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quarta-feira, 27 de março de 2013

2347 - o Conde (2)


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4147                                       Data: 10 de  Março de 2013
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83ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE

-A morte de Ermelino foi a grande tragédia da minha vida.- comoveu-se Francesco Matarazzo, apesar da tentativa de represar a carga emotiva, própria dos italianos do sul.
-Essa morte o fez sair de novo da Itália para voltar ao Brasil.
-Não; eu já retornara antes, em 1919, para retomar a direção dos negócios. Depois de muito trabalhar, chegou a hora do Ermelino sair de férias,  e ele foi para Nova York, Londres e Paris. Era evidente que a Itália tinha de estar no seu roteiro; então, ele resolveu ir de carro de Turim até o Mont Cents, na França, ao norte de Besançon, com o irmão mais velho, Giuseppe e alguns amigos.
-Li na biografia escrita pelo Ronaldo Costa Couta que era janeiro de 1920, que a estrada estava escorregadia com a neve, mas era ampla, de uns quinze metros de largura. O carro tinha o volante no lado direito, com dois lugares na frente, dois  no meio e dois atrás.  A tragédia aconteceu n cidadezinha de Bruzolo, em Piemont, quando o motorista se atrapalhou com um ciclista que vinha em sentido contrário, o carro ficou desgovernado, subiu um barranco...
-E virou justamente no lugar onde estava o Ermelino. - emocionou-se  às lágrimas.
-Você foi a Turim, cuidou de tudo, mandou que embalsamasse o corpo do filho, que foi trasladado para São Paulo.
-Fechei o quarto do meu filho, como estava e nunca mais o abri.
-Assis Chateaubriand, com 28 anos de idade, então redator-chefe do Jornal do Brasil, redigiu um necrológio que emocionou toda a sua família.
-Eu quis me encontrar com ele; e disse-lhe, então: Doutor Assis, o senhor foi muito generoso com meu finado filho; desculpe a intimidade, mas esta é uma superstição da Itália, onde nasci: esfregue as pontas do dedo aqui no meu paletó, que é para eu passar-lhe um pouco da minha sorte.
-E como passou a sua sorte, ele se tornou o megaempresário da imprensa.
-Eu não imaginava que ele me causaria tantos aborrecimentos.
-A intenção dele era que você utilizasse  os seus jornais  para fazer propaganda dos produtos que comercializava.
-Se eu vendia tudo o que produzia para quê reclames em jornal e revistas?... Num dia de 1934, ele veio se avistar comigo e  lhe mostrei os perus, veados, jumentos e búfalos que eu possuía, ele não viu uma chaminé, andou apenas pela minha granja.
-Assis Chateaubriand reclamou muito, disse que  teve de andar três horas sob um sol de estalar mamona, sem que você parasse de falar de assuntos agro-pecuários.
-Era para ele saber que, mesmo octogenário, eu estava sólido como uma rocha.
-E o seu entusiasmo por Mussolini?
-Senti na própria carne a pobreza da Itália, vi um povo humilhado. Surge, então, um líder que revigora o país, que resgata até o orgulho que remontava ao império romano, era compreensível que eu me entusiasmasse. Fui recebido por Mussolini no final de 1923 e fiquei impressionado. Os trabalhadores mostravam um patriotismo nunca visto, os trens passaram a ser pontuais...
-Mussolini, com sua retórica populista, recorrendo à farta propaganda, à doutrinação política, ao gerenciamento do orgulho, da esperança, enquanto esmagava a oposição e controlava a imprensa, como escreveu Ronaldo Costa Couto, deu início a uma insidiosa ditadura que até hoje é imitada em diversos países.
-A minha lucidez estava nos negócios, não na política. Morri em 1937 e fui poupado de assistir ao malogro do fascismo.
-E as crianças trabalhadores, Conde Francesco Matarazzo?... Consta que, em 1920, quase 10% dos operários paulistas  tinham menos de quatorze anos, que muitas das suas fábricas estavam adaptadas com máquinas e ferramentas de tamanho reduzido para que pudessem ser manejadas por crianças. Parecia até o capitalismo selvagem da Inglaterra de Charles Dickens.
-Eram tempos duros, eu também iniciei no trabalho com menos de quatorze anos. Nessa época, não tínhamos infância, espero que as crianças de hoje tenham.
 -Conde, Ronaldo Costa Couto, sobre esse caso, se reporta à mãe da historiadora Maria Angélica, que conta um encontro casual da mãe dela, sua nora,  com uma velhinha na igreja que você costumava ir na festa de São Vito Mártir. Afirmou a velhinha que trabalhou numa das suas fábricas desde os doze anos de idade, que você foi o homem mais generoso que conheceu na vida. E concluiu a sua neta: “Uma coisa espantosa, não é?!... Hoje todos consideram escandaloso que uma menina de doze anos trabalhe numa fábrica. E é mesmo.  Mas a lembrança que ela guardou do meu avô é uma coisa extraordinária. As coisas têm de ser entendidas e analisadas no contexto em que ocorreram.”
-As crianças ajudavam na receita da família naqueles tempos difíceis, ragazzo.
-Infelizmente, essa situação ainda perdura em muitos países atrasados.- declarei.
-Nas classes mais abastadas, eu espero que não?...
-Nessas classes, as crianças também sofrem; além dos estudos essenciais, têm de frequentar cursos de línguas, aulas de natação, judô, dança, ou lá o que seja, enfim, ficam cheias de compromisso, como os adultos, sem tempo para brincar, de desfrutar a infância.
-Apesar da alegria esfuziante dos italianos, eu não tive muito tempo, quando menino, para os folguedos, trabalhei nessa idade. Mas sonhei sempre.
-A propósito, Conde, o jornalista Vicente Ragogneti, que dirigia um jornal humorístico, Il Moscone, cujo lema era “Para as moscas e os jornalistas, não há lugar proibido”, fez-lhe, segundo o seu biógrafo Ronaldo Costa Couto, a seguinte pergunta:
-”Conde, quando era moço o senhor sonhou algum dia com tudo isso que já fez na vida?
-E respondi:
-"Eu!: Mas se ainda vivo a sonhar!”
-Você teve mais de duzentas empresas; era detentor da quarta maior fortuna do Brasil, perdendo apenas para o PIB do Brasil, para o Estado de São Paulo e para a receita com a exportação do café.
-Enquanto tive saúde, trabalhei com uma vontade férrea.
-E quando ela começou a fraquejar?
-Quando o médico recomendou que eu reduzisse a garrafa de vinho que eu tomava diariamente  para um copo apenas. Tive, então, de comprar um copo de quase um litro para beber o meu vinho.
-E o médico?...
-Quando soube, diminuiu a cota de vinho para um dedo.
-E o vinho da sua predileção era um tinto escuro, muitíssimo encorpado e alcoólico.
-Vinha das montanhas pedregosas da minha terra natal, Castellabate.
-Era uma maneira de você voltar à sua origem.
-Sim; sem o meu vinho diário, eu me senti velho e doente.
-E morreu com 82 anos de idade de uremia.
-Foi quando deixei de trabalhar.
Disse, enquanto partia para outras plagas.

