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quarta-feira, 27 de junho de 2012

2171 - o estranho mundo do Biscoito Button


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3971                                         Data: 18 de junho de 2012
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LUÍS XALULU NO SABADOIDO

Mal cheguei à casa da Gina, para mais uma sessão do Sabadoido, fui fotografado por meu sobrinho. Como ele tocava repetidamente na tela do seu celular estalando de novo, perguntei-lhe se fazia photoshop.
-Ele o envelhece. - avisou-me a Gina, enquanto seu filho exibia um sorriso de sadismo.
. Reportei-me ao dia em que, escarafunchando o meu celular e sabendo das minhas limitações com a tecnologia de ponta, afirmou que eu tinha uma Ferrari e não sabia acelerar. Agora, meu sobrinho não só acelerava como envelhecia os retratados.
-Pronto; aqui está o Carlinhos com 80 anos de idade. - concluiu, mostrando a minha foto retocada.
-Daniel, precisava sumir com os meus cabelos para me deixar mais velho?- protestei.
E prossegui:
-O barbeiro me garantiu que a minha erosão capilar não avançará mais pela minha cabeça.
-Carlão, eu envelheci a minha mãe, a Roberta...
-E o Cláudio? - quis saber.
-Não precisava.
E continuou com a sua listagem até concluir que estava difícil me envelhecer.
-Mas não é fácil mesmo, Daniel, os maquiadores de Hollywood levaram horas para deixar o Brad Pitt mais velho no filme baseado num conto de Scott Fitzgerald, “O Estranho Mundo de Benjamim Button”.
Enquanto conversávamos, as rolinhas pousavam nas proximidades da porta aberta da cozinha e caminhavam pelo chão.
-As rolinhas reclamam por mais alpiste. - ergueu-se o Cláudio da cadeira para providenciar a refeição matinal delas. Gina, por outro lado, foi tratar dos afazeres domésticos.
-Faz cinquenta anos que o Brasil se tornou bicampeão do mundo, no Chile e a ESPN mostrou, numa reportagem de rua, que poucas pessoas conheciam o Amarildo.
-Amarildo, que substituiu o Pelé e fez gols nas horas em que mais se precisava. - adicionou o Daniel, leitor de obras sobre as Copas do Mundo.
-Há poucos dias, Daniel, morreu o Ivan Lessa, que disse que, de quinze em quinze anos, o brasileiro esquece o que aconteceu quinze anos atrás.
-Pois é, Carlão, a Copa do Mundo do Chile aconteceu há cinquenta anos. - justificou com o ar galhofeiro.
Mudei de assunto:
-Daniel, viajei nesta semana, e se acumularam e-mails na minha caixa de correspondência internética, alguns desses e-mails o meu computador não abre...
-Pode usar o meu cybercafé.
Depois de uns quarenta minutos acessando mensagens eletrônicas sobre os mais diversos assuntos, escutei um rumor que indicava o início dos trabalhos no Sabadoido. Depois, as vozes do Daniel e do Luca se sobressaíram.  Senti sede, arranquei o meu pen drive espetado na torre do computador e fui para a cozinha. Lá, esbarrei com o meu sobrinho, que retornava para dentro de casa.
-Olha o Luca envelhecido. - disse, mostrando o visor do seu celular.
-Ficou careca também. Ele se parece com uma pessoa conhecida, mas não me recordo quem.
-Foi o que todo o mundo disse, Carlão.
-Com quem o Luca velho está parecido?... - matutei.
-Com quem? - instigou-me.
-Com Demóstenes Torres, não, pois o Luca não conhece nem o Biquinha, quanto mais o Cachoeira.
Desisti de identificar a semelhança e rumei para a sessão do Sabadoido. Lá, a Gina e o Luca mantinham um diálogo sobre seguro de carros que se estendeu por causa dos detalhamentos. Como era um assunto que não despertava a minha curiosidade, abstraí-me e pensei no livro que a Rosa Grieco me dera com as críticas de D.H. Lawrence sobre a “Literatura Clássica Americana”, nome da obra.
Escreveu o escritor britânico, travestido de crítico, que “Há uma voz nova nos velhos clássicos norte-americanos. O mundo preferiu não ouvi-la e veio com essa conversa de histórias infantis”. Acertou em cheio. Lembro-me de uma colega de trabalho, de cultura superficial, leitora de best-seller, que, ao ver na minha mesa o “Moby Dick”, esboçou um sorriso debochado. Apesar do calhamaço de 750 páginas, ela julgou que fosse uma história infantil.
Dirimidas as dúvidas sobre as tecnalidades do seguro de carro, Luca voltou-se para mim:
-Nas minhas conversas com o Seu Amaury sobre a redação dos jornais, ele me disse que viu o Nélson Rodrigues uma vez ou outra.
-Se o meu pai estivesse vivo, eu lhe perguntaria sobre as reportagens que o Hélio Fernandes escreveu, em 1962, no Diário de Notícias, sobre o “roubo” de manganês perpetrado pelo pai do Eike Batista. - manifestei-me.
-Eu recebi, ontem, o e-mail do artigo que o irmão do Millor escreveu sobre o Eliezer Batista.
-Em 1962, o meu pai trabalhava no Diário de Notícias. - afirmei.
-Carlinhos, você que conhece bem o Nélson Rodrigues, sabe como surgiu a expressão “anjo pornográfico”?
-Soube, pela primeira vez, no título da biografia do Ruy Castro. - respondi ao Luca.
-Na própria coluna do Ruy Castro, na Folha de São Paulo, ele conta como chegou ao “anjo pornográfico”.
Ora lendo o mencionado texto do biógrafo, ora comentando o que já lera horas antes, informou que o “anjo pornográfico” era uma expressão do próprio Nélson Rodrigues que, numa entrevista, dissera que via os casos de amor pelo buraco de uma fechadura, como um anjo pornográfico.
-Fascinado, Ruy Castro descobriu ali o título da biografia, que elaborava e informou ao editor que concordou prontamente, mas pediu segredo.
Em seguida, Luca folheou recortes de jornal e cartas manuscritas pela Rosa Grieco.
-Vagner não vem hoje. - quebrou o Cláudio o seu silêncio.
-Aqui tem mais coisas... - murmurou o Luca, peneirando os escritos que traria à baila.
Mesmo mais distante do que eu dos jornais do Luca, meu irmão viu a caricatura do Noel Rosa.
-Noel Rosa. - disse.
-Vem mais uma biografia do Noel Rosa, mas são quantos anos de atividade do Noel?
Luca perguntou, Luca respondeu.
-Cinco, seis anos. Não há muito o que contar. É