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domingo, 21 de junho de 2020

3109 - Tem Bububu no Bobobó (reedição)

O BISCOITO MOLHADO
Edição 2104                                           Data: 28 de junho de 2004       
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PARA ERRAR MENOS...


O gosto musical de Napoleão Bonaparte eram as marchas militares. Mesmo diante das ginásticas  virtuosísticas e das pirotecnias de Paganini com o violino, bocejava e sonhava com uma batalhazinha. Apesar do tédio, tinha, às vezes, de ir  à ópera, pois é aconselhável, politicamente, um chefe de Estado mostrar-se despreocupado diante do seu povo. Numa dessas idas à ópera, já se aborreceu com a mulher, que levara horas para ficar pronta.

- “A ópera que vamos assistir certamente foi composta num tempo mais curto do que o que você levou para se arrumar.” - disse à Josefina.

No caminho para o teatro, o imperador e a imperatriz, seguidos por um cortejo de carruagens interminável, sofrem um terrível atentado a bomba, que mata um punhado de gente. Fouché, o ministro da Segurança, como o chefe de polícia de Vichy, séculos depois, no filme “Casablanca”, emite logo a ordem de prisão dos suspeitos de sempre. Napoleão Bonaparte, no entanto, cismara que os cabeças do atentado foram os monarquistas da França com o apoio logístico dos ingleses, e não os jacobinos. O imperador ordena, então, o seqüestro do Duque de Elghien, que se encontrava abrigado no território de Baden, para ser julgado em corte sumária, e, em seguida, fuzilado. Ao tomar conhecimento da execução do nobre francês, Talleyrand proferiu uma frase sobre a decisão de Napoleão que se tornou célebre:

- “Mais do que um crime, foi um erro.”

Nós, do Biscoito Molhado, de modo algum consideramos o erro mais grave do que o crime; os erros são corrigidos, mesmos os grosseiros. Aliás, falamos na última edição dos erros inteiramente  palatáveis do Sérgio Brito no seu programa de quinta-feira, e vamos agora citar erros espalhados na televisão difíceis de engolir que, logicamente, não serão desse animador cultural.

 Um desses erros foi do locutor, do torcedor, do comentarista, do propagandista e do espaçoso Galvão Bueno, que cismou de informar que um piloto fora “penalizado” com dez segundos nos boxes, quando o referido piloto não sentiu pena de ninguém nem por um segundo e muito menos nos boxes, ele só foi punido.  Outro erro foi do Luciano do Vale que, ao transmitir dos estúdios da TV Bandeirantes um jogo de futebol realizado na Espanha, reclamou da TV espanhola que deu uma panorâmica nas proximidades do estádio: “Até morrotes eles mostram agora...” O comentarista interveio rapidamente: “...Luciano, são os Pireneus.” Sem sair do mundo dos esportes, chegamos ao Sílvio Luís, que sempre conversa mais do que transmite os jogos. Certa vez, falando sobre  o filme Malcolm X, perguntou ao seu repórter de campo se ele já assistira ao Malcolm 10. Ou estava ele de gozação e sabia muito bem que o X do sobrenome representava uma incógnita, porque o líder negro, que adotara a religião muçulmana, desconhecendo o seu sobrenome africano,  recusou-se a adotar um sobrenome cristão? Ficou a dúvida; nos outros dois casos não: foram erros, pachouchadas ou, para repetirmos o sinônimo preferido pelo Dieckmann, batatadas. Já que falamos do Sérgio Brito, vamos prosseguir com o Dieckmann, que também possui o viés de animador cultural.