2346 - o Conde (1)


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4146                                      Data: 09 de  Março de 2013
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83ª VISITA À MINHA CASA

-Como vai, Conde Francesco Matarazzo? - perguntei-lhe assim que se materializou à minha frente.
-Mal, sem  trabalhar...
-Você veio do sul da Itália, para trabalhar no Brasil com 27 anos de idade?
-Vim de Castellabate, minha pequena vila do sul italiano em busca de oportunidades no Brasil. Emigrei em 1881, com mulher e filho pequeno, trazendo uma carga de banho de porco.
-Imagino a sua dificuldade, não sabendo que maiale é porco, e que banha é lardo.
-A dificuldade não foi o idioma e sim a perda da minha carga de banha de porco no desembarque, na Baía de Guanabara.
-Mas o seu destino  era o Rio de Janeiro?
-Não; era Sorocaba, onde me fixei com o pouco dinheiro que restou nos meus primeiros nove anos no Brasil.
-Há poucos anos li uma biografia sua do historiador Ronaldo Costa e Couto e sei alguma coisa sobre você.
Sob o olhar astucioso do empresário, prossegui:
-Você chegou  a Sorocaba, mascateou na roça e, depois,  estabeleceu um armazém de secos e molhados; comprou mercadorias e contratou tropa...
-Tropa?!... - interrompeu-me. 
Depois de lhe explicar que contratou trabalhadores braçais  para trabalharem em armazém, prossegui:
-Importou banha de porco em barricas, sal, arroz, azeite fubá. Comprou e engordou porcos, passou a fabricar banha em casa. Fez latas no fundo de quintal para enlatar a banha. Fabricou fubá, explorou açougue. E as vendas e lucros se multiplicaram.
-Você se esqueceu da Filomena, minha mulher, que trabalhou no pesado junto comigo.
Feita a justa ressalva, fui adiante:
-Empresários que surgiram no Brasil muito depois de você declaram que o início da sua fortuna  se deu no atendimento ao consumo de massa: banha, tecidos, farinha de trigo, óleos comestíveis, etc. Reconhecem a sua extraordinária visão ao não enfrentar a competição internacional e proteger-se com a produção interna.
-Eu fui crescendo aos poucos e atuando no ramo que eu mais conhecia, o de alimentos. Eu era audacioso, mas nunca inconsequente.. Estava escarmentado pela dura vida no sul da Itália, sabia melhor que todos o que era uma crise.
-Sei que você não entrou na euforia da política econômica do Ruy Barbosa, no primeiro governo republicano, que resultou no Encilhamento.
-Não disseram que eu tinha visão?... Pois eu tinha, não pisaria em falso. A riqueza viria paulatinamente, sem pressa. - afirmou.
-Você seguiu um lema simples, mas de grande sabedoria: uma coisa puxa a outra.
-Sim; eu produzia trigo que, por sua vez, tinha de ser embalado. A embalagem exigiu que eu montasse uma tecelagem. Para aproveitar todo o algodão utilizado na produção do tecido, instalei uma refinaria de óleo, e assim por diante. Uma coisa puxa outra e nos leva além do horizonte.
-E quando você se mudou para a cidade de São Paulo?
-Em 1890, quando fundei com meus irmãos Giuseppe e Luigi a empresa Matarazzo & Irmãos. Giuseppe participava da fábrica de banha, em Porto Alegre, e Luigi do depósito-armazém, em São Paulo. Em pouco mais de um ano, a empresa foi dissolvida e constituí, em seu lugar, a Companhia Matarazzo S.A. com pouco mais de 40 acionistas majoritários. Em 1898, houve a guerra entre a Espanha e Estados Unidos, eu percebi que era o momento de dar mais uma sacudidela nos negócios; obtive crédito do London and Brazilian Bank, construí, então, um moinho, em São Paulo e os negócios se expandiram.
-A ponto de você trabalhar com pouco capital de terceiros e ter o seu próprio banco.
-Você está apressando as coisas.- admoestou- me com o sorriso das pessoas exitosas.
-Sim, temos de nos deter no emblemático ano de 1911, que consolidou a sua vida de empresário. - reconheci.
-Em 1911, nasceram as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo S/A com as três símbolos fundamentais para o engrandecimento: Fides – Honor – Labor ( Fé, Honra e Trabalho). -  declarou com orgulho.
-A IRFM  foi um empreendimento que englobou o já encorpado conjunto industrial, com a sede central em São Paulo mais filiais em Santos e Rosário de Santa Fé, na Argentina?
-Isso. Eu era o diretor-presidente; Ermelino Matarazzo, meu filho, era o diretor-gerente; e o meu outro filho, Andrea Matarazzo, era o diretor-secretário. E também havia grandes nomes no Conselho Fiscal.
-O escopo da empresa era, então, a moagem de trigo, o engenho de arroz, as fábricas de banha, óleo, sabão, fiação, tecelagem e tinturaria. - acrescentei.
-Eu não desativei a atividade comercial, eu a mantive porque era lucrativa, com ela, tínhamos relações de negócios em todo o mundo.
-As medidas econômicas tomadas pelo governo brasileiro, na época, eram favoráveis à industrialização e à emergência de uma burguesia industrial. - disse.
-Sim, era hora das mudanças, de arregaçar ainda mais as mangas da camisa  e trabalhar. - clamou com o entusiasmo de quem revivia aquele tempo.
-Então, Francesco Matarazzo, três anos depois espocou a Primeira Guerra Mundial com a Itália envolvida.
-Eu nunca deixei de ser italiano, embora a IRFM fosse genuinamente brasileira. É verdade que cheguei a ter 80% de trabalhadores italianos ou oriundi, eles se realizavam com o meu êxito, eu era mais do que um chefe para eles, uma fonte de autoestima. Estou falando aqui português, mas, quando vivo, eu me comunicava mais com as pessoas do Brasil na minha língua pátria.
-Como italiano, você voltou para a Itália envolvida pela guerra.
-Não, a guerra me surpreendeu na Itália. Comprei uma propriedade em Resina, perto do Vesúvio e construí a Vila Matarazzo com magníficos vinhedos. Uma das minhas maiores paixões era o vinho de lá, bebia uma garrafa ´por dia.
-E as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo S/A?
-Ficaram sob a administração dos meus filhos mais talentosos, principalmente Ermelino. E eu preparei bem o meu segundo filho; ele estudou na Suíça dos sete aos dezoito anos. Depois, Ermelino estagiou na França, na Alemanha e na Itália. Após  um curso de comércio, em Londres, ele retornou ao Brasil com dezenove anos. Eu o guiei, então, nos nossos negócios, e ele, demonstrou tamanha aptidão que lhe entreguei a direção das  Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo S/A e retornei à minha pátria.
-Ermelino Matarazzo  era o seu sucessor natural?
-Eu não tinha a menor dúvida, nem os seus irmãos.
-Eu não concebo que, com o seu temperamento de trabalhador, tenha retornada a Itália para descansar.
-Mas eu não descansei, fiz negócios por lá; por exemplo, obtive a representação da Navegação Geral Italiana, em Gênova.
-E a entrada da Itália, na guerra,  ao lado dos ingleses e italianos, mexeu ainda mais com seus brios?
-É evidente. Eu estava com  61 anos de idade, mas com plena saúde. Administrei o abastecimento e controle de alimentos principalmente em Nápoles. Articulado com a IRFM, enviei bens de primeira necessidade à população civil  pobre. Ermelino, em São Paulo, liderou polpudas contribuições dos imigrantes no esforço de guerra italiano. Forneci aos governos italiano e francês as instruções para a panificação da farinha de trigo, instruções essas que as autoridades fizeram imprimir e distribuíram largamente. O resultado obtido foi muito bom e tive a satisfação de receber do prefeito de Paris calorosos agradecimentos pela minha contribuição com a farinha de milho para minorar as dificuldades daqueles dias sombrios.
-E o rei da Itália, Vittorio Emanuele III, lhe concedeu o título de conde.
-Só os paulistas quatrocentões levaram a sério o meu título nobiliárquico, os nobres italianos, não.
-Então, veio a tragédia: Ermelino Matarazzo, seu sucessor, morre.

