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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

2039 - Carlitos 2

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3869 Data: 24 de outubro de 2011

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68ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Então, o Vagabundo surgiu, para o delírio da plateia, quando você era da Keystone do Mack Sennet?

-Sim; no meu primeiro ano de cinema eu participei de 34 curtas-metragens e de um filme de tamanho maior, Tillie´s Punctured Romance. E saí da Keystone.

-Assinou, em 1915, com os Estúdios Essanays. Lá, você adiciona uma carga emotiva a seus filmes, desenvolve o seu próprio elenco...

-Com maior domínio sobre os filmes, aumentei-os em duração e passei a trabalhar com a heroína Edna Purviance e os vilões Leo White e Bud Jamison.

-Como você era mestre da mímica e da pantomima, entendida no mundo inteiro, tornava-se o expoente máximo do cinema.

-A guerra dilacerava a Europa, as pessoas precisavam rir. - explicou-se.

-Sobre o seu Livro “Chaplin: Uma Vida”, Martin Sieff escreveu este trecho na sua resenha: “Chaplin não foi apenas grande, ele foi gigantesco. Em 1915, ele apareceu num mundo mortificado trazendo o dom da comédia, risos e alívio, enquanto ele próprio se dividia ao meio pela Primeira Guerra Mundial. Durante os próximos 25 anos, através da Grande Depressão e da ascensão de Hitler, ele permaneceu no emprego. Ele foi maior do que qualquer um. É duvidoso que outro indivíduo tenha dado mais entretenimento, prazer e alívio para tantos seres humanos quando eles mais precisavam.”

Agradeceu e, constrangido pelos elogios, continuou:

-O controle artístico quase que total eu consegui um ano depois, em 1916, quando fui contratado pela Mutual Film Corporation para produzir doze filmes com duração de duas bobinas, em dezoito meses.

-Todos os seus filmes na Mutual são clássicos. - intervim.

-Trouxe Edna Purviance comigo para continuar como mocinha, adicionei o Eric Campbell como vilão, além de Henry Bergman e Albert Austin.

-Eric Campbell era excelente, o mais destacado vilão cômico do cinema mudo para mim. - interrompi de novo.

Eric Campbell era um veterano nas óperas de Gilbert e Sullivan. Então, os Estados Unidos entraram na guerra, tornei-me um garoto-propaganda para a venda de bônus com o meu grande amigo Douglas Fairbanks e sua esposa, a atriz Mary Pickford.

Como eu sabia da antipatia que Chaplin nutria pela “Namoradinha da América”, não me detive na sua pessoa.

-O total controle criativo dos seus filmes só foi conseguido em 1917?

-Sim, quando terminou meu contrato com a Mutual e eu fui para a First National. Ficou estabelecido que eu produziria oito filmes de duas bobinas. Eu tinha, agora, condições para trabalhar mais relaxado e a me concentrar na qualidade.

-Algo parecido com Verdi que, quando conseguiu o tempo de um ano para compor uma ópera, criou “O Rigoletto”. – comparei cinema com a ópera, sabendo que Chaplin, por gostar muito de música, não acharia um descalabro.

-A First National esperava curtas-metragens, mas eu os surpreendi com filmes mais longos, como “Ombro Armas”, “O Peregrino” e “O Garoto”.

-Então, Hollywood foi sacudida com a notícia que os loucos tomaram conta do hospício.

-Isso foi em 1919, quando eu, Douglas Fairbanks, Mary Pickford e D.W. Griffith fundamos a distribuidora United Artists. Nós tentávamos, com essa empreitada, escapar do poder dos distribuidores e financiadores de filmes, em Hollywood.

-Com a United Artists, você conseguiu a sua independência como cineasta até o início da década de 50.

-Só realizei filmes de longa-metragem, a começar com “A Woman of Paris”, protagonizada pela Edna Purviance, em que só faço uma pontinha.

-No Brasil, esse filme recebeu o nome de “Casamento ou Luxo?”

-”Depois, vieram “Em Busca do Ouro”, “O Circo”...

-O cinema falado...

Sempre defendi o cinema mudo. Deixa-me ver se repito textualmente o que eu disse há mais de oitenta anos: “A ação é geralmente mais entendida do que palavras. Assim como o simbolismo chinês, isto vai significar coisas diferentes de acordo com a sua conotação cênica. Ouça uma descrição de algum objeto estranho – um javali africano, por exemplo; depois olhe para uma foto do animal e veja como você fica surpreso.”

-Assim, você fez crítica ao cinema falado no discurso de um político em “Luzes da Cidade”, na canção cantada pelo Vagabundo, numa língua inventada, em “Tempos Modernos”...

-O Vagabundo só teve necessidade de falar uma vez, no discurso de “O Grande Ditador”.

-Quando os fracos e desprotegidos necessitaram de uma voz para denunciar os crimes de Hitler, você falou. - dei-lhe os méritos.

-Se eu soubesse da maldade que foi feita, no nazismo, eu não conseguiria ser engraçado.

-Você nasceu em 16 de abril de 1889, Hitler no mesmo ano, com diferença de dias.

-Lancei “O Grande Ditador” um ano antes de os Estados Unidos abandonarem a neutralidade e entrarem na guerra. Muitos americanos, que nutriam ódio pelos comunistas, estavam do lado do Hitler porque ele invadiu a União Soviética.

-Alguns estados americanos até proibiram o seu filme, ou criaram empecilhos para que ele não entrasse em cartaz.

E prossegui:

-Depois do ataque a Pearl Harbour e do engajamento dos americanos na guerra, reconheceram todos que você estava certo.

-Sim; e de toda a minha obra foi a que obtive o maior retorno financeiro.