Como já escrevemos, as reuniões das segundas-feiras, às  8h e 30min, do Dieckmann foram uma antecipação dos  Brainstorming dos nossos melhores professores do curso de Regulação Econômica. Como temos espaço no papel, vamos reproduzir algumas palavras sobre Brainstorming: “É a técnica para reuniões de grupo que objetiva ajudar os participantes a vencer as suas limitações em termos de criatividade e inovação.  Foi criada em 1963 por Osborn, adotada em Harvard, e pode  durar de minutos a horas, mas a regra são 30 minutos. Tem quatro regras básicas: nunca critique uma sugestão, encoraje as idéias bizarras, prefira a quantidade à qualidade, e não respeite a propriedade intelectual. O líder da sessão de Brainstorming deve manter um ambiente relaxante e propício à geração de novas idéias.”

Somos testemunhas que o Dieckmann, como líder dessas sessões, sempre procurou deixar o ambiente relaxado e preparado para as novas idéias, o diabo é que, em vez de novas idéias, muitos participantes só queriam novos cochilos. Era difícil fazer do DMM uma Harvard, principalmente às segundas-feiras de manhã cedo... Como os leitores do Biscoito Molhado já viram, a tomada de decisão, matéria fundamental não só na administração das empresas, foi posta em prática no teste dos perdidos na lua. Mas houve segundas-feiras não tão dinâmicas como esta da tomada de decisão no satélite da Terra, como aquelas em que o Dieckmann se pôs a ler um livro. Lia trechos, por exemplo, sobre o relacionamento dentro de uma equipe de trabalho para, em seguida, despertar alguém com uma pergunta.  

Ouvimos as leituras do Dieckmann numa reunião, mas na reunião seguinte, o Biscoito Molhado chegava às bancas comparando o nosso coordenador com o Caetano Veloso. Explico: o compositor, na época, exibia-se de terno e gravata num espetáculo intitulado “Livro”. Lia ele trechos do livro que acabara de escrever, “Vereda Tropical” e, em seguida, pegava o violão e entoava uma música. Esse espetáculo, diga-se de passagem, acabou certa vez em confusão porque um engraçadinho perturbou tanto o compositor com gritos “Tira a gravata, Caetano”, que o baiano soltou meia dúzias de palavrões e perdeu a voz. Nós do Biscoito Molhado, que ouvíamos as leituras do Dieckmann, apenas lhe perguntamos, nas nossas páginas, quando começaria a cantar como o Caetano Veloso. Antes que o Brainstorming do Dieckmann se transformasse em caraoquê, ele aposentou o livro.

Também se falou em cinema nessas reuniões, pois através de todas as artes podemos exercitar os neurônios e expandir o poder criativo. E, nessa ocasião, tomamos conhecimento de um endereço da internet que era um autêntico arquivo de filmes, o www.imdb.com.

Retornando ao Sérgio Brito e aos erros palatáveis, ele exibe, atualmente, nos seus programas  uma retrospectiva dos filmes do Hitchcock. Já passou da fase inglesa do cineasta, com a Dama Oculta, e chega agora à fase americana, com “Um corpo que cai”. E não é que nesse filme a Kim Novak aparece com uma echarpe que, de tão comprida, lembra a peça do vestuário que se enrodilhou na roda traseira de um Bugatti, matando a Isadora Duncan? 

Se o James Stewart, com toda aquela fobia de altura, em vez de tentar puxar a Kim Novak pela mão, tentasse puxá-la pela echarpe, talvez ele a salvasse da queda... Sim, sei que a idéia é bizarra, mas a boa técnica do Brainstorming ensina que as idéias bizarras devem ser incentivadas, pelo menos na sua germinação.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

3108 - D Chicão Tirano

O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5367 D                           Data: 03 de junho de 2020

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXVII

                     UMA ESPINGARDA NA MÃO 
                                
                            E NADA NA CABEÇA               


As famílias de Santa Teresa que eu conhecia eram lacerdistas. Ou, pelo menos, a minha, mistura de Dieckmann, Klinger e Rodrigues Gomes, e a do Chico, Figueiredo com Rios, eram. E nós dois decidimos fazer alguma coisa contra o recém eleito Negrão de Lima, em atos completamente à revelia dos desejos dessas famílias deprimidas com a derrota do candidato lacerdista. Tínhamos 14 anos e a firme ideia de espalhar o terror por Santa Teresa. 