terça-feira, 26 de março de 2013

2344 - NOJENTO


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O BISCOITO MOLHADO
                          Edição 4144                                 Data: 05 de  Março de 2013
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82ª VISITA À MINHA CASA

-David Niven, a sua visita é sempre bem-vinda.
-Sempre que posso, passo por aqui.
-Ainda bem, pois as suas histórias da Hollywood de 1935 a 1960 são pepitas de ouro para qualquer cinéfilo.
-Hollywood é a terra do loto.
-Explique, porque muita gente não entendeu, inclusive a minha pessoa.
-Encontra-se na Odisseia de Homero: quem come o fruto dessa árvore passa a viver um mundo de sonhos com uma sensação de bem-estar.
-Sim, Hollywood é a terra do sonho, como na mitologia grega.
-Eu escrevi muitas páginas sobre o realismo na terra dos sonhos.
-Conte-nos, então.
-Eu teria de ficar dias aqui e não tenho muito  tempo.
-Fale-nos das festas e jantares de Hollywood, de algumas delas, já que o seu tempo aqui é curto.
-Compareci aos jantares íntimos do Cole Porter nos quais o seu maître francês nos deliciava com autênticas obras de arte culinária, regadas a vinhos capazes de excitar qualquer sommelier.
-E Cole Porter tocava piano para dar um fecho de ouro?
-Não só ele, como George Gershwin e Irving Berlin, que também compareciam a esses jantares.
-Três dos maiores compositores que já existiram nos Estados Unidos. - animei-me.
-Eles tocavam por satisfação própria, o que tornava ainda mais prazeroso para nós ouvi-los. E que improvisações!... Embora Gershwin tenha ficado no limite da música popular com a erudita, não superava Cole Porter em conhecimentos musicais.
-Era tudo refinado. - comentei.
-Nem sempre. Estive numa festa em que o champanhe jorrava dos seios de uma estátua; em outra, de nudistas, realizada numa casa à beira-mar,  dois convidados desapareceram por alguns minutos e voltaram vestidos de policiais.
-Para prender todo o mundo?-  previ.
David Niven gargalhou e foi adiante:
-Nessa festa, um artista, uma celebridade, quebrou a perna ao fugir por uma janela.
-Quem foi esse nudista que correu dos policiais fantasiados.
-Não posso contar tudo. Uma discrição se faz necessária.- disse com forte acento britânico.
E prosseguiu:
-Certa vez, Charlie e Ann Lederer ofereceram um jantar ao Xá do Irã. Em dado momento, o homenageado se voltou para Lauren Bacall e lhe disse que ela nascera para dançar. Ela respondeu sem pestanejar: “Xá, pode apostar o seu rabo.”
-Lauren Bacall usava esse palavreado? - surpreendi-me.
-Você precisava ouvir o que diziam aquelas que apareciam como vestais nas telas.
Pelo que a Lauren Bacall disse ao Xá do Irã, eu já imagino.
-Houve uma festa, que se deu em certa mansão de Hollywood, em que o convidado de honra foi um cavalo.
-Um cavalo?!... Se ainda fosse um cachorro, o Rin Tin Tin, que salvou a Warner Brothers da falência.
-Hollywood também tinha o seu Calígula fora da tela.
-E como foi a festa?
-Bem, o cavalo homenageado se sentiu tão à vontade  que os tapetes persas tiveram de passar, depois, por uma boa faxina.
-Qual dessas festas foi a inesquecível?
- Estou me lembrando de muitas delas...
Depois dessa hesitação à minha pergunta movida pela curiosidade,  deteve-se num almoço em que o convidado de honra da Twentieth Century Fox foi o premier da União Soviética, Nikita Kruschev.
-Sim, houve o célebre debate na cozinha em que o vice-presidente Nixon enalteceu o capitalismo, enquanto Kruschev contra-atacava com os grandes feitos do comunismo.- manifestei-me.
-Isso foi  em 1959, na Rússia; o almoço foi por essa época.
-Em plena guerra fria.- dramatizei.
-Compareceram uns trezentos convidados, entre eles a Madame Kruschev e a filha. Elas eram as exceções, só havia homens.
-E como foi?- cresceu a minha curiosidade.
-Eu e Frank Sinatra  fomos escalados para entreter as duas madames.
-É evidente que havia um intérprete por perto.
Enquanto David Niven sorria, eu lhe perguntei como era a   Senhora Kruschev.
-Sua expressão era maternal. Seus cabelos grisalhos foram puxados para cima e presos por um coque. Ela sorria bondosa e indiscriminadamente.
-Não vou pedir-lhe para descrevê-la fisicamente.
-Ainda bem; quem quiser saber, que leia o meu livro.
-E como foi ela com vocês?
-Logo que se sentou à mesa, abriu a bolsa, vasculhou-a e retirou as fotografias dos seus netos, que passou para mim por sobre a mesa.
-E a filha dela com o  premier soviético?
-Era uma loura discreta, com nariz grande, tendo uns 30 anos de idade. Era casada com o editor do Izvestia.
-Izvestia e Pravda, os dois jornais de lá. Ele compareceu ao almoço?
-Sim, mostrou-se muito afável.
-Evidentemente que você colocou  mãe e filha à vontade.
-Bem, eu perguntei o que elas pretendiam fazer depois do almoço e, com a expressão constrangedora, a Senhora Kruschev me respondeu que gostaria de ir a Disneylândia.
-Interessante.
-Em seguida, ela acrescentou que a polícia comunicara que não podia se responsabilizar pela segurança dela e da filha.
-E não foram à Disneylândia?
-Passei a informação  para o Frank Sinatra que reagiu do jeito dele: “Que os tiras se fodam. Diga à bruxa velha que você e eu as levaremos esta tarde para a Disneylândia. Nós tomaremos conta delas”.
-Ainda bem que ela não entendia a língua inglesa.- comentei depois de rir.
-Modifiquei um pouco as palavras do Frank para o intéprete, quando a Madame Kruschev o ouviu seu rosto se iluminou. Depois, ela voltou a escarafunchar a bolsa, tirou um pedacinho de papel e lápis, escreveu alguma coisa que foi despachada para o marido. Ele leu, com a expressão antipática, e acenou-lhe um “Nyet”.
E prosseguiu:
-Terrível foi o momento em que o presidente da 20th Century Fox ergueu-se para discursar.  Fez um paralelo entre a ascensão de um trabalhador de mina de carvão a homem mais importante da URSS com a sua ascensão de simples trabalhador a dono de empresa.
-E o discurso do Kruschev?
-Desancou a prefeitura de Los Angeles, uma cidade em que não se está a salvo nem num parque de diversão para crianças. Para acalmar o homem, ele foi levado para o estúdio de gravação do filme Can Can.
-Com músicas de Cole Porter. - interferi.
Com um sorriso malicioso, David Niven continuou:
-Shirley MacLaine e outras dançarinas, com suas meias rendadas e pequeninas cintas de liga,atiravam as pernas para o ar, rodavam as anáguas e, com movimentos rotativos dos joelhos, terminavam com as saias erguidas até a cabeça. Elas apontavam seus  traseiros diretamente para o hóspede de honra e sua família.
-E  Kruschev?
-Disse só uma palavra: NOJENTO.
E com um sorriso irônico, David Niven se foi.

