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terça-feira, 27 de setembro de 2011

2019 - orgulho e sensibilidade

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3849 Data: 15 de setembro de 2011

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63ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Jane Austen, a sua presença na minha casa muito me honra.

-Obrigada.

-Muitos disseram que a grande revolução do século XX foi a soviética, mas os analistas mais lúcidos garantiram que não, a revolução mais significativa foi a da mulher, que saiu do papel submisso. Você, por antecipar esse tempo, tornou-se a autora inglesa mais influente nos dias de hoje, depois de Shakespeare.

-Você não está exagerando?

As leitoras mais educadas do Biscoito Molhado me chamam de misógino e as mais destemperadas de porco chauvinista, porque não coloquei mulher alguma na minha lista dos dez brasileiros mais destacados e porque só baixam homens na minha sessão espírita.

-Pois agora baixou uma mulher. - disse com um sorriso generoso.

-E uma mulher tão inteligente quanto bonita. - frisei.

-Espalharam diferentes retratos meus por aí, mas o autêntico se encontra na National Gallery de Londres, uma pintura já da Era Vitoriana que foi baseada num desenho da minha irmã, Cassandra.

-Há uma miríade de retratos de Shakespeare, vê-se até o bardo de Stratford-on-Avon cabeludo.

-Mas eu sou séculos mais nova do que ele, não é para as pessoas errarem quanto a minha verdadeira fisionomia.

-E não podem errar também quanto a sua verdadeira literatura. As análises perfunctórias realçam apenas as personagens casadouras dos seus livros.

-Mas escrevi muito sobre elas.

-Eu, quando vejo os concursos de miss difundidos por quase todo o mundo há décadas, digo comigo mesmo que isso é puro Jane Austen: mulheres em busca de um casamento rentável.

-Concordo com a busca de um casamento rentável.

-Você era de uma família numerosa?

-Éramos oito irmãos, de mulheres, só eu e Cassandra, a mais velha. Meu pai, George Austen, era o páraco anglicano de Steventon, em Hampshire, e minha mãe também se chamava Cassandra. Mas não éramos apenas nós que ocupávamos a casa, pois meu pai suplementava os ganhos familiares dando aulas e os alunos moravam conosco. Ele era uma espécie de tutor.

-Entendo.

-Com oito anos de idade, fui com Cassandra para a casa de uma senhora, em Southampton, para prosseguir com a minha educação, mas retornamos porque uma epidemia grassava por lá.

-Isso, em 1783.

-Sim; de 1785 a 1786, eu e a minha irmã fomos alunas de um internato, o que me inspirou na descrição do internato da Srª Goddard no meu romance Emma.

-Foram dois anos fora de casa, Jane Austen.

-Mas a educação que recebi lá foi a única que me foi ministrada fora do âmbito familiar.

-Seu pai, o reverendo Austen, pelo visto, possuía uma boa didática.

-Meu pai possuía uma formidável biblioteca e, como registrei em cartas, tanto eu como minha família, éramos leitores ávidos de romances, principalmente, os ingleses.

-O nosso maior escritor, Machado de Assis, recebeu uma forte influência da literatura inglesa. - intervim.

-Li Henry Fielding e a sua As aventuras de Tom Jones, li Richardson. O título Orgulho e Preconceito, eu pincei de uma frase do romance Cecília da escritora Frances Burney.

-Se fizermos uma comparação com a música, foi como Beethoven, que pegou um tema de Diabelli, um compositor menor e compôs um monumento musical que são “As Variações Diabelli”.

Sem atentar para as minhas palavras, prosseguiu:

-Dos 20 aos 24 anos de idade, escrevi muito. Esbocei Razão e Sensibilidade, Orgulho e Procenceito e Northanger Abbey. Também é desse período Lady Susan.

-Não foi nada seu publicado nessa época?

-Meu pai quis publicar, em 1797, Orgulho e Preconceito, mas o editor recusou.

Ri da ignorância do editor, enquanto ela continuava:

-Consegui vender, em 1803, Northanger Abbey, por 10 libras, embora o romance só chegasse ao prelo 14 anos depois. Em janeiro de 1805, morreu meu pai, deixando as mulheres da família em situação economicamente ruim, ou seja, eu, minha mãe e minha irmã. Passamos a depender dos nossos irmãos e da pequena quantia que Cassandra recebeu de um prometido.