Lembro de discutirmos uma atitude semelhante aos mau-mau do Quênia e aos tonton macoute do Haiti. Como essas identidades não eram corriqueiras em dois garotos, imagino que tenham advindo de algum estudo sociológico do pai do Chico, como exemplo de terrorismo atual da época. E como mau procedimento, o que não levamos em conta.

As primeiras vítimas foram os reservatórios de areia dos bondes. Colocávamos um morteiro de São João com um cigarro aceso atravessado no pavio, acomodando o petardo na areia que servia para dar tração ao bonde. Apenas uma vez seguimos a pé o bonde para ver no que dava. Uns trezentos metros depois, achamos ao longo de um trecho dos trilhos uma boa quantidade de areia; a nossa ideia funcionara.

Como éramos criativos, não repetimos essa manobra mais do que três ou quatro vezes. Deixamos de fazer o tedioso acompanhamento do sucesso e partimos para outras empreitadas, explosivas e inéditas. Um bom lugar é a coluna de recolhimento de lixo dos edifícios. Não só o estampido adquire uma sonoridade surda, entusiasmante, como é acompanhado pelo som da abertura das tampas de cada andar, em tempos diferentes. Testamos no meu prédio, mas ninguém ouviu porque a coluna era distante dos apartamentos. Mas, na Rua Triunfo, 63 obtivemos sucesso de público e de crítica - que éramos nós, os terroristas. Tampando o nariz do cheiro fedorento, colocamos uma cabeça de nego no depósito de lixo no térreo, com o cigarro em cima e fomos para a rua esperar.

Foi um senhor tiro, com o barulho surdo acompanhado de três aberturas das tampas e logo as janelas se iluminaram de rostos assustados, olhando para um lado e para o outro, lembrando uma cena de Mon Oncle, onde o pai e a mãe investigam, a partir de uma janela redonda para cada cabeça, parecendo duas pupilas à procura de um fato.

Já era tempo de nos localizarmos por alcunhas, caso fôssemos presos. O Chico virou Chicão Tirano e eu, qualquer coisa do gênero, que esqueci. Talvez fosse Demolidor.

Na varanda da casa das minhas tias nós, ficávamos de tocaia com duas espingardas de ar comprimido acertando as capotas dos carros que passavam na rua de baixo. A Ana Lúcia, irmã do Tirano, estava presente algumas vezes e, para dar graça, um dançava com a Ana, enquanto o outro ficava com as duas armas, em revezamento obrigatório, porque ninguém queria saber de dançar. Quando os disparos ocorriam, procurávamos escutar os dois tecos de Diabolô na capota, dois segundos depois e saboreávamos a boa mira.

Um dia custou a passar carro e Chicão alvejou um grupo na escadaria de Fátima. - Foi pedra! Apalpando a bunda, alguém gritou daquela escuridão fria, onde tudo se ouvia e eles recomeçaram a subir. Quando chegaram na rua, nós já estávamos na porta conversando e inventamos uma correria de crianças... vai ver foram eles... como a Ana estava junto e emprestava um ar solene ao trio, acho que aceitaram e foram embora. Voltamos a respirar logo que dobraram a curva. Como eles voltaram ao mesmo lugar, Chicão ainda queria dar um segundo teco, mas o bom senso prevaleceu.

Um bom senso que não atraiu o Roberto Guerra, meu colega de colégio que não tinha arma e morria de vontade de estar conosco. Aceitamos. A gente saía de calça lee e camisa de goleiro, às vezes com um casaco por cima. Na cintura, três ou quatro morteiros como se fossem os nossos colts. Na primeira noite do Guerra, passamos em frente à casa do Borghoff e a Chiquita estava lá, com um pneu furado. Fui ajudar, com o Chicão de ajudante do ajudante e trocamos a roda. No meio do trabalho, escutamos o triplo estampido de um morteiro. Do Guerra, que estava à toa e indócil. 

