Edição 5290 SX
Data: 29 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO:XXXIV
O MATUSQUELA UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO
Uso muito o termo “matusquela”. Para adjetivar pessoas com
comportamento amalucado, capazes de cometer gestos altamente imprevisíveis, e
por aí vai. Confiro o dicionário antes de rabiscar estas linhas e chego à
conclusão de que minha definição não está muito errada.
Tenho orgulho da minha coleção de matusquelas. Gente que
conheci ao longo da vida. Ou tomei conhecimento de episódios estranhos em que
estiveram envolvidos.
Um dos meus favoritos é o Pedro Paulo. Bem nascido, boa
pinta, a família decidiu que a quantidade de confusões que vinha aprontando em
Belo Horizonte recomendava sua mudança para o Rio de Janeiro. Conseguir uma
ocupação em seu novo domicílio não chegou a ser problema. Com apoio de parentes
influentes, próximos ao governo Juscelino Kubitschek, virou locutor na Rádio
MEC.
Mas nem tudo é perfeito. O expediente do recém chegado na
rádio começava exatamente à meia-noite. Atravessava a madrugada agarrado ao
microfone, anunciando preciosidades de Beethoven, Mozart, Chopin e que tais.
Pedro Paulo ficava desesperado. Tinha coisas muito melhores a fazer nas
madrugadas agitadas do Rio de Janeiro nos anos 50.
O desespero favorece a criatividade. Numa madrugada que se
afigurava imperdível, o indigitado locutor adentrou o estúdio da MEC carregando
dois grandes pacotes. Um imenso toca-discos ocupava o primeiro. O segundo
continha um punhado de discos. À meia-noite assumiu o microfone e anunciou:
“Ouvintes da Rádio Ministério da Educação e Cultura, passamos a apresentar uma
programação muito especial. O ciclo completo das sinfonias de Ludwig van
Beethoven!” Dito isso, ajustou na tal vitrola a pilha de discos, pressionou o
botão do automático e saiu porta afora. Pelos seus cálculos, as nove sinfonias
do mestre de Bonn iriam manter os audiófilos ocupados até quatro horas da
madrugada.
Mas tudo deu errado. Um arranhão profundo interrompeu a
execução da primeira sinfonia ainda em seus acordes iniciais. A música não ia
nem prá frente nem prá trás. Instalado no Beco das Garrafas, em Copacabana,
Pedro Paulo não tomou conhecimento dos guinchos que a MEC transmitiu durante
toda a madrugada. No dia seguinte foi visto disputando uma concorrida vaga de
vendedor na Enciclopédia Britânica.
Geraldinho é outro matusquela que abrilhanta meus arquivos.
Sempre às voltas com a falta de dinheiro, dava saltos mortais de costas para
manter sua pipa no alto. Dele não se pode dizer que não tinha talento. Era um
excelente desenhista e pintor. Sua primeira opção foi a arte moderna. Pintava
quadros com um viés geométrico. Propunha-se a ser um inovador, utilizando
diversas técnicas e materiais, inclusive tintas acondicionadas em aerossol.
Em certa ocasião, devidamente instalado em sua
quitinete-ateliê da Prado Júnior, nosso herói teve sua inspiração prejudicada
por uma lata de Color Gin entupida. Um tom de vermelho que conferia graça
especial ao Simca Chambord. Geraldinho não teve dúvida. Acendeu o fogão,
providenciou uma panela de bom tamanho e botou o Color Gin para ferver. O
propósito era desentupir a válvula do artefato. Toca o telefone. Geraldinho se
derrete com uma conquista recente. Cheio de amor prá dar, a conversa se estende
por mais de vinte minutos. Uma tremenda explosão acontece. O Color Gin foi
promovido a míssil. No pequeno apartamento de Geraldinho, a geladeira agora é
vermelha. O teto e o sofá são vermelhos. Até o papel higiênico é vermelho.
Abalado com o acontecido, o artista busca uma maneira de
ganhar dinheiro rápido. Seu mercado, agora, é o das falsificações. Instala uma
linha de montagem de Inimás, Volpis e Di Cavalcantis. Tudo ia muito bem, até o
dia em que a polícia bateu à sua porta. Na assinatura de contrafações de
quadros do genial José Pancetti, Geraldinho se atrapalhou com o nome do
excepcional artista. Assinou “Pansete”. Ao entrar no camburão, ainda teve tempo
de gritar: “Nós, artistas, não nos prendemos a detalhes!”
Meu amigo João Parrudo, da República do Peru, também era um
matusquela renomado. Mantinha um romance tórrido com a Eliete. Certa noite, os
dois envolvidos em seu ninho de amor, Eliete pediu: “Me bate! Me bate!” Parrudo
fingiu que não ouviu. Mas ela insistiu: “Me bate!” Parrudo disfarçou e
persistiu nos beijinhos. A última voz de comando de Eliete foi mais incisiva:
“Me bate, seu viado!” Aí não teve jeito. Parrudo desferiu-lhe um soco capaz de
derrubar Muhammad Ali. Com ajuda do porteiro e do faxineiro do prédio, foi
possível retirar Eliete dos escombros do armário que ela destruiu ao ser
nocauteada.