quarta-feira, 20 de março de 2013

2342 - Um Biscoito na Atlântida


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4142                                  Data: 02 de  Março de 2013
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CARTAS DOS LEITORES

-”Pilhéria, uma ova! Bradou o Dieckmann, que acompanhou esta edição, passo a passo, ou melhor, letra e música. O carro batido era um Jaguar e apareceu em “Amei um bicheiro”, mas a mãe do Cyll, não.” Dieckmann
BM:  Antes, uma explicação para que as palavras acima não pareçam indecifráveis como uma centúria de Nostradamus e que sejamos obrigados a convocar o Jonas Vieira para destrinchá-la: Dieckmann, como Pelé, se trata na terceira pessoa. Ele se refere a um dos comentários nossos sobre o programa da Rádio Roquete Pinto “Ouvindo o ouvinte”, do radialista que citamos acima acompanhado do talento multifacetado do Sérgio Fortes.
Na ocasião, nós atribuímos ao Dieckmann as palavras, em tom de pilhéria, que diziam que a mãe do Dick Farney e Cyll Farney aparecia, em Santa Teresa, com a frente do carro MG batido. Como ele escreve, não pilheriou e o carro era um Jaguar. (*)
Vi o filme “Amei um bicheiro”. Lá pelo fim dos anos 50, o Cinema Cachambi programou um “Festival do Cinema Brasileiro”, com um filme  a cada dia e o primeiro dos sete, numa segunda-feira, era o “Amei um bicheiro”. Tratava-se da primeira fita do Cyll Farney e do Grande Otelo, que não era comédia, a que eu assistia.  Mas não foi fácil; o Secreta, responsável pelo cinema, pensou em não me deixar entrar, porém a  minha mãe o convenceu do contrário depois de algumas ponderações. Por outro lado, outra mãe, com um filho menor do que eu, depois de ouvir que o menino não podia ver o filme, entregou o dinheiro à bilheteira e irrompeu cinema adentro com o pimpolho deixando o Secreta a resmungar.
Por que o filme era proibido para menores de dezoito anos? Creio que a resposta está no fato de o Sabiá, personagem do Grande Otelo, ter morrido numa caixa de gás para esconder-se da polícia. Não foi  por causa de mulher nua, que não houve, se houvesse, não se apagaria da minha memória como se apagou o Jaguar avariado. Dieckmann não se esquece do felino inglês, enquanto eu me esqueço até dos que vi recentemente.
Mas que ele disse no programa do Jonas Vieira que a mãe do Cyll Farney aparecia com a frente do carro batida, em Santa Teresa, lá, isso ele disse. (**)

-”BM 4116; como o computador português não tenho memória, tenho uma vaga lembrança em que houve uma letra, pelo menos em português, colocada na “Valsa do Adeus” do tuberculino polaco, mais usada no filme “A Ponte de Waterloo”, Vivien Leigh e Robert Taylor; algo no gênero: “Adeus, amor, eu vou partir”, não juro a respeito, eu era quase neném. Era uma desgraça  pelada, tempos de guerra e o mó chororô. Preciso de suas pesquisas: o Mainardi, no livro sobre o filho, fala na estátua do Verrocchio, o Bartolomeo Colleoni a cavalo. Pois apreciaria saber o sobrenome dele, Colleoni era só um apelido, meu pundonor não me permite detalhes, já deve tê-los captado. Em tempo: a Valsa é do Adeus ou do Minuto? E penso que do filme houve uma 2ª versão, “Gaby”, essa acabava bem, se acabar bem é acabar em casamento, ignoro. Envio-lhe encômios e ósculos.” R
BM:   Rosa Grieco se reporta à visita que Ernesto Nazareth me fez, quando foi citado Chopin (“o tuberculino polaco”). No que concerne a Bartolomeo Colleoni, eis o que diz a Enciclopédia Larousse:
“Bartolomeo Colleoni, condottiere  italiano (Solza, perto de Bérgamo, 1400 -Malpaga, perto de Bérgamo, 1475). Fez a parte mais importante de sua carreira militar em Veneza, que lhe confiou o comando supremo do Exército em 1454. Legou uma parte de seus bens à República de Veneza, que lhe erigiu uma estátua  equestre, esculpida por Verrocchio.”
Suspeito que Bartolomeo Colleoni foi vítima dos trocadilhistas, como Charles, filho de Elizabeth II, da Inglaterra, que é Príncipe da Cornualha.
Quanto a  “A Ponte de Waterloo”, é um filme de 1940, com os protagonistas citados pela Rosa. Vivien Leigh, deslumbrada com o sucesso que obtivera no ano anterior como Scarlett O'Hara  queria o seu marido Laurence Olivier no papel de Roy Cronin, mas Hollywood ignorou sua vontade e o papel foi para Robert Taylor. Vivien Leigh se conformou, a ponto de declarar, mais tarde, ser  “A Ponte de Waterloo”  o filme em que mais gostou de trabalhar. Robert Taylor, por sua vez, disse que  Roy Cronin foi o seu primeiro grande papel e que trabalhar com a Senhora Leigh beneficiou muito a sua carreira.
Eis, num parágrafo, o filme:
No dia anterior à Segunda Guerra Mundial, um oficial inglês (Robert Taylor) retorna à ponte de Waterloo para se lembrar quando,  jovem rapaz, estava indo à Primeira Guerra Mundial  e de sua namorada da época, a bailarina Myra (Vivien Leigh). Adaptação da peça de Robert E. Sherwood. A película foi indicada aos Oscars de melhor Fotografia e de melhor Trilha Sonora em 1941.

