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quinta-feira, 27 de abril de 2023

3135 - Cadê Maria Teresa? (R)






O BISCOITO MOLHADO

Volume 1 Edição 1686                  Data: 11  de Setembro de 2002 

INTRODUÇÃO

De um encontro do presidente João Goulart com as lideranças sindicais, surgiu a idéia da convocação de um ato público, onde o presidente buscaria o apoio popular para o seu programa de reformas de base. Além disso, o objetivo era pressionar o Congresso a aprovar os projetos desse programa, com essa manifestação. O comício seria promovido pelas lideranças sindicais; e o local da realização do mesmo teria de satisfazer as exigências das grandes concentrações populares, ou seja, com fácil acesso e escoamento para os subúrbios. Escolheram, então, a praça Duque de Caxias, ao lado da estação Pedro II, margeando o Ministério da Guerra. Data: 13 de março de 1964 às 17 h 30 min. 
O anúncio da presença de líderes populares como Brizola e Miguel Arraes era sintoma de disputas com o presidente João Goulart de prestígio junto às massas. O clima era tenso. O próprio Miguel Arraes, há poucos dias, em São Paulo, não conseguira entrar pela porta da frente de um estúdio de televisão para pregar a reforma agrária, porque um grupo de católicos se ajoelhara, impedindo a sua passagem. Enquanto isso, Brizola inflamava cada vez mais os seus discursos. 
No dia 12 de março, houve uma tentativa de incendiar o palanque armado, o que confirmava as denúncias que grupos da extrema direita tentariam impedir o comício. E também o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, procurava, de todas as maneiras, colocar obstáculos no trânsito para a Central do Brasil, principalmente de ônibus vindo dos subúrbios e de outros Estados do Brasil.