Voltemos às maluquices do rádio. Na Mayrink Veiga, havia um
locutor de noticiários que deixava todo mundo em pânico. Seu encargo era ler as
notícias, de hora em hora.
Gaspar, esse era o nome da figura, costumava entrar
no estúdio segundos antes da vinheta anunciar o “Jornal da Mayrink”. O operador
de som estava sempre à beira de um colapso, diante de sua irresponsabilidade.
Gaspar não ensaiava nada, lia mal as notícias, fazia a maior confusão com nomes
de autoridades, cidades, órgãos governamentais e coisas do gênero.
Um belo dia, o maluco resolveu se superar. Faltavam cinco
segundos para o noticiário ir ao ar quando ele entrou no estúdio, em desabalada
carreira. Com as mãos abanando! Havia esquecido de pegar o script na redação!
Olhou apavorado para o rádio técnico. Este, por sua vez, dava sinais de que ia
desmaiar. A musiquinha da vinheta chegou ao final, Gaspar pegou um jornal velho
que estava sobre a mesa e, com voz empostada, bradou: “Jornal de Ontem!”
Para finalizar essa amostra da minha coleção de matusquelas,
faço uma referência ao Aniceto, outro amigo da República do Peru, em
Copacabana. Estamos na década de 70 e ele falava há meses sobre a viagem que
faria ao Paraguai. Algo realmente excepcional, porque éramos um bando de duros
e o limite do nosso raio de ação era a ilha de Paquetá.
Pois bem. Aniceto viajou e voltou, cheio de marra. Com a
mala vazia, mas ostentando no pulso um imenso Rolex, que chamava uma baita
atenção. O pessoal da rua desafiava: “ Aniceto, essa merda é falsa! Onde é que
você arranjou grana para comprar um Rolex? E logo no Paraguai,,,” Com fleuma
insuperável, Aniceto ignorava as provocações. O tempo foi passando e o assunto
praticamente morreu.
Até que, num dia de glorioso verão, ele apareceu na praia
ostentando o tal Rolex. Sol de rachar, todo mundo se esbaldando de pegar
jacaré. Todo mundo, não. Aniceto não fazia menção de entrar na água. Começam as
cobranças: “Não vai mergulhar? Será por causa desse relógio fajuto?” A resposta
era sempre a mesma: “Você quer saber ou precisa saber? Se precisa saber, não
quer saber. Se quer saber, não precisa saber...”
Crescia a rodinha em torno de Aniceto. Gente ia chegando,
chegando, até que a sentença de segunda instância foi promulgada. Aniceto foi
agarrado pelos braços e pernas e, devidamente enfeitado com seu Rolex, foi
atirado ao mar. Aos berros.
A sensação generalizada foi a de que a maré baixou. De tanta
água que entrou no “Rolex” de Aniceto. Que já chegou na areia com seus
ponteiros boiando dentro do mostrador. No inverno seguinte Aniceto fez as pazes
com a turma.
Esses são casos simplórios de matusquelice. Eventos do
passado. Hoje, quase todos os brasileiros são matusquelas. Senão vejamos. Seus
planos de saúde são reajustados pelo triplo da inflação, Reação? Nenhuma.
Inúmeros produtos têm suas embalagens reduzidas em quantidade ou peso. Mas os
preços são mantidos. Boicote? Revolta dos consumidores? Nem pensar. No trânsito
e nas estradas milhares de multas são aplicadas por conta de uma sinalização intencionalmente confusa e mal
posicionada. Gritaria? Protestos? Também não.
Matusquelas gritam contra o corte de verbas destinadas à
“Parada Gay”. Eles adoram diversão. Um milhão deles se reúne no carnaval para
seguir o bloco da Preta Gil. Não sabem exatamente o que
ela faz, qual é sua “arte”. Será cantora? Promoter? Apresentadora? Algum
palpite?
O certo é que estamos falando de uma classe em franca
expansão. Recentemente uma matusquela ocupou a Presidência da República.
Provocou uma recessão dos diabos, trucidou as contas públicas e gerou índices
alarmantes de desemprego. Seu nome foi indicado por outro matusquela. Só que
esse mais esperto, dissimulado.
A Presidenta Matusquela foi apeada do poder, o que se tornou
inevitável. Substituída pelo Drácula, Irmãos Metralha, Al Capone e pelo Coringa
do Batman, a confusão permanece.
Cresce o grito das ruas: “Golpe! Golpe! Queremos nossos
matusquelas de volta!