-E a sua mãe, Chaplin?... Lembrei-me dela porque se chamava Hanna e a protagonista de “O Grande Ditador”, vivido pela Paulette Goddard, também era Hanna.

-Trouxe mamãe para a minha casa, em Santa Mônica, Califórnia, mas os distúrbios mentais ainda a perseguiam. Ela morreu em 1928.

-Eu a vi no filme de Richard Attenborough sobre a sua vida; Geraldine Chaplin a representou.

-A neta no papel da avó. - sorriu Charles Chaplin.

-Hitler, que assistia a filmes no seu esconderijo, adquiriu duas cópias d´ “O Grande Ditador”.

-Não gostou, certamente.

Ri, enquanto ele prosseguia:

-A desgraça foi que o povo alemão não gostou, também. A Alemanha nazista era completamente mal-humorada, e isso levou a toda aquela matança. Alguns italianos levaram também as coisas muito sério. Eu tive um ótimo comediante, o Jack Oakie, para caricaturar o Mussolini.

-A salvação, muitas vezes, está no riso. - declarei.

-Por que uma das minhas melhores composições musicais se chama “Smile”?

Era uma pergunta retórica, ele não esperou pela resposta.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

2038 - Carlitos

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3868 Data: 23 de outubro de 2011

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67ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Charles Chaplin, que surpresa!...

-Quem é morto, sempre aparece. - pilheriou.

-Como os críticos nunca descansam a língua, devo assinalar que você, além de ator, diretor, roteirista, distribuidor, mímico, dançarino, compositor, etc, etc, foi escritor.

-Ah, a entrada aqui só é permitida aos escritores. Escrevi a minha autobiografia; para isso, interrompi o meu trabalho de compor músicas para os meus filmes mudos.

-Dizem que alguns escritores enviaram as suas obras póstumas através de médiuns, Chaplin.

-Parece que Victor Hugo fez isso com “Do Calvário ao Infinito”, que eu não li.

-Um crítico brasileiro, Agripino Grieco, sobre esses livros póstumos, disse, ironicamente, que a morte diminui a criatividade,

-É verdade; eu tinha 63 anos quando filmei “Luzes da Ribalta” e, no papel, do velho comediante Calvero, eu deixo registrado que o tempo era o meu maior inimigo.

-Você era filho de artistas?

-Meus pais eram artistas de music-hall. Meu pai atuava como vocalista e ator, minha mãe, cantora e atriz. Nasci em Londres e aprendi a cantar com eles, que, no entanto, se separaram mal eu tinha completado 3 anos de idade. Eu e meu meio-irmão ficamos, a princípio, com mamãe.

-Ela já se mostrava emocionalmente instável?

-Meu pai bebia tanto que não era, também, um modelo de lucidez. Quanto à minha mãe, para agravar o seu distúrbio emocional, teve um problema de laringe. Lembro-me muito bem da sua primeira crise, foi em 1894.

-Você tinha 5 anos de idade.

-Ela cantava no “The Canteen”, um teatro de Aldershot, frequentado por soldados e arruaceiros. A sua voz falhou e a plateia apupou sem dó nem piedade. Atiraram objetos sobre ela, alguns a machucaram. Eu a vi nos bastidores chorando e se explicando com o gerente da casa, não pensei duas vezes: subi sozinho ao palco e cantei uma música popular da época, “Jack Jones”.

-Um pinguinho de gente acalmou aquela turba.

E, em seguida, lamentei:

-Pena que não foi filmado.

-O cinema não existia ainda. - sorriu Charles Chaplin.

-A saúde mental da sua mãe piorou?

-Ela foi internada no Asilo Cane Hill, em Coulsdon, com isso, eu e meu meio-irmão fomos morar com meu pai alcoólatra e sua amante, Louise. Nós moramos na 287 Kennington Road. Apesar da minha estada lá ter sido por um período meteórico, está lá, ainda hoje, uma placa comemorativa. A substituta da minha mãe me enviou para o Archbishop Temples Boys School. Em 1901, quando eu estava com 12 anos de idade, o meu pai morreu de cirrose.

-No seu filme de 1921, “O Garoto”, você mostra algumas das agruras que passou: orfanatos, albergues noturnos...

-A minha vida está nos meus filmes. Algumas pessoas reclamam do excesso de drama, mas eu, que o sofri na pele, não reclamei.

-Com o Surgimento da Revolução Industrial, na Inglaterra, o ser humano ficou esmagado e se deu uma reação. Os intelectuais defenderam políticas de bem-estar social, e se construíram orfanatos, albergues, hospitais, escolas dominicais...

-Dormi em muitos albergues.

-Fosse você um brasileirinho que perde o pai com 12 anos de idade, por excesso de álcool e que tem a mãe internada num asilo de perturbados mentais, o seu caminho no mundo do crime estaria traçado.

-Enviaram-me para uma escola para pobres, o Central London District of School. Contudo, eu me sentia atraído pelo music-hall.

-O seu grande momento, até então, foi a sua apresentação, com cinco anos de idade, cantando para um público hostil.

-Todas as hostilidades cessaram.

-E como você começou no mundo artístico como profissional?

-Eu disse, no “Luzes da Ribalta”, como Calvero, que somos todos amadores.

Depois desta ressalva, prosseguiu:

Entrei para a trupe do Fred Karno e, em 1910, realizamos uma turnê pelos Estados Unidos. Depois de cinco meses na Inglaterra, retornei com a mesma trupe, em 1912.

Foi quando você dividiu um quarto de pensão com Stan Laurel, o magro da dupla “O Gordo e o Magro”?... Ele era excelente comediante.

-Stan Laurel retornou a Inglaterra no fim da temporada, eu permaneci porque o cinema florescia com um vigor impressionante.