-”Rubirosa foi o pivot da separação de Zsa Garbor e George Sanders. Aliás, não entendo como um homem complexo e sofisticado como ele casou-se  com tamanha vagabunda.
O fabuloso playboy também foi a causa do divórcio entre o golfista e socialite Robert Sweeney e sua esposa, a herdeira texana de campos de petróleo, Joanne Connely. Trujilo, para fazer mis en scene, destituiu Rubirosa do cargo de embaixador na França por má conduta. Pouco depois, ele foi reconduzido à carreira diplomática. Luiz Tinoco
BM: Se Ruy Castro, Fernando Moraes, Ronaldo Costa Couto ou outro biógrafo pretender escrever sobre a vida do playboy Porfírio Rubirora, terá, fatalmente,  de consultar o Tinoco, garante o Dieckmann. O biógrafo ficará com pouco trabalho, pois bastará colocar no papel o que o nosso amigo Tinoco contar.
Sobre a Zsa Zsa Garbor, que foi citada com severas palavras pelo remetente dessa carta, merece, a nossa ver,  uma apreciação mais branda.
Ela foi Miss Hungria, e teve, no seu currículo amoroso, nove maridos, sete divórcios e uma anulação de casamento.  Em 1937, com  vinte anos de idade, contraiu núpcias com um ministro turco muito mais velho do que ela e teve um caso com o presidente da Turquia, Ataturk.
Atuou com grandes nomes do cinema, como John Houston, em Moulin Rouge, de 1952, e Orson Welles, em A Marca da Maldade, de 1967, mas seu destaque não foi nas telas de cinema...
 Sua velhice foi bastante sofrida, ela aproveitou bem a vida enquanto teve saúde. (***)

(*) Localizamos o Dieckmann com alguma dificuldade, pois, alem de se esconder na terceira pessoa, andou enfiado nas matas do Espírito Santo, Amém, como se refere o mencionado amigo do redator do seu O BISCOITO MOLHADO ao belo Estado. Estado belo, limpo e arrumado, fez questão de enfatizar antes de tecer os seguintes comentários:
Já encontrei o nome do Cyll Farney escrito de diversas maneiras, com um ele, com dois, com i e com y. No filme Os Dois Ladrões está Cyll, no imdb está Cyl e por aí vai. Segundo a Wikipédia, Cyll Farney, nome artístico de Cilênio Dutra e Silva foi um ator brasileiro. Cyll Farney era irmão do músico Dick Farney, Tinha estudado farmácia nos Estados Unidos e tocava bateria na banda do irmão. E foi dele que Cyll Farney tirou seu nome artístico. 'Meu pai inventava estas coisas. Farney veio de Farnésio, o nome do Dick. Por causa dele, adotei também ', disse ele numa entrevista em 1999.
E, segundo a Dieckpedia, MG não é carro para estar em filme, nem mesmo da Atlântida.
E mais não disse, certo de haver iniciado uma polêmica das boas. O Distribuidor concorda com a provocação, vamos ver se algum dono de MG vai ler esta edição.
(**) Ái, ái, ái, rezingou o colecionador. O carro era da mão do Cyll, era um Jaguar e estava com a frente batida. Mas a mãe do Cyll estava inteirinha, em sua casa, na Rua Júlio Ottoni e não apareceu nas filmagens.
(***) A Zsa Zsa está viva (garantem) com 96 anos.

terça-feira, 19 de março de 2013

2341 - comprando o filho de uma filosofia sorridente


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4141                                  Data: 29 de fevereiro de 2013
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FRASES E COMENTÁRIOS X

Um filho é um credor dado pela natureza.
Stendhal cunhou a frase acima no seu livro inacabado Lucien Leuwen.
Li alguns romances inacabados do grande escritor francês. Eles apareceram numa gôndola do Carrefour, com outros livros e não perdi tempo: coloquei-os na minha sacola de compras. Veio-me à mente  A Sinfonia Inacabada  de Schubert que, talvez porque não chegou ao fim, ficou como a mais celebrada, embora eu prefira a sua sinfonia seguinte, a nona, denominada “A Grande”. No caso de Stendhal, prefiro, sem pestanejar, “O Vermelho e o Negro”, embora, confesso com vergonha, ainda não li até hoje “Cartuxa de Parma”.
Rosa Grieco que, sem exagero, já leu dezenas de milhares de livros, confessa que, quando viajava nos trens lotados da Central do Brasil, nutria inveja da cauda  preênsil dos micos porque, com ele, pendurar-se-ia  enquanto as suas mãos ficavam livres para segurar os livros e ler. Pois ela afirma que Stendhal é o escritor que ainda abala, favoravelmente, os seus alicerces.
Stendhal, porque nasceu alguns anos antes de Balzac e Victor Hugo, viveu o esplendor e a decadência do império napoleônico. Balzac era criança, e Victor Hugo mais ainda. Com 19 anos, em Paris, foi secretário do seu primo Daru, que se tornaria ministro de Napoleão Bonaparte. No ano seguinte, 1800, descobriu a Itália e ficou irremediavelmente apaixonado por esse país.
Mas a voragem napoleônica o trouxe de volta a Paris e, de 1806 a 1808, torna-se intendente militar na Alemanha e na Áustria.
Na Rússia, na desastrada invasão de 1812, foi auditor do Conselho de Estado. Com a derrocada do  império napoleônico em 1815, Stendhal encontrou a paz para se dedicar à literatura e viver no país que tocara tão fundo a sua sensibilidade. A partir de então as suas obras são criadas e algumas, como já assinalamos, inacabadas, como Lamiel e Lucien Leuwen. Deste último, pinçamos a frase que encima estes comentários.
 É uma frase atual, pois lemos estudos de economistas que calculam quanto os pais gastarão com um filho até ele completar uma determinada idade: tanto em alimentação, em vestuário, em lazer, em educação Chegam a custos  estratosféricos. Na classe média, já se faziam, há algumas décadas, esses cálculos, sem maiores rebuscamentos matemáticos e se chegava a números parecidos; então, a época dos pais com cinco, seis e até mais filhos, se encerrou. De um tempo para cá, a média é de dois filhos por casal.
E nas classes inferiores, as que estão menos preparadas para arcar com um credor como é um filho?... Bem, os casais das classes mais baixas não recebem as devidas instruções e colocam uma filharada no mundo, uma filharada que sofre na própria carne com o fato de não receber o que lhe é devido.

