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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

2009 - o café do Balzac

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3839 Data: 01 de setembro de 2011

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MEIO-DIA EM PARIS

-Seguia eu pela rua da Assembleia, quando fui parado.

-Não me reconhece?

Olhei para aquela cabeça e a sua calva não me foi estranha.

-O almoço do Elio... Aquele em que fui porque o aniversariante pagou a conta e, como eu sigo os ensinamentos do rabino...

-Braulio Goffman!- exclamei.

-Rapaz, lembrei-me de você ontem, quando assisti ao filme do Woody Allen. Aquele sujeito, bêbado, em pleno século XXI, entrando num Peugeot, e, de repente, vendo-se numa festa em Paris dos anos 20, com Jean Cocteau, Cole Porter tocando...

-O que tem?...

-Quando olhei essa cena, lembrei-me das edições de O Biscoito Molhado em que o Dieckmann e o Elio Fischberg entravam naquela tenda da rua do Carmo e eram transportados para o passado com você.

-Você acha, Braulio, que eu devo entrar com um processo contra o Woody Allen por plágio?

-Eu acho que você também deve viajar para Paris dos anos idos, mas não com o Dieckmann e o Elio, que foram maus alunos de Francês, no Colégio Militar.

-Recordo-me que, no concorrido almoço de aniversário de Elio, você disse que fez a prova de Francês de vários colegas.

-Por 50 cruzeiros... Com a construção de Brasília, a inflação se assanhou e eu tive de subir o preço para 60 cruzeiros.

-Sabe de uma coisa, eu vou esperar as doze badaladas do meio-dia e partir para Paris.

-Serei seu intérprete, cobro apenas 200 reais a hora.

-Bráulio Goffman, as minhas viagens no tempo são dubladas, eu tenho um contrato com os Estúdios Herbert Richers.

-Tudo bem, dinheiro não é tudo. Eu lhe farei companhia. Afinal, depois do filme do Woody Allen, fiquei ainda mais curioso em ver e ouvir Cole Porter. Também quero esbarrar com o casal Scott e Zelda Fitzgerald, com Ernest Hemingway, com T.S. Eliot. Quero conhecer o restaurante onde James Joyce comia salsichas... E, acima de tudo, quero apreciar a Maria Pincel, vivida por Marion Cotillard, no filme, que foi amante de três dos maiores pintores da época: Picasso, Modigliani e Braque.

Bráulio não me deixava falar.

-Será difícil nós encontrarmos um Peugeot até o meio-dia... O Dieckmann não conhece algum colecionador que tenha um?... O diabo é ele querer ir conosco... Lá, Dieckmann vai trocar o Cole Porter por um Renault, o Picasso por um Citroen...

-Braulio, eu tenho a minha tenda da rua do Carmo para ser transportado no tempo, esqueceu?... E outra coisa: a Paris que faz a minha cabeça não é a mesma do cineasta. - fui incisivo.

-E qual é?

-É a Paris dos anos 30, mas do século XIX. Você não dava dez passos sem esbarrar num gênio: Chopin, Victor Hugo, Balzac...

-Claro! Esqueci dos textos em prosa e verso do meu livro da escola. Muitos autores eram daquele tempo: Musset, George Sand, Alexandre Dumas...

Alexandre Dumas e George Sand nos nossos livros escolares dos anos 60?...- perguntei-me, enquanto olhava com ceticismo para o Bráulio.

-Falta pouco para chegarmos lá?

-É ali. - apontei.

-Caramba! Tem o aspecto de uma casa de massagens. Ainda existe aquele problema com os botões, que erram os anos?

-Depois que o Dieckmann passou por aqui, consertou todos os botões.

-Lidando com os dispositivos de carros velhos desde adolescente, ele adquiriu uma grande prática com botões.- concluiu.

-Consegue enxergar nessa penumbra?

A minha pergunta, já dentro da tenda, foi recebida com outra:

-Você não consegue enxergar o cachimbo do ópio?

-O cachimbo do ópio é para fumar na volta, nós teremos de procurá-lo por lá mesmo.- esclareci.

Enquanto eu falava, encontrei o botão com o ano 1830 e o premi. Giramos eu e Bráulio num vórtice cinematográfico e recobramos a consciência num café.

-Estamos em Paris, Braúlio.- falei entusiasmadamente.

-Eu não consigo reconhecer Paris sem a Torre Eiffel.

