravação, foi lamentada a morte de tanta gente, mas Jonas Vieira reagiu prontamente:
-Maurício Einhorn está vivo e virá ao nosso programa brevemente.
Sempre gozador, o convidado do Rádio Memória contou que deu início a uma entrevista com Tom Jobim perguntando se ele recorria ao Viagra. Tom Jobim disse que não, mas reportou-se a um fato esquisito que lhe aconteceu. Compusera para um filme, na Europa, com o ator e cantor Charles Aznavour. No coquetel, seus amigos lhe chamaram a atenção para a deslumbrante atriz Candice Bergen, que não parava de olhar para ele. Constatou, então, que ela, realmente, flertava com ele. Abordou-a e os dois passaram a noite juntos. No café da manhã, os cupidos, prenhes de curiosidade, perguntaram-lhe como foi. “Dei duas broxadas maravilhosas” - respondeu Tom Jobim.
Não satisfeito com as risadas que provocou, Simon Khoury passou para outra história.
-Carlos Kroeber, o Carlão, adorava o Tom Jobim; em retribuição, ele compôs “Chora, Coração” para o filme “A Casa Assassinada”. Eu conhecia o Carlão e o José Lewgoy, seu amigo inseparável. Um dia, levei os dois ao Plataforma, no Leblon, para apresentá-los ao compositor. E lhe disse: “Aqui, estão dois grandes amigos, unha e carne; corda e caçamba; cu e cueca. Carlão estendeu a mão para o Tom e disse: “A cueca, muito prazer.”
Após tantas gargalhadas, veio, através de outra gravação rara, a voz sussurrante da Marisa Gata Mansa. Contou ela uma viagem de avião com a Dolores Duran, ao seu lado e de como lhe expressou o seu medo, o que inspiraria uma letra à sua amiga, em plena voo, que Ribamar, posteriormente, musicou. E cantou “Não me culpe.”
-Marisa Gata Mansa, uma pessoa tão doce...
-Lembro-me dela na TV Tupi. - juntou o Sérgio Fortes suas palavras às do Jonas Vieira.
A palavra retornou ao Simon Khoury que, depois de relembrar o grande artista que foi Paulo Fortes, citou o desafio que propôs à Elizeth Cardoso, que o deixou com o rabo entre as pernas. A prova estava na gravação que foi ao ar: ele duvidou que ela cantasse “Estrada Branca” a capela.  Não sei se foram 30 anos depois, sei que daqui a 60, 100, 200 anos quem ouvir esse momento da Elizeth Cardoso ficará, como nós, naquele domingo, encantado.
Sérgio Fortes explicou que não foi ao Sul para se embebedar, como dissera o Dieckmann e sim para visitar o filho e, em seguida, tratou de uma reportagem que lera no Jornal Zero Hora sobre “Tatuzinho”, um artista que se casaria com a “Divina” e, no entanto, foi vencido pelo alcoolismo.
O Rádio Memória se aproximava do final e Jonas Vieira se fixou nos livros da série “Os Bastidores”, que tratam de grande parte da nossa história recente. Simon Khoury informou, com orgulho, é claro, que participou de mais de 600 entrevistas cobrindo todo o espectro da vida artística daquela época.
Jonas Vieira prometeu que, no próximo domingo, prosseguiriam as recordações da Rádio Jornal do Brasil e o Simon Khoury prometeu que escarafuncharia ainda mais o seu valioso arquivo.

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO também conhece a mencionada figura. Trata-se de Henri, o atual presidente do Veteran Car Club do Rio de Janeiro. Na verdade, não se sabe se é do BANERJ, pois ninguém nunca viu a cor do cheque.