Voltaire diz que os céus nos deram  duas coisas para compensar as inúmeras misérias da vida: a esperança e o sono. Ele poderia ter acrescido o riso à lista.
São do  filósofo prussiano, Immanuel Kant, que viveu de 1724 a 1804, as palavras acima.
Acreditamos que houve um lapso de memória do filósofo francês quando citou apenas a esperança e o sono, pois poucos autores cultivaram tanto o riso para combater, neutralizar as misérias humanas como ele. Antes de Voltaire, o grande pensador Pascal já se utilizava do riso como o mesmo fim, embora Voltaire, figura de proa do Iluminismo, o combatesse em alguns pontos.
Como assinalou Roberto Romano no seu estudo sobre a importância da sátira lucianesca (do filósofo cínico Luciano de Samòsata, 125 a 181 d.C.) no pensamento das Luzes, a sátira se acha, em especial,  nos textos de Voltaire:
-”Após o século XVIII, a cultura ocidental perdeu muito da força curativa proporcionada pelo riso. Se tomarmos os textos de Fichte, Hegel, Schopenhauer, Bergson (passando pelos poetas românticos, como  Baudelaire) o riso é discutido esporadicamente, perdendo o seu poder corrosivo, em especial no ataque às superstições, preconceitos, e as doutrinas filosóficas comprometidas com a dominação cinzenta que se abateu sobre o mundo após Napoleão Bonaparte. A partir do Corso, como demonstrou plasticamente Stendhal em O Vermelho e o negro, o tédio e as delações, a censura, os policiais inseridos nas conversas, tornaram a França um país soturno, melancólico. Com a sisudez, a república das letras cobriu-se com a negra teoria, fugindo da verde árvore vital.”
Mesmo o  citado Schopenhauer, reduzido por muitos a filósofo do pessimismo, dedicou algumas páginas suas ao riso, sem fazer uso dele, evidentemente, como Voltaire e Pascal. E Roberto Romano recorre a este trecho:
-”E Schopenhauer cita a anedota do público parisiense que pediu a Marselhesa num teatro, armando um barulho enorme quando não se atendeu a este desejo. Um policial uniformizado foi ao palco para dizer que, no teatro, se executava apenas o que estava anunciado no cartaz . “Et vous, monsieur, êtes vous  aussi sur l' affiche?” (E o senhor, está no cartaz?), o que provocou a hilaridade generalizada. Assim também o artista Unzelmann, quando era proibido qualquer improviso no teatro de Berlim. Ao entrar em cena com seu cavalo, este depositou algo inesperado sobre o palco. O público riu muito. Mas aumentou o tom da gargalhada  quando  Unzelmann dirigiu-se ao bicho: “Então, você não sabe que é proibido improvisar”.

Se a verdade finalmente prevalece é duvidoso, e nunca foi provado; o que é certo, contudo, é que nada se revela mais eficaz na expulsão de um erro do que um novo erro.
Assim disse o poeta inglês T.S. Eliot.
Para se dizer que a verdade prevalece temos de conhecê-la.
Numa entrevista concedida no hotel Lancaster, em Paris, Orson Welles se deparou com o seguinte  assunto proposto pelos repórteres:
“Em dois dos seus filmes você se questiona sobre a noção de verdade, em Cidadão Kane e F for Fake.”
Resposta de Orson Welles:
-”É uma questão que sempre tem um grande poder de fascínio. A pergunta de Pilatos ao Cristo é a grande pergunta de todos os tempos.”
Pilatos perguntou a Cristo qual era a verdade e Cristo se manteve calado.
O teatrólogo e escritor italiano Luigi Pirandello expôs nas suas obras  a inútil luta que o homem trava para atingir a verdade de sua própria identidade. A verdade sempre surge fragmentada em hipóteses e aparências que se anulam umas as outras.
T.S. Elliot, na sua frase,  se mostrou duvidoso sobre a prevalência da verdade, mas se mostrou seguro quanto à eficácia de um erro substituir outro.



segunda-feira, 18 de março de 2013

2338 - é o biscoito no Rádio


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4148                                      Data: 16 de  Março de 2013
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MINHA  BIOGRAFIA MUSICAL POPULAR