-Sua irmã Cassandra tinha um prometido?

-Cassandra tinha um compromisso com Thomas Fowle, que não estava em condições financeiras de se casar. Passaram três anos e ele, que se tornara militar, partiu para o Caribe para conseguir o tão necessário dinheiro para o casamento. Lá, contraiu febre amarela e morreu, Cassandra herdou o pouco que ele lhe deixou e faleceu solteira.

-E os seus pretentendes, Jane Austen, sendo você tão bonita e inteligente?

-Nutri uma paixão de mocinha por Thomas Lefroy, um irlandês parente de uma amiga. Numa carta à minha irmã, escrevi que não podíamos seguir adiante porque ele tinha problemas econômico-financeiros. A tia dele tentou, então, me aproximar do reverendo Samuel Blackall, mas eu não me interessei. Em 1800, meu pai se mudou para uma cidade de que eu muito gostava, Bath e lá me enamorei de uma pessoa, que não durou muito.

-Você não escreveu sobre esse amor nem nas suas cartas, embora haja estudiosos que afirmem que ele esteja no seu livro Persuasion.

Discreta, ela continuou:

-Pouco depois, na minha cidade natal, com a minha irmã, na casa da família Bigg, fui pedida em casamento por Harris Bigg-Wither. Consenti, mas no dia seguinte rompi o compromisso. Parti para Bath com Cassandra, quando a febre amarela matou seu apaixonado no Caribe, como eu já disse.

-Vocês duas não se casaram?

-Não casamos.

-Depois da morte do seu pai, vocês se mudaram para Southampton?

-Sim, ficamos perto da marina de Portsmouth e, com essa proximidade, visitávamos nossos irmãos Frank e Charles, que serviam na Marinha e chegaram a almirante.

-Depois, foi para Chawton, ondeu viveu os últimos 8 anos da sua curta vida.

Em Chawton, meu irmão Edward podia nos abrigar em uma pequena casa da sua propriedade. Lá, retomei as minhas atividades literárias e foi revisado Razão e Sensibilidade. Um editor a aceitor, embora eu corresse o risco da publicação. Saiu com o pseudônimo “By a Lady”, eu obtive algumas críticas favoráveis e lucrei 140 libras esterlinas. Animada, lancei Orgulho e Preconceito e comecei a trabalhar no Mansfield Park. Tive êxito e parti para Emma.

-Você só escrevia, ou lidava com negócios também?

-Meu irmão Henry, que vivia em Londres, negociava com os editores. Certa vez, ele foi tratado pelo médico do Príncipe Regente. Este, quando soube que eu era a autora de Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito, solicitou que o meu próximo romance fosse dedicado a ele.

-Você fala de George IV, que assumiu o trono durante a enfermidade do pai, George III?

-Eu tinha meu pé atrás com as suas infidelidades, mas lhe dediquei Emma.

Os estudiosos falam que o renascimento do romance está relacionado com o florescimento da classe média que, diferentemente da nobreza, não foi educada com o latim e o grego. Que outro fator de importância foi a imprensa, que tornou possível a aquisição de livros pelas classes mais pobres.

-Houve os folhetins que saíam nos jornais, mas não no meu caso.

-Sabe-se que mais da metade dos romances e novelas, na Inglaterra, foram escritos por mulheres que, assim, conseguiam certa independência econômica, contudo, eram obras fracas, repletas de clichês. Você foi uma das exceções e, que exceção!

-Eu sempre defendo o romance como gênero de qualidade.

-Você morreu em 1817, com 41 anos de idade?

-Um mal me atingiu no momento mais vivificante da minha criatividade. Falam de Doença de Addison, nem sei o que é isso.

-Você viveu a passagem da Era Georgiana para a Vitoriana, a época das grandes transformações: a revolução agrária que embasaria a Revolução Industrial que se avizinhava com a Era Vitoriana. Viveu a expansão colonialista e as guerras napoleônicas, que outorgaram maior interesse à profissão militar com os heróis ingleses Lord Nélson e Duque de Wellington.

-Sim, mas eu tentei descrever, nos meus livros, a sociedade rural da Era Georgiana. - ressaltou com sua brilhante inteligência.

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