Depois dessas palavras, ele ainda disse, desapontado, com a mão na cabeça:

-Pensei que recuperaria meus cabelos voltando quase duzentos anos no tempo...

-Olha – apontei – Alexandre Dumas e Balzac conversando àquela mesa.

Houve uma pausa.

-Bem magros, estão os dois.- constatei.

-Alexandre Dumas ainda não alcançou o sucesso de “Os três Mosqueteiros e “O Conde de Monte Cristo”, e Balzac ainda não conhece a Condessa Eveline Hanska. - comentou.

-Tenho poucos dias para escrever um romance e saldar parte das minhas dívidas, Dumas, por isso, eu não posso garantir a minha presença no teatro, hoje à noite, para defender o “Hernani”, do nosso amigo Victor Hugo.

-Ora, Balzac, faça como eu: não pague as dívidas.

-Na verdade, um litro de café me espera. Para justificá-lo, tenho que escrever durante toda a noite.

-Bem, Victor Hugo recebe, agora, a turma para traçar a estratégia de combate à velha guarda do teatro, na casa dele.- enfatizou Alexandre Dumas.

-Estou inteiramente do lado de Victor Hugo. Já soou a hora de varrer dos palcos franceses os teoristas clássicos e as regras dramáticas aristotélicas, como Goethe e Schiller fizeram na Alemanha.

-Temos de banir com o Ancien Régime, no teatro francês.- ergueu-se Alexandre Dumas impetuosamente.

-Isso, vamos levar um sopro de renovação às artes.

E completou Balzac, num tom menos vibrante:

-No entanto, ficarei em casa para terminar de escrever meu romance.

-Bem, Balzac, estou indo à casa de Victor Hugo. Até logo.

-Vamos segui-lo.- propôs o Bráulio.

Vi Balzac sacar do bolso um caderno de anotações, antes de sair atrás de Dumas, na companhia de Braulio Goffman.

Na casa do autor de “Hernani”, a agitação começava na porta e subia pela escadaria. Atores, atrizes, estudantes, boêmios, jovens poetas e amigos do casal Hugo se amontoavam.

-Aquela, ali sentada, em atitude contemplativa é a Adèle Hugo, não é?

-Sim, Bráulio. Perto dela, está o poeta Sainte-Beuve, também sentado. Aquele jovem de menos de 30 anos, agitado, é o grande Victor Hugo. Há outros artistas famosos aqui, como o poeta Alfred de Vigny, o ...

Chegando a boca perto do meu ouvido, Bráulio não me deixou prosseguir, cochichando:

-Eu surpreendi o Sainte-Beuve apertando a mão da mulher do grande Victor Hugo, cheio de segundas intenções.

-Eles são amantes, todo o mundo sabe, até o marido. Ele, por outro lado, assedia as costureiras, como o Elio Fischberg (*). Daqui a dois anos, Victor Hugo se tornará amante da atriz Juliette Drouet.

-Caramba! - eu vou gostar disto aqui, reagiu.

-Os antiquados transformarâo o espetáculo desta noite numa algazarra, e nós temos de nos preparar. -bradou o autor de Hernani.

-A cada comentário idiota gritado na plateia, eu e Saint Beuve, entre outro, responderemos à altura. Se houver bagunça...

-Claro que a bagunça virá, Dumas.- interrompeu-o Victor Hugo.

-Se isso acontecer, o nosso exército gritará slogans contra a arte enrugada, cantará canções revolucionárias. Como vamos guerrear contra os aristocratas do palco, mijaremos nos corredores, para chocá-los. - bradou o jovem Dumas.

-Podem contar comigo para mijar no corredor do teatro.- levantou a mão o Bráulio.

Puxei-o para um canto menos tumultuado, onde pudesse me escutar.

-Bráulio, nós não podemos esperar até o espetáculo de hoje à noite. Temos os nossos compromissos no Brasil de 2011.

-Poxa, eu queria ficar, porque a coisa vai ficar boa. Mas você tem razão.

-Mesmo reconhecendo a importância dessa noite para a implantação do romantismo no teatro francês, preferiria ir a um recital de Chopin. Mas temos, como eu disse, de retornar para o nosso século.

-Hora, então, de procurarmos um cachimbo de ópio.

-Se não encontrarmos o ópio, Bráulio, tentaremos o café do Balzac.

(*) Encontramos o ente assediador que garantiu ser coisa do passado, pois hoje só utiliza alfaiates.

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