Dieckmann, depois de apresentar a sua biografia musical no programa do Jonas Vieira com o  Sérgio Fortes, Rádio Memória, domingo, 8h da manhã, sugeriu, com a cumplicidade do  Elio Fischberg, que eu fizesse o mesmo. Ora, como eu já lhes disse, minha fala é truncada, minha voz rascante, sou um pouco melhor do que o pai da Rainha Elizabeth II da Inglaterra antes de encontrar o milagroso fonoaudiólogo.
Porém, eu  me expresso não tão mal escrevendo e, por isso, lanço aqui a minha biografia musical popular nos moldes da que o Dieckmann apresentou na sua voz de locutor da BBC.
Ela se inicia com o carnaval. Meus pais sempre me fantasiavam, tenho retratos em que estou vestido de chinês, de marinheiro, com 4, 5, 6 anos de idade. Minha mãe me levava, pelo menos num dia de carnaval, para ver os foliões na Avenida Rio Branco. Então, aqui vai a minha primeira música que representa o que era chamado de “tríduo momesco” As Pastorinhas de Noel Rosa e João de Barro. Noel Rosa não foi apenas o filósofo do samba, como o denominou César Ladeira, compôs também inspiradas músicas. Braguinha, que beirou os 100 anos de vida, morreu com 99, não perdeu a qualidade nas suas letras, mesmo que a quantidade fosse imensa. E a gravação de As Pastorinhas é do Orlando Silva que, no seu auge, não devia nada aos melhores cantores nacionais e internacionais.
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Antes da Bossa Nova surgir como gênero musical, eu escutava no rádio do apartamento em que eu morava na rua Cachambi, um cantor sem voz pujante, mas que atraía muito a atenção de garoto pelas palavras irreverentes e por despertar em mim o interesse pela política. Trata-se do Juca Chaves. Nos meus nove, dez anos de vida,  eu parava para ouvir “Brasil já vai a guerra”. Soube depois, por uma entrevista do Carlos Lacerda, que o Juscelino Kubitschek comprou o porta-avião Minas Gerais, para provocar  uma briga entre a Marinha e a Aeronáutica pela posse do mesmo, o que desviou as Forças Armadas da ideia de um golpe para derrubá-lo do governo.
Peço, então, a música Caixinha, obrigado, como o menestrel Juca Chaves.
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E veio, na adolescência, a moda das danças em festinhas nas casas de família. Nos 15 anos da minha irmã e de muitas debutantes no fim da década de 50 e início da de 60, tocavam-se muitos discos de Ray Conniff, mas também dos Românticos de Cuba, como de outras orquestras.
Eu pretendia, então, ouvir, com Românticos de Cuba, Siboney, de Lecuona. As composições de Ernesto  Lecuona estão entre as mais inspiradas da América Latina.  Se surgissem no nosso continente políticos tão capacitados quanto os músicos, não estaríamos nessa lastimável pobreza.
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Bem, a  canção  romântica nunca saiu de cena. E antes de nomear a gravação que identifica a sua perenidade, eu quero fazer um breve comentário. Nós, economistas, e os sociólogos também, tivemos de enfrentar as enfadonhas páginas de Karl Marx sobre a Teoria da Alienação, que dizem que o operário não desfrutava dos bens que produz, no capitalismo. Noel Rosa, um marxista romântico, transformou tudo isso em pura poesia quando fala de uma operária de  fábrica de tecido que, no frio,  sem meias vai  para o trabalho, “não faz fé no agasalho”. Bem, Noel Rosa, nos seus 26 anos de vida, elevou o nível das letras do nosso cancioneiro popular a um patamar que só décadas depois Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso alcançariam.
Então, pretendo ouvir Três Apitos na gravação do Caetano Veloso. Ressalto que tanto Chico Buarque, como Antonio Carlos Jobim, gravaram Três Apitos.
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Falei na Bossa Nova, mas tenho de me deter no gênero musical mais marcante da nossa cultura musical porque abrange marcantemente as influências europeias e africanas na nossa cultura, o Choro – a  música de câmera brasileira, como muitos a denominam. Bem antes do surgimento do Jazz dos norte-americanos, já se criava, no Brasil,  uma música que requeria muita inspiração e competência.
   Para representar essa época, eu gostaria de ouvir uma obra de um dos maiores compositores do Brasil que, este ano, faz 150 anos, ou seja, nasceu com o Choro. Trata-se de  Apanhei-te Cavaquinho, uma polca de 1914,  que os instrumentistas chorões adotaram.  Aqui, na gravação de Altamiro Carrilho e Victor Bandeira. Diz a capa do vinil: “A Flauta de Prata e o Bandolim de Ouro”. A Flauta de Prata?!... Como disse Gilberto Gil, quando Altamiro Carrilho se foi: “Perdemos a nossa flauta mágica.”
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 Tem-se obrigatoriamente de se citar Pixinguinha quando se fala em Choro. Dono de um talento extraordinário, Pixinguinha foi mestre como compositor, como instrumentista e como arranjador. Para muitos estudiosos, ele formatou a música popular brasileira. O grande Radamés Gnatalli, com os seus milhares de arranjos, recorreu muito aos instrumentos de corda devido `a sua formação musical europeia, Pixinguinha, por outro lado, usou os instrumentos de sopro, reportou-se à época em que as bandas tiveram grande participação no início da identidade musical brasileira.
Assim sendo, gostaria de ouvir Urubatan de Pixinguinha e Benedito Lacerda. O nome de Benedito Lacerda aparece junto com o do Pixinguinha em algumas composições, mas há controvérsias sobre essa parceria. O exato é que ele foi um grande flautista, modelo do Altamiro Carrinho, nos primeiros anos deste na flauta. A gravação com os autores é a que eu prefiro.
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Eu também era frequentador assíduo do cinema, e não pude ficar indiferente aos filmes musicais. “Cantando na Chuva”, “Guardas-Chuva do Amor”, My Fair Lady”, “O Violinista no Telhado”... Posso citar vários filmes que, se não vi, escutei as gravações  em LPs de vinil que um dos meus irmãos colocava quase que obsessivamente para tocar. Desses filmes, eu destaco “West Side Story”, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim , cuja única deficiência, a meu ver, é o final melodramático com a Natalie Wood. Quanto a Leonard Bernstein, mostrou-se grande artista tanto na música erudita, como maestro e compositor, quanto na música popular. Não foi à toa que Jacqueline Kennedy o chamava à Casa Branca para dar um toque refinado ao governo do seu marido, que estava bem mais interessado nas mulheres do que nas  melodias.
Mesmo sabendo que nomes consagrados, como Kiri Te Kanawa e José Carreras gravaram  West Side Story, eu gostaria de ouvir Tonight  como está no filme.
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Então, vieram os chamados anos de chumbo, mas a riqueza do cancioneiro popular deste país não arrefeceu, pelo contrário. Surgiu a febre dos festivais e, com eles, aflorou para o imenso público uma plêiade impressionante de artistas: Edu Lobo, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil. Milton Nascimento, Aldir Blanc, João Bosco, Elis Regina, entre muitos.
Dos festivais, eu escolho uma das canções mais bonitas e também das mais vaiadas, porque era uma época de ânimos acirrados e paixões cegas: Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque, nas vozes de Cynara e Cybele. Procuro também fazer justiça ao Tom Jobim, o melhor compositor brasileiro dos últimos 50 anos.
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Bem, eu não fiquei indiferente ao Jazz, e aqueles que levaram a Bossa Nova para os Estados Unidos e, depois, para outros países, muito menos; estes foram influenciados.  Cito o Swing, no bom sentido, o Be Bop, o Coool Jazz, e aqueles que exploraram as vertentes deste gênero musical que Strawinsky disse ser a música clássica do século XX: Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Miles Davis.
A música que eu gostaria de ouvir não é  Jazz, mas quem vai cantá-la é, talvez, o seu nome máximo: Louis Armstrong. E a música é What a wonderfull world, de George David Weiss, George Douglas e Bob Thiele.
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Encerro ainda com o Jazz. Quando Paul Whiteman e, principalmente, o admirável George Gershwin enveredaram por esse gênero musical, muitos negros reclamaram contra o embranquecimento do Jazz, pois as orquestras sinfônicas passaram a tocá-lo. Os mais radicais até pediram a Duke Ellington que criasse uma composição de fôlego para superar a ópera de negros “Porgy and Bess”, de George Gershwin.  Uma bobagem, que Duke Ellington logo percebeu. Era preconceito de negro contra judeu e vice-versa, o que lembra o  filme “Conduzindo Miss Daisy”.
Então, eu peço para ouvir  Summertime  de George e Ira Gershwin na voz de cristal da Kiri Te Kanawa.
É isso.

(*) Óbvio, contactamos o Dieckmann que sugeriu de batepronto: que o Sergio Fortes coloque na pauta do programa a seleção do redator do seu O BISCOITO MOLHADO, em ausência, devido às explicações debulhadas em tom lamentoso, bem à moda do Nelson Gonçalves.