-Lá por 1913, a minha atuação foi vista por Mabel Normand, Mack Sennet, Minta Durfee e Fatty Arbuckle.

-Fatty Arbuckle era chamado, no Brasil, de Chico Boia. O escândalo, com morte, em que se viu envolvido, acabou com sua carreira.

-Mack Sennet me contratou para o seu estúdio, a Keystone Film Company e, em 1914, atuei no meu primeiro filme, “Making a Living”.

-A sua estreia não foi auspiciosa.

-Era um mundo inteiramente novo para mim. Senti uma árdua dificuldade em me adaptar ao estilo de atuação da Keystone.

-Disseram que Mack Sennet só não o despediu porque Mabel Normand, a grande atriz, interveio a seu favor.

-Passei a trabalhar com ela que, além de dirigir, escrevia meus primeiros filmes. Não gostei, evidentemente, disso.

-Mas teve de engolir porque, além de estrangeiro, era novato.

-Ainda assim, discutia frequentemente com ela. O sucesso que eu obtinha com os filmes garantiam a minha posição.

-O maior personagem artístico do século XX, “O Vagabundo”, surgiu no seu segundo filme, ainda em 1914, “Kid Auto Races at Venice”?

-O nome do filme já fugia da minha memória...

-”O Vagabundo” recebeu o nome de “Carlitos” no Brasil e na Argentina; “Charlot”, na França, na Itália, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Romênia, na Turquia; Der Vagabund, na Alemanha. The Tramp na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Charles Chaplin retomou a palavra.

-Na verdade, eu já havia criado o visual do personagem para o filme “Mabel's Strange Predicament”, dias antes do “Kid Auto Races at Venice”, mas ele foi lançado depois.

-O Vagabundo é um andarilho sem dinheiro que possui os gestos dignos e refinados de um cavalheiro. Ele se veste com um paletó apertado, calças largas, calça sapatos enormes, usa chapéu de coco, carrega uma bengala de bambu e tem um pequeno bigode de broxa. De onde veio a inspiração?

-Você não se reportou aos anos duros da minha vida?... Não seria a fortuna que eu ganhava nos Estados Unidos que o apagariam da minha alma.

-Nos primeiros filmes, o Vagabundo atacava agressivamente seus inimigos com chutes e tijolos, o público adorou o personagem, mas a crítica alertou que as travessuras do personagem beiravam à vulgaridade.

-Sim, mas quando eu passei a dirigir e a editar meus próprios filmes, o meu personagem melhorou.

-Quanto a isso, não há a menor dúvida, Carlitos.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

2037 - mundo cão infantil

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3867 20 de outubro de 2011

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MEUS PROFESSORES INESQUECÍVEIS

PARTE II

Pretendia reatar a narrativa sobre os meus professores inesquecíveis daqui a dois meses, quando chega o tempo das compras de fim de ano, mas os comentários do Dieckmann sobre os meus primeiros mestres me levaram a esta antecipação.

Tirei 15 numa prova – como escrevi – e me rebaixaram para a turma mais fraca da Escola 9-10 Manuel Bomfim. Na leitura inspirada do meu amigo, ele descobriu o que passou despercebido por todos: quem tira 15 numa escola 9-10 é gênio, e, partindo, dessa premissa, concluiu que me colocaram na Turma 1 para elevar a média da mesma.

Depois de me animar com essa descoberta, Dieckmann destruiu uma ilusão da minha infância. Explico-me: eu me julgava um pequeno herói porque mostrei a professora Maria Teresa, que se debulhava em lágrimas porque só três alunos seus passaram para o segundo ano, que ela era, sim, competente porque fui aprovado com a nota 85; veio o Dieckmann e disse que tal nota era mérito meu e da minha mãe, que me alfabetizou com manchetes de jornal.

Aliás, eu não registrei um fato relevante: quando entrei na escola, eu segurava o lápis como um agressor segura um punhal antes de cravá-lo em alguém. Só mais tarde, fiz, com o lápis na mão, o movimento de pinça com o polegar, que tanto desenvolveu a mente do ser humano. Aliás, já falamos, de passagem, num recente Biscoito Molhado, que o polegar opositor é o símbolo máximo da evolução.

Voltando à turma 1, de 1955, da professora Maria Teresa, ela merecia muito mais palavras do que as que dediquei a ela nas páginas sobre meus professores inesquecíveis.

A Turma 2 nos gozava, cantando em uníssono nas filas do pátio do colégio:

-Turma 1.

E nós respondíamos:

-Turma 2, feijão com arroz.

As minhas recordações estão vivas, nem preciso recorrer a pseudônimos para falar de alguns colegas. Carlos, por exemplo, era um lourinho que vivia com o nariz escorrendo.

-Passa a minha frente. - pedia educadamente quando todas as turmas se formavam, antes do início das aulas, de acordo com a altura, os menores na frente.

O meu xará se sentia complexado em ser o baixinho da Turma 1.

Vanderley, um crioulinho, era também mais baixo do que eu, mas não me dava satisfações: punha-se na fila como se fosse mais alto. Pertencer à Turma 1 e ainda ser o mais baixote era dupla humilhação. O maior de nós em tamanho era o Amaury. Tinha o mesmo nome do meu pai, que recebeu esta identidade do meu avô devido a um personagem de Alexandre Dumas, que dava título ao romance, mas o Amaury da Turma 1...

Todas as vezes que a Professora Maria Tereza saía de sala, Amaury colocava o Vanderley e o Carlos para brigarem. Os dois eram autênticos galos de briga, atracavam-se e, assim, iam rolando pelo chão. Por pouco não caíram, uma vez, sobre a cesta de lixo. A professora nunca chegava e o Amaury não tinha a menor preocupação de ficar na porta para avisar os lutadores da sua chegada. Carlos vencia sempre a briga, mas por pequena vantagem.