Mal o carro saiu, apareceram uns quatro caras da pequena comunidade na rua: - Foram vocês? Sorte que eu e o Chico não tínhamos soltado nada e negamos com a honestidade beatificada de origem pneumática. Um bonde passou por nós e só vimos o Guerra pegá-lo andando, já longe, para nunca mais voltar.

Sentamos no meio-fio, agradecendo a boa fé dos nossos vizinhos - uma revista na nossa roupa não teria escapatória, seria condenatória e executatória - e filosofamos sobre a exclusividade do nosso clube. Um por dois e dois por um, no máximo.

O novo governo do estado decidiu abrir uma agência do BEG - Banco do Estado da Guanabara no ponto mais central do bairro. Era uma boa iniciativa, mas que durou pouco, talvez menos de um ano, certamente por falta de movimento. Essa agência ocuparia o imóvel de um antigo armazém, a Casa Mauá e houve uma obra volumosa para a transformação. Virou objetivo imediato de Chicão Tirano e Demolidor.

Era cercada por altos tapumes de madeira e os operários dormiam na obra. Vimos pela frestas que ocupavam um grande espaço e decidimos atacar os operários. Compramos um super morteiro, chamado Canhão; ele continha doze explosivos e era bem mais parrudo que o morteiro comum. Com alguma procura, encontramos um nó de madeira meio solto, que abrimos com uma chave de fenda. A visão pelo buraco era perfeita, a turma sentada no chão se preparando para dormir; o armamento foi introduzido raspando e ficou firme. Desta vez não teve cigarro, riscamos direto o pavio e caímos fora. Ainda deu para ouvir aquele suceder de estampidos enquanto subíamos o zigue-zague da Rua Triunfo (a mesma já abordada...). Nem vimos qualquer clarão, nossa imaginação foi suficiente.

A essa altura, manuseávamos os explosivos com desenvoltura e iniciamos a produção de artefatos mais poderosos. O objetivo de todo mestre-explodidor é chegar no canudo do rolo de papel higiênico, o que consumia mais de meia dúzia de cabeças de nego - uma fortuna em mesadas reunidas. Nasceu um dia a nossa mãe de todas as bombas.

Escolhemos na Joaquim Murtinho um trecho ermo e equidistante dos prédios. Nós medimos em passos, dividimos ao meio e cavamos um buraco no terreno, onde hoje tem uma pousada, tudo cientificamente. Enterramos o rolo, deixando um longo pavio de fora. Esperamos o bonde passar, nenhuma testemunha à vista, acendemos o cigarro e voltamos para a rua.

E toca a esperar. Uma senhora sai pela pontezinha do prédio e dobra na rua, em direção à "mãe". Aquilo nos deu um arrepio de pavor, pois certamente seria desastroso, mas ela passou pelo ponto, andando devagarinho. E nós contando cada um dos passos, torcendo por mais um, mais dois...

Quando ela chegou no prédio vizinho, um Gordini apareceu na curva da rua. Foi o tempo da senhora ainda atravessar um corredor cheio de janelas, entrar na casa e a bomba explodiu. A vibração foi de balançar a roupa e o Gordini estava exatamente no alcance da bomba, que jogou uma quantidade de terra em cima do carro. O dono parou na hora e ficou olhando de onde saíra aquilo. Deve ter achado que era alguma caixa de eletricidade, ou de gás, tirou a terra do vidro e prosseguiu.

Petrificados, em tempo decidimos abandonar os explosivos e só ficou a história para contar. 

Jackson de Figueiredo é o avô do Chico e vai saborear prazerosamente toda essa criatividade, bem herdada. Se ele tinha curiosidade sobre seu neto, agora eles terão tempo para tudo e, quem sabe, até para pegar no pé de um São Pedro desavisado.