2337 - mais rádio, mais colaboradores


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4137                                Data: 23 de fevereiro de 2013
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CARTAS DOS LEITORES

-“O papá nos anos 30 fez muitas traduções do inglês, e ele comprava livros em francês (como o Stendhal) além dos britânicos (Dickens, obras completas, belíssimas gravuras; era preciso escalar uma escada; a estante tomava uma parede inteira do chamado Pavilhão). O espanhol garantia Cervantes. Italiano talvez fosse o menos votado. Aprendi muita coisa em Roma; se lhe interessa, aprenda que calcinha de mulher é “mutandina”.
Eu morava numa pensão da Via Veneto, no porão havia uma boate, maior gozação quando altas horas, o porteiro, cheio de alamares, me cumprimentava calorosamente. Talvez esperando que eu descesse em vez de subir?
Maratona familiar: não posso calcular quem leu mais, eu ou papá. Comecei mais jovem, ele interrompia para trabalhar, foi Professor e pau-para-toda-obra de um Ministro que o impressionou com direito a carros oficiais na porta; viajava bastante; os livros sempre a mão. Dona GG (a irmã Gioconda) contava que na casa dos Pilares havia quatro filhos.
Chutando o Instituto de Educação (já foi tarde, nada a ver comigo) até conseguir liberação o Merré (Ministério das Relações Exteriores), que também não me faz falta, fiquei três anos enfurnada no Pavilhão, devorando “tutti quanti”, e nos bancos da estação do trem e da Central sempre lia, não dava se viajasse em pé, invejando os macacos que têm quatro mãos e um rabo para pendurar no balaustre.
Eu conseguia tempo ainda para ir à praia, ao cinema. Ele (Agrippino Grieco) não aceitava nenhum filme, eram todos considerados uma estopada (sic), e que eu tivesse namoros curtos, ele enxotava todos os destemidos candidatos, até o que foi pedir a mão e a quem garantiu que  eu iria desgraçá-lo (sic) porque passava o dia todo lendo.”  Rosa Grieco
BM:  Rosa Grieco se reporta a um BM em que foram confrontados pai e filha: Agrippino Grieco e Rosa Grieco. Quem leu mais? O destacado crítico literário  conhecia tantos idiomas quanto a filha?
Na segunda questão, eu garanti que a língua italiana era dominada por Agrippino Grieco, e citei a Divina Comédia de Dante Alighieri que ele considerava a obra magna da literatura universal.
 Agora, a Rosa redige essa missiva em que diz sobre o pai: “ Italiano talvez fosse menos votado”.
 Bem, a nosso ver, ele era um ítalo-brasileiro típico, haja vista os nomes que deu aos filhos: Donatelo, Gioconda... Apesar de a Rosa já ter dado a entender que a irmã não era nada alegre, carrega, no entanto, o nome italianíssimo tanto na pintura de Leonardo da Vinci quanto na ópera de Amilcare Ponchielli.
Nós lemos, evidentemente que sem a voracidade do pai e da filha, aqui confrontados, mas lemos. E um dos livros em que nos detivemos foi a biografia do Conde Francesco Matarazzo, elaborada pelo ex-político e atual historiador, Ronaldo Costa Couto.
Em algumas páginas do livro, o historiador se reporta às memórias do jornalista Joel Silveira, Tempo de Contar, em que este cita uma viagem de escritores  brasileiros à Itália, em 1936, convidados por Mussolini. Alguns desses escritores são nomeados: Agripino Grieco, Henrique Pongetti, Jorge de Maia, Licurgo Costa. Abner Mourão, e outros (a Rosa deve conhecer também os três últimos, eu desconheço inteiramente).
Agripino Grieco, pelo que está escrito, disse que o grupo tomou um banho de máquinas, canhões, colheitas de trigo, discursos e mais discursos e sobretudo de berros de Viva il Duce!  Que a cara  do ditador  estava afixada  em tudo que era muro e parede.
No parágrafo que se segue, o historiador não deixa bem explícito se o depoimento é do Joel Silveira ou do Agrippino Grieco, mas parece que é do pai da Rosa:
“Certo dia são levados pelo “gerarca” fascista Alfieri ao Palazzo Venezia. Numa grande sala, “quase do tamanho do Largo da Carioca”, eis finalmente Mussolini ao vivo, de pé detrás de mesa gigantesca, braços cruzados, todo empertigado. Como se já não soubesse a resposta, ele grita para Alfieri: “Quem são?! Que querem?!” E depois: “Já deu aos nossos visitantes uma ideia do fascismo?! Com um safanão, arranca o programa da mão do subordinado, dá uma olhada e berra: “Não deixem de ir a Herculanum! Têm que ir! Em nenhum lugar da Itália se encontram traços tão profundos de romanidade!”.
Em seguida, o historiador deixa bem claro que a palavra está com Agrippino Grieco.
-”Depois começou a falar do Brasil de Matarazzo, dos portugueses, do seu amigo Salazar, da raça latina, da tal romanidade e de canhões, aviões, cada vez mais berrante. E foi só, a coisa toda não demorou mais que dez minutos, talvez menos. De repente, deu-nos as costas e foi postar-se diante do janelão às suas costas, e dali ficou a olhar a praça lá embaixo. Era como se não existíssimos. Com um gesto, Alfieri sugeriu que era hora de darmos o fora.”
Então, Agrippino Grieco disse para Joel Silveira:
-”Em suma, Joel, meu pai tinha razão: o fascismo vaio acabar matando a Itália. A não ser que a Itália, a verdadeira, a dos museus, a dos pintores e escultores, acorde e mate o fascismo.”
Constata-se que o avô e o pai da Rosa eram bem mais lúcidos, em política, do que o Conde Francesco Matarazzo. O formidável empresário, que chegou pobre ao Brasil, lidando com banha de porco, e construiu um império econômico, se deixou levar pelo discurso fascista. Viu a Itália pobre, com seus habitantes saindo do país em busca de um mundo melhor, e empolgou-se com a personalidade de Mussolini, que resgatou o orgulho italiano ao se travestir num imperador da época dos Césares.
Voltando à carta da Rosa Grieco, afirmo que não fiquei convencido que o seu pai não estivesse impregnado de italianismo, não “romanidade”, bem entendido.

-Quando vamos almoçar, caro Elio? Luca
BM: trata-se de uma pergunta feita ao Elio, como se vê, mas endereçada a mim, isto porque a minha presença é solicitada, embora se trate de um dueto. Aqui está o busílis: os leitores do BM ficam em pânico quando os dois se encontram, principalmente o Dieckmann, por causa do repertório depressivo dos dois cantantes, ainda mais quando o flautista boliviano está por perto. Como disse o Dieckmann, recentemente, na Roquette Pinto, “música carregada de negatividade”.
Irei ao almoço, mas tentarei (viu Dieckmann?) pedir ao dueto que só cantem músicas do Moreira da Silva(*).
 
(*) Dieckmann declarou a este Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO que se esqueceu completamente do Morengueira e vai tratar de acertar isso no filme que fará com o Sergio Fortes e Jonas Vieira. Afinal, Morengueira, com sua malandragem e alegria era outro tiro nos nelsons gonçalves da época.