Apesar de desordeiro, não me recordo de o Amaury sofrer reprimendas, a não ser a vez em que foi expulso da sala de aula pela professora. Ele saiu da escola e, da rua, atirou duas pedras que atravessaram a janela aberta e se esfarelaram na parede, perto de nós.

Quando eu passei para o quarto ano primário, Amaury saiu, finalmente do primeiro ano. Quanto ao Carlos e ao Vanderley, não soube mais deles, talvez os seus pais tivessem ido morar num lugar longe da escola de Del Castilho.

Terminei o curso primário e a admissão, mudei-me da Rua Cachambi para a São Gabriel, na altura da Rua Americana e fiquei um tempo sem avistar o criador de rixas da Turma 1. Vi-o, numa pelada no campo do Cruzeiro, de Del Castilho, quando eu tinha uns 15 anos de idade. Estávamos todos correndo atrás de uma bola. Não era, contudo, um momento de descontração, pois se defrontavam peladeiros de lugares diferentes.

Em dado momento, Amaury disputou uma bola que saiu pela lateral. Gritou que o arremesso da lateral era do seu time, mas um dos jogadores adversários bateu a lateral para o Paulinho Vovô que, com a bola nos pés, partiu em direção do gol. Coitado do Paulinho Vovô!... Amaury foi em desabalada carreira atrás dele e, quando ficou a um passo do seu alvo, desferiu, com suas pernas largas, uma rasteira no meu colega da Rua Americana, que este mergulhou de cara na grama. Sem pestanejar, Amaury pegou a bola, rumou com ela para a margem do campo e bateu o lateral a favor do seu time.

Ele era irmão do Mardone, que já ganhava fama em Del Castilho como ladrão de cavalos. Amaury – cochichava-se – seguia a trilha do irmão, por isso, já era temido. Paulinho Vovô se levantou, cuspiu a grama que entrara pela sua boca, espanou com as mãos a terra que grudara no seu corpo e nem pediu falta ao juiz que, diga-se de passagem, não existia. Bola pra frente! Paulinho Vovô retornou ao jogo como se nada tivesse acontecido.

Mais anos se passaram sem eu avistar o desordeiro da Turma 1, isso porque eu pisava poucas vezes o chão de Del Castilho. Não me recordo se ainda morava na Rua Chaves Pinheiro, ou se já vivia na Avenida Suburbana, quando soube que o Ratão matou o aluno mais indisciplinado da Turma 1.

-Ratão matou o Mardone, o Amaury, acabou com a família. - informou-me o meu irmão mais novo.

Ratão: dediquei, até hoje, poucas linhas a esse famoso bandido de Del Castilho. Irmão do Dudu, que era o “Poderoso Chefão” do bairro, usava o revólver em vez do cérebro, por isso, não durou muito, embora tenha deixado muitas vítimas pelo caminho. O seu assassinato por um bando rival provocou um duelo que envolveu Dudu e seus capangas, que tratei nas folhas do Biscoito Molhado como o “Duelo de O.K. Curral de Del Castilho”.

Volto aqui aos primeiros parágrafos destas recordações. Provavelmente, os alunos que couberam a Professora Maria Teresa, em 1955, não eram tão problemáticos como o Amaury, mas não eram fáceis de se lidar e mais ainda de se ensinar. Sigo acreditando que ela, ao chorar, porque só conseguira aprovar três alunos da sua classe exagerou na cobrança a si própria, e a minha nota a consolou um pouco.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

2036 - traíras, sujeito e objeto

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3866 Data: 18 de outubro de 2011

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SABADOIDO DO DIA DO PROFESSOR

PARTE II

Com o tumulto provocado com o transporte de sacolas de mercadorias de supermercado trazidas pela Gina, o Luca me entregou as cartas da Rosa Grieco. Aproveitei para passar rapidamente a vista por uma delas. A Rosa se referia ao Sabadoido em que me deparei com o folclórico Zé Peri:

“Egrégio pai-solteiro do Cláudio casado: não se abespinhe com o Peri, já fui abordada por um amigo da minha irmã Gioconda, o desmunhecado (confirmou a suspeita) perguntou quem é a mais velha, lembre-se de que sou 14 anos mais jovem. Pau nele! Já outro, professor de escola reles e rasteira, indagou se era eu mãe de um ex-aluno, mãe solteira deve ter sido a dele.”

E a leitura da continuação da carta ficou para depois, porque o quorum se restabeleceu e a sessão do Sabadoido foi reaberta, agora com a presença da minha cunhada. Ela falava dos velhinhos que conheceu em casas de repouso, na época em que sua tia as frequentou.

-Conheci uma senhora de 108 anos, nessas visitas. Ela tinha uns olhos claros...

Como a vibração da voz da Gina se modificou no momento em se referiu aos olhos da macróbia, todos os presentes entenderam que eles eram especiais.

-Ela fazia muito tricô e as peças em que trabalhava eram bem jeitosas. Que cabeça ótima a dela!...

Os diferentes estímulos dados nas mãos induzem a uma intensa atividade do cérebro, o que permite o acelerado desenvolvimento do mesmo. O movimento de pinça com o polegar, qualidade que apenas o ser humano possui, qualifica-o a manejar ferramentas, a tricotar, e desenvolveu espetacularmente o cérebro. O cineasta Stanley Kubrick resumiu isto muito bem no maior corte, em termos temporais, da história do cinema, quando, no filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, o osso atirado para cima por um primata muda para uma nave especial.

-Um dia, ela escorregou, bateu com a cabeça e morreu. Uma pena, pois apesar da idade, ela estava ótima. - lamentou minha cunhada.

Cláudio lembrou, então, pessoas do nosso convívio que não sobreviveram a quedas. Enveredei pelas celebridades e, assim, o nome do jurista Evandro Lins e Silva foi lembrado.

-A morte dele foi muito esquisita.

-Luca concordou com meu irmão, que foi em frente.

-Ele estava bem, veio de Brasília e, de repente, leva um tombo e morre...

Com os meus botões, reportei-me à Alba, correspondente do Biscoito Molhado em Porto Alegre que, acompanhando o marido na posse do Raymundo Faoro, queixou-se do discurso arrastado e repetitivo do Evandro Lins e Silva. Falando em Alba, pareceu-me vislumbrar, numa das cartas da Rosa, menção ao casamento da Duquesa de Alba, por isso, estendi a mão até o livro que o Luca trazia com uns papéis entre as suas páginas.

-Depois, eu lhe mostro, Carlinhos.

O assunto futebol esquentou o ambiente, embora todos fossem tricolores, com uma exceção, a minha, que suscita suspeita.

-O Cláudio não gosta do Deco, mas eu acho que o Fluminense joga muito com ele em campo.

-O problema é que ele vive machucado. - alterou-se meu irmão.

-As jogadas dele são de craques. - reconheceu o Luca.

-O Fred, que o Cláudio disse que passou a ser um mero pivô, fez três gols num jogo. - voltou a Gina a espicaçar o marido.

-Ele aparece e some do jogo. - não dava ele o braço a torcer.

-Daniel, como o Fred comemorou o gol de bicicleta dele?...- pedi a imitação para desanuviar o clima.

-Mais preocupado em imitar o sorriso vitorioso do goleador, Daniel se pôs a dançar, como ele, com uma parceira imaginária.

-No jogo São Paulo e Flamengo, o Dagoberto faz um golaço, tira a camisa na comemoração, o que lhe custou um cartão amarelo e, em seguida, agride o Tiago Neves do Flamengo com um pontapé. Lembrei-me, na hora em que assisti a isso, do Luca, quando afirma que jogador de futebol tem Q.I. de ameba. - tagarelei.

-Quando ele chutou o Tiago Neves, merecia um prêmio. - interveio a Gina, que não admite que um jogador saia/traia o Fluminense.

-Não há clube que possa garantir, hoje, que será campeão brasileiro. - referiu-se meu irmão à indefinição da disputa pelo título.

Com a ida dele para a cozinha, onde pegaria dois copos de bebida, e as retiradas temporárias da Gina e do Daniel, houve uma espécie de recreio.

-Leia este artigo e as observações da Rosa. - disse-me o Luca, entregando-me um recorte de jornal.

Li que o articulista atribuía ao apóstolo Thiago a frase “Ver para crer”, enquanto eu me reportava, silente, ao ateu Émile Zola, em Lourdes, que ao ver milagres disse que via, mas não acreditava.

-Rosa corrigiu. Ela é danada. - disse o Luca, enquanto me passava outro recorte de jornal.

Nele, Pasquale Cipro Neto se detinha na informática e suas armadilhas, escrevendo na epígrafe:

“Quando essa gente a quem pensar dói interfere na nossa vida... Aula de lógica neles! Que tal aprender a prever?”

Rosa Grieco registrou e escreveu ao lado:

-Ô Pasquale, tá invocado?...”

Outro recorte era uma pintura de Coubert, o criador do realismo social na pintura, precisamente “L´enterrement à Ornans”. Rosa escreveu à margem:

-”Grande pintor e caprichava nas mulheres.”

Lembrei-me que caminho todos os dias, praticamente, na Rua Coubert. Entro na Rua Rouault, dobro na Coubert, paralela a Almeida Junior, depois na Degas e, em seguida, na Cézanne, para desespero da Rosa Grieco, que não admite tão excelsos pintores em Del Castilho.

Subitamente, o Luca quebrou o momento remansoso.

-Carlinhos, tenho uma reclamação a fazer: eu nunca disse que o Machado é pernambucano.

Referia-se aos meus diálogos com os taxistas da Cooperativa Metrô Táxi.

-Eu lhe disse que ele é paraibano de Guarabira.

Xinguei imediatamente a minha memória: Joaquim Silvério dos Reis!

-É verdade, Luca; troquei tudo e pela segunda vez.

-Não leve isso a sério. - contemporizou.

Cláudio colocou mais bebida nos copos, enquanto o Vagner acarinhava a gravação em DVD do Eric Clapton, que o Daniel lhe dera.

-Na última crônica do Caetano Veloso, ele reconheceu as suas deficiências em música.

-Carlinhos, ele, falando em deficiência, mostrou que conhece muito; isso é próprio do Caetano.

-Sim, Luca, mas ele necessita de alguém que escreva música para as composições dele irem adiante. O Guinga tocou violão com a Petrobras Sinfônica e revelou que tocava e parava de acordo com as sinalizações do maestro, porque se diz analfabeto para ler partituras. Ele é, na verdade, um músico intuitivo.

-O Chico foi ligado a Tom Jobim, Francis Hime, Edu Lobo, o Caetano Veloso, não. Ele tem mais méritos até que o Chico, nesse ponto. - reconheceu o Luca.

-Mas ele teve grandes arranjadores.

Meu irmão interveio no diálogo entre mim e o Luca, e citou o Rogério Duprat, como arranjador.

-Foi ele que colocou as buzinas na “Construção”, quando o operário caiu na contramão atrapalhando o trânsito.

-As buzinas foram usadas por George Gershwin em “Um americano em Paris”. - avisei.

-Foi plágio? - brincou o Luca.

-Não, quem quiser usar a buzina numa música, que use.

Os ponteiros do relógio assustaram alguns participantes do Sabadoido e, por isso, a sessão foi encerrada.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

2035 - publique-se a lenda

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3865 Data: 17 de outubro de 2011

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O SABADOIDO DO DIA DO PROFESSOR

Quando cheguei à sessão do Sabadoido, o assunto era história.

-O grito do Ipiranga não existiu.

-Ensinam na escola, mas não existiu. - concordou o Daniel com o Luca.

-E não havia cavalos... Eles não aguentariam galopar por tanto tempo, morreriam no caminho. Dom Pedro, com os que o acompanhavam, no riacho do Ipiranga, estava montado numa mula. - prosseguiu o Luca.

-Muitas coisas eles não dizem na escola. - interveio o Daniel.

-Pedro Américo propagou o “Grito do Ipiranga” através de uma pintura que é quase um plágio de um quadro sobre uma vitória de Napoleão. - intrometi-me.

-Isso mesmo; eu li o “1822”, e é dito isto, praticamente. - falou o Luca.

-Eu não li o Laurentino...

-Laurentino Gomes. - acrescentou meu irmão ao notar que a minha memória rateava.

-Mas acompanhei duas entrevistas dele na televisão. Laurentino Gomes é jornalista, não é historiador. Fez muitas pesquisas na Torre do Tombo, em Lisboa...

-Pesquisou muito nos livros do pai do Chico Buarque.- interrompeu-me o Luca.

-Dele, eu pretendia ler primeiramente o “1808”. - declarou meu irmão.

Luca continuou:

-Dom Pedro tomou gosto pelo Brasil, não andava com toda aquela vestimenta europeia, era asseado...

-Dom João VI, porque teve de tomar banho devido a um furúnculo, um local do Caju ficou conhecido como “Casa de Banho”.- disse, ao lembrar-me dos terminais portuários das proximidades, que visito a serviço.

-Dona Amélia, a segunda esposa de Dom Pedro I, o afastou dos amigos estroinas. Dona Leopoldina tinha morrido com 30 anos. - retomou a palavra o Luca.

-Dona Leopoldina era uma Habsburgo, irmã da Maria Luiza, que Napoleão Bonaparte tomou como esposa porque queria um herdeiro.

-Eu tinha feito confusão com Maria Antonieta nessa história. - penitenciou-se o Cláudio.

-Maria Antonieta era também uma Habsburgo, tia da Princesa Leopoldina e da Imperatriz Maria Luiza.

Depois de dizer isto, voltei-me para o Luca.

-O Laurentino Gomes escreve que Dom Pedro I desferiu um pontapé na Princesa Leopoldina, grávida?

-Ele fala que ela gostava muito dele, que os amores do Imperador com a Domitila trouxe muitos dissabores.

-A Princesa Leopoldina era extremamente inteligente, ele mantinha uma conversação de alto nível com José Bonifácio,

-Napoleão, atacando Portugal, apressou a independência do Brasil.- aparteou-me meu irmão.

-Sim, Claudiomiro, de cada dez brasileiros apenas um sabia ler. - disse o Luca.

-Enquanto a corte fugia para o Brasil, José Bonifácio ficou em Portugal, na luta contra os invasores. - insisti com o Patriarca do Brasil.

-José Bonifácio era um dos grandes intelectuais da época, amigo de Humboldt.

-Sim, Carlinhos. - meneou o Luca a cabeça.

-Ele foi um visionário que pugnava por uma capital no planalto central com o nome de Brasília. Nada, porém, parecido com o descalabro do Juscelino...

-Meu irmão me atropelou para desancar ainda mais o Presidente Juscelino Kubitscheck; em seguida, afirmou que os mísseis chegam nas capitais localizadas no interior.

-Eu sei, Claudiomiro, mas não se pode negar a visão do José Bonifácio.- contemporizou o Luca.

Lembrei-me que o autor do “1822” se referiu ao Patriarca da Independência como um homem feliz, que usava rabo de cavalo e dançava o lundu sobre as mesas, enquanto o Daniel se retirava para o interior da casa.

-Dom Pedro I gostava imensamente de música. - retornou o Luca ao primeiro imperador do Brasil sob o olhar atento do Vagner.

-Beethoven não compôs alguma coisa sobre o Brasil?...- titubeou.

-Luca, que eu saiba, não. Ele dedicou uma sinfonia a Napoleão, depois retirou a dedicatória...

-A Heroica não é de Beethoven?

-Sim- entusiasmei-me – foi essa sinfonia que ele dedicou a Napoleão e riscou a dedicatória quando Napoleão se tornou imperador.

-É isso mesmo! Era dela que eu queria me lembrar.

Só mais tarde, lendo uma das missivas da Rosa Grieco, que trata dessa composição, entendi a vibração do Luca.

-Vocês sabiam que Napoleão não era francês?- perguntou.

-Ele nasceu na Córsega, que era meio italiana.

-Isso mesmo. - confirmou.

-Hitler não era alemão, era austríaco; e Stalin não era russo.

-De onde era Stalin?- perguntou-me meu sobrinho, que retornava.

-Ele nasceu na Geórgia.

-Carmem Miranda não era brasileira, era portuguesa.

-Carlos Gardel não era argentino... - entrei no jogo do Luca.

-Poxa, daqui pouco vão dizer que Deus não é brasileiro! - pilheriou o Cláudio.

Daniel e Luca passaram a falar sobre o pingue-pongue virtual que os dois praticam, enquanto o Vagner ria com os gestos histriônicos do meu sobrinho. Eu e Cláudio conversamos, paralelamente, sobre o programa de música ligeira do Sérvio Túlio na rádio MEC.

-Ontem, levou “O Homem de La Mancha”, com Placido Domingo no papel de Dom Quixote, Cláudio.

-Aqui, no Brasil, entrou em cartaz com o Paulo Autran e a Bibi Ferreira.