NO COMÍCIO DA CENTRAL

No dia 13 de março de 1964, às 17h e 30 min, no meio de 200 mil pessoas, na Central do Brasil, lá estavam o redator-chefe do Biscoito Molhado e o Dieckmann.
- “Loucura nós virmos, hein Dieckmann.”
- “Onde está a Maria Teresa Goulart, eu estou.”
- “Mas ela não vai cantar... Nem mesmo a Emilinha Borba e a Marlene vão cantar aqui.”
- “Então por que você veio?”
- “Ora, Dieckmann, pretendo mais tarde abrir um jornal, por isso eu tenho de ser testemunha ocular da história, como o Repórter Esso, sempre que preciso.”
- “Espero ser a personalidade mais retratada nesse seu jornal.”
- “Te compreendo, Dieckmann; e espero vender mais do que a Tribuna da Imprensa do Carlos Lacerda.”
Fomos interrompidos por um bando que bradava palavras de ordem:
- “Cunhado não é parente: Brizola pra presidente.”
O tumulto foi tamanho, que o redator-chefe do Biscoito Molhado se afastou com uma perna só, pois segurava a outra, o que preocupou o seu amigo:
- “O que foi?”
- “Alguém desse bando pisou no meu pé. Acho que foi o Brizola”
- “Ele pisa até no pescoço da mãe para ser presidente.” – concluiu o Dieckmann. 
Enquanto o tumulto crescia, Dieckmann lembrou-se da Glória.
- “Ela não vem?”
- “Ela ficará em casa, com uma vela acesa, na vigília pela democracia, enquanto durar o comício.”
- “Mas quem vai fazer esse protesto é o pessoal da zona sul, instruído pelo governador Lacerda, a Glória é tijucana.”
- “Você sabe, Dieckmann, ela é meio bestinha, ainda mais agora que cisma que provocou uma briga entre o Colégio Militar e o Pedro II por causa de dois namorados dessas escolas. Como se ela fosse a Helena de Tróia, que causou a guerra entre gregos e troianos.”  
Dieckmann já não mais atentava para as palavras do redator-chefe do Biscoito Molhado, pois se fixara no sujeito que esbravejava um discurso.
- “Olha aquele louco.” – apontou.
- “É o presidente da UNE; um tal de José Serra.”
- “Maldito comunista!”
- “Fala baixo, Dieckmann. Vão pensar que nós somos do MAC -o Movimento Anti-Comunista.”
 - “Mas ele carrega muito no vermelho. Te garanto uma coisa: esse cara nunca pegaria um filho meu no colo, muito menos um neto meu.”
- “Ele é bem mais velho que você. Você é um pirralho. Fica tranqüilo que isso é biologicamente quase impossível.”
Depois de a sua voz ser abafada pelo alarido da multidão, o futuro redator-chefe do Biscoito Molhado acrescentou:
- “Você, Dieckmann, é lacerdista, e se mete neste comício... só vai ter contrariedades.”
- “Olha as faixas.” – apontou o Dieckmann.
Legalidade para o Partido Comunista. Lacerda traidor da pátria. Reeleição de Jango. Fora os Yankees. Morram os gorilas. Lincoln  Gordon, lacaio do imperialismo.
 - “A Maria Teresa Goulart merece esse sacrifício.” - suspirou o Dieckmann.
- “Eu não entendo como ela vem parar aqui. Tem de tudo por aqui até aquela gente das ligas camponesas do Francisco Julião.”
- “Maria Teresa é o toque de ternura no meio da violência.”
Depois da poesia, Dieckmann foi mais realista:
- “Os organizadores do comício solicitaram a presença dela para abrandar o acontecimento do áspero aspecto político.”
- “Que bagunça!” – exclamou o redator-chefe do Biscoito Molhado, olhando em redor.
- “Parece a economia do país.” – comparou o Dieckmann.
- “É a conta pela construção de Brasília chegando. João Goulart ainda colocou o Celso Furtado para tocar o Plano Trienal e combater a inflação. Como?... O país é o próprio caos. O Goulart já não queria que a emenda do parlamentarismo desse certo...”
- “Temos de reconhecer: o parlamentarismo foi imposto.”
- “Tudo bem, Dieckmann, mas escolher Brochado da Rocha para primeiro-ministro... Esse nome não levanta o país. Bem, águas passadas; retornamos ao presidencialismo desde janeiro do ano passado.”
- “O que você pensa do Celso Furtado?”
- “O mesmo que o Eugênio Gudin; com a imaginação que ele tem, deveria ser romancista. Não vai resolver inflação nenhuma.”
- “Aquele cara ainda está perto dos maiores subversivos, no palanque.” – indicou o Dieckmann.
- “Quem?”
-“Aquele que eu disse que nunca pegaria um neto meu no colo.”
- “Ah, o José Serra?”
- “Quem?!...”
- “O presidente da UNE. O Cruzeiro, aliás, fez umas piadas com o Lacerda pegando uns rebocos no chão de uma dessas Obra do Governo Carlos Lacerda, dizendo: Essa UNE me dá um trabalho.” É o José Serra.”
- “Daqui a pouco a Maria Teresa  chega com o marido mancando.”
- “Ele manca porque foi baleado no joelho por um marido corno.”
Dieckmann discordou dessa versão criada pela oposição e retransmitida pelo redator-chefe do Biscoito Molhado:
- “Que eu saiba, João Goulart, quando rapazinho, jogou pelo Internacional de Porto Alegre quando estuporou o joelho.”
- “Olha:  o homem é um garanhão do sul, além de latifundiário. Ele fornicava as vedetes do teatro rebolado e, certa vez, porque a Angelita Martinez do Mané que nasceu em Pau Grande...”  
Dieckmann interrompeu:
- “Sei da história; porque a Angelita Martinez não abriu a porta, ele a abriu à bala.”
- “Que presidentes o Brasil tem, Deus do céu! Juscelino gastou o dinheiro que o país não tinha; João Goulart dá tiro nos camarins de vedetes do teatro rebolado... Dieckmann, daqui a quarenta anos, eles serão execrados pela história.”
- “Rapaz, eles até podem ser endeusados daqui a quarenta anos, basta para isso que se tornem mártires.”
- “Mas que estupidez humana os tornaria mártires?”
- “A ditadura. Você já viu algo mais estúpido do que a ditadura?”
- “Pelo que vemos, Dieckmann, a ditadura, se sair, é da esquerda. Ouça só o Brizola; perto dele o Fidel Castro é menininho de primeira comunhão.”
Brizola usava a mesma retórica vibrante com que ergueu o povo gaúcho em torno do palácio Piratini, por ocasião dos boatos de bombardeio de Porto Alegre, quando a intransigência militar não permitia que o vice-presidente da República do Brasil, seu cunhado, tomasse posse com a renúncia de Jânio Quadros.
- “A coisa vão pegar fogo, Dieckmann. Vamos embora.”
- “Eu não saio sem um autógrafo da Maria Teresa Goulart.”
- “Mas você não tem o da Jayne Mansfield, a peituda?!... Contente-se com esse autógrafo.”
- “E quem te disse que eu tenho? Na hora em que ela ia me dar o autógrafo no baile de carnaval do Municipal, puxaram o laço da fantasia dela que cobria a peitaria; o marido, então, o Mister América, saiu distribuindo porrada pra tudo que foi lado. Fiquei sem o autógrafo e quase sem a cabeça.”
O redator-chefe do Biscoito Molhado olhava a baderna que crescia assustadoramente com a voz flamejante do Brizola.
- “Agora é pior, Dieckmann. Mil comunistas são mais perigosos que dez mil Mister América furibundos. Vamos embora.”
 - “Esperamos até agora. Falta pouco. Depois do Brizola, virá o presidente.”
- “E a coisa começou há cinco e meia da tarde... Parece que foi ontem. Imagino a Glória, lá na Tijuca, acendendo vela na vigília pela democracia. Já deve estar na décima vela.”
Ouviu-se, de repente, um urro sobre-humano. Por momentos, Dieckmann esqueceu-se da Maria Teresa Goulart.
- “O que foi? Tocaram fogo nas câmaras da TV Tupi?”
- “Pior Dieckmann; estão incendiando um gorila vestido de verde-oliva e com o quepe do Exército.”
- “Nossa!” – tremeu, lembrando-se da disciplina que o contém, no Colégio Militar.”
Segundos depois, chegava até os dois o boato que os canhões do Ministério da Guerra estavam apontados para o comício.
- “Dieckmann, o Brizola para o exército é um troféu mais valioso que o Jango.  Se eles atirarem, vão atirar agora.”
Antes de os dois fugirem dali, Dieckmann ainda deu um último olhar para o palanque, e suspirou:
- “Fica para outra vez, Maria Teresa.”