-Eu sei, Cláudio.

-O Chico Buarque escreveu a letra “O Sonho Impossível”. - acrescentou.

-Eu estava endiabrado! - sacudiu-se o Daniel.

-Dois filhos do Placido Domingo cantam também, nessa versão.

-A máquina não viu a bolinha comigo. - continuou o Daniel.

-Pena que eu dormi logo, Cláudio.

-Daniel, a máquina está programada para perder ou para ganhar, dependendo... - contemporizou o Luca.

-Às vezes, eu fico no sufoco. - admitiu meu sobrinho.

-A abertura d' “O homem de La Mancha” é muito bonita. - afirmou o Cláudio.

-Eu escutei a “Ouverture”, “I, Don Quixote”, “Food, Wine, Aldonza”, “Sweet Lady”, “Dulcinea”, e dormi.

-Mas quando estou endiabrado, não perco. - frisou meu sobrinho.

-E como o Fred comemora os gols que faz?- voltei-me para ele.

E o Daniel dançou como o atacante do Fluminense.

-É isso aí, Daniel. - aprovou o Vagner.

Com um ouvido de morcego, Cláudio ouviu a chegada da Gina das compras.

-Tenho de pegar as sacolas do supermercado. - informou.

-A Gina está chegando?- indagou o Vagner.

-Está.

E voltando-se para o filho, pediu que ele ajudasse também no transporte das sacolas.

-É pra já.

-Eu também ajudo. - prontificou-se o Luca.

-Não é preciso. - decidiu o Cláudio.

Em poucos minutos, as compras eram carregadas para dentro de casa e a Gina aparecia saudando a todos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

2034 - masculino, feminino, predicado e sujeito

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3864 Data: 17 de outubro de 2011

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MEUS PROFESSORES INESQUECÍVEIS

Com o Dia do Professor, no dia 15 deste mês, apareceram em alguns jornais e rádios cidadãos aludindo ao seu professor inesquecível; eu tive vários e tentarei falar deles, em ordem cronológica.

Considerarei inesquecível até professores cujos nomes se apagaram da minha memória (são poucos), mas, que pelos seus atos e palavras serão lembrados sob pseudônimo.

Maria Teresa era a professora da Turma 1, a pior da Escola 9-10 Manuel Bomfim, em 1955. Comecei na Turma 3, mas como a minha nota foi 15, na primeira prova, e 17, na segunda, rebaixaram-me para a Turma 1. (*)

Minha mãe me colocou, então, diante dos jornais que meu pai trazia do serviço e me ensinou a ler as manchetes. Depois, ela mesma repetia os ditados do trabalho de casa da professora e me recomendava não ajudar ninguém que não soubesse. Dito e feito, pediram-me cola e eu disse um rotundo não. Tornei-me um aluno exemplar e a minha nota final foi a melhor da turma, 85.

Coitada da professora Maria Teresa!... Ela chorou de soluçar, segundo a minha mãe, porque apenas três alunos seus passaram de ano. Ficou-me o orgulho de provar, com a minha nota, que a culpa do mau desempenho daquele grupo não era dela. (**)

Com o meu primeiro lugar, adquiri o direito de estudar, no horário da manhã, numa das melhores turmas do segundo ano. Surge, então, um problema que se reflete em mim: uma professora, que tinha um filho no São Bento, precisava de uma vaga para ele de manhã, no Manuel Bomfim, para cuidar do seu rebento. Minha mãe, por motivos pessoais, me queria na escola de tarde, aceitou a troca; voltei para o horário vespertino e a participar de uma turma mais fraca. Senti uma forte frustração, que eu não soube expressá-la em palavras nos meus oito anos de idade. O fato é que minha eficácia escolar caiu acentuadamente e eu só passava raspando. Alie-se a isso o fato de eu sofrer com a falta de professoras, sendo remanejado muitas vezes para outras turmas, embora houvesse a opção de retorno à casa.

Faltei até prova, como uma, em 1958, para ouvir um jogo do Brasil, na Copa do Mundo, o que demonstra que eu já não era o mesmo estudioso da Turma 1. Tive um alento pelos livros escolares na Admissão, quando a professora era a Dona Dulce Silveira Consuelo Lopes, filha da dona do Colégio Piratininga, da Rua Hermínia. Ela possuía os gens da didática, contudo, diante de um programa escolar fraco, de alunos impregnados de falhas no ensino nos anos anteriores, não conseguia fazer milagres.

Passei com uma nota razoável, 64 e parti para fazer a prova de 1960 do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Sujeito, predicado, aumentativo de incêndio, eu nunca vira isso no tempo em que cursei a Escola 9-10 Manuel Bomfim. Reclamam da truculência dos militares, mas eles tiveram a gentileza de só declararem as notas daqueles que obtiveram êxito no concurso. (***)

Para ser melhor preparado, fui estudar com o Professor Alcir. Tratava-se de um mestre em Matemática do Pedro II, que era assessorado pela Olinda, uma normalista da Escola Carmela Dutra. Ela, na verdade, ficava encarregada de ensinar história, geografia e, principalmente, português. A crítica que me ocorre foi a pouca atenção ao ensino de geografia e de história (o professor ensinou que D. Pedro II reinou durante 50 anos sobre o Brasil, mas corrigiu, a tempo, para 49).

Dos colégios públicos de nome, na época, a abrir concurso, o Colégio Estadual Visconde de Cairu foi o primeiro. Amadurecido, parti para os exames. Só a prova de português, a primeira, eliminava, mas a minha nota 7,5 foi boa. Tirei 5 em matemática, o que se constituiu num feito e tanto, haja vista o número assustador de zero. Não obtive desempenho bom em geografia e história, mas a minha atenuante foi a pouca atenção dada pelos meus professores à matéria, como já registrei.

O meu êxito inicial satisfez à minha mãe e, assim, não tentei pela segunda vez o Colégio Militar. Talvez a minha mãe fosse avisada por um arcanjo que eu poderia ser coleguinha do Dieckmann, do Fischberg, do Sérgio Nei, do Reinaldo do Jipe, do Bráulio Goffman, do Nei Abóbora, do Grande Manitou, que o Dieckmann chama de Mahatma (4*), etc, etc.

No Visconde de Cairu, todos os meus professores de Educação Física foram inesquecíveis: Jobim, Adir, Admildo Chirol. Entrávamos em formação, marchávamos, descansávamos, sempre como soldados. Adquiri gosto pela atividade física e nunca a perdi, mesmo nos anos em que a ginástica não era moda.

No primeiro ano ginasial, tive um professor de Moral e Cívica, que chamarei de Cícero (esqueci-me do seu nome), que usava perna mecânica. A mesma descrevia meio círculo a cada degrau da escada que ele subia ou descia, e os alunos apressados, como eu, tinham que se conter para não o atropelar.

Ele nunca iniciava uma aula sem contar seus feitos heroicos. Certa vez – contou ele – enfrentou os playboys da Turma do Imperator, brandindo a sua bengala.

No segundo ano ginasial, fui aluno de matemática do Henrique, um tabagista compulsivo. Certa vez, dei-lhe um dos meus cigarros da marca Continental e recebi o apelido de “Maconha” dos colegas invejosos. Com ele, aprofundei-me mais no estudo da álgebra. No terceiro ano, quando fui aluno do Charada – o professor das provas de três questões de álgebra e geometria que colocava dois terços das meninas para chorar (5*) – as minhas notas ficavam entre 5,5 e 6,5, o que significava primeiro ou segundo lugar.

Há o caso do Humberto (esqueci-me do seu nome de pia batismal), professor de Geografia no 2º ano ginasial. Ele permitia que se abrisse o livro, o atlas e o caderno durante as provas, pois afirmava que o importante era o uso do raciocínio. Não sei o que houve comigo, pois eu não me adaptava ao seu método de ensino e, por consequência, o meu desempenho era fraco. Perdi a confiança em mim e fiquei bloqueado a ponto de trocar, numa prova, a ordem crescente pela decrescente.

Um dia, o professor me pediu, no meio de uma aula, que dissesse todas as matérias que eu estudava (umas nove) com as minhas respectivas notas. Quando terminei, ele disse:

-Mas só na minha matéria você se sai mal?!...

Houve, então, duas provas mensais de geografia que foram pura memorização, sem consultas, é claro, a livros e cadernos. Não deixei a oportunidade passar e obtive média para passar de ano com tranquilidade.

Dona Cacilda era professora de francês, morava em Niterói e nunca faltava a uma aula. Quando ocorreu uma greve das barcas, houve aluno do Visconde de Cairu que apostou na presença dela na escola:

-Ela atravessará a baía a nado para não faltar.

Nos anos que antecederam a queda do governo João Goulart, o martírio da Dona Cacilda foi terrível, pois as greves nos transportes em todo o Brasil eram uma constante.

Também fui aluno de francês do Pierre Vincent (vai esse nome, Pierre Vançã, professor da minha cunhada, que também foi do Visconde de Cairu, três anos depois de mim). O Pierre Vincent não se conformava com o fato de exército, em francês, ser uma palavra feminina: l' armée. Era o cúmulo, para ele, pois a França, com seu formidável exército, foi dirigida por Napoleão Bonaparte.

Será que Pierre Vincent sabia que vagina, na língua de Voltaire, é uma palavra masculina: le vagina?

No 4º ano, tive um excelente professor de português, que chegou a ser diretor do CEFET, José Vinícius Frias Ruas. A deficiência daquele que, talvez, foi o mais destacado colégio estadual, era o ensino de português. O diretor Enéias, que seria afastado pelo governador Carlos Lacerda por improbidade, escrevia livros sobre a matéria e os impingia aos alunos. O José Vinícius bem que tentou desfazer a grande lacuna que encontrou, mas só teve poucos meses para isso.

Bem, estudei, em seguida, com outros mestres inesquecíveis, como o Silva Jardim (sobrinho do republicano que caiu no Vesúvio), Carlos Haroldo Porto Carreiro, Silvando, Luís Rocha, Luís Fernando Pinto Furtado, Fiani, Zé Maria, Ruy Santacruz, Tia Carla e outros, mas fica para outra oportunidade.

(*) Na opinião do distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO, geralmente menosprezada, quem tira 17 na escola 9-10 é gênio. O redator deve ter sido transferido para melhorar o nível, desta certeza não nos afastamos um milímetro de insegurança.

(**) O Distribuidor vai distribuir asteriscos hoje porque já viu o próprio nome espalhado nesta edição. No seu entender, mais uma vez há um pensamento equivocado em relação à estimada professora. Ora, o fato de haver um CDF que estudava em casa e que se recuperou dos fracassos iniciais não garante a excelência da professora e sim do aluno. Ou dos 3 alunos.

(***) Acredita-se que o Redator foi reprovado, raspando, como era seu hábito. Uma revisão de prova poderia ter mudado o curso da História.

(4*) O Castro Neves adotou o Mahatma, sem consultar ninguém. O Bráulio corrigiu para Caghatma – por razões não esclarecidas, porém imagináveis. O Caghatma chama o Distribuidor de Odin e assim por diante.

(5*) Se a turma tinha 32 alunos e dois terços das meninas choravam 5 g de choro por dia, quantos lenços de cambraia quadriculada seriam necessários para enxugara face das mesmas alunas no funeral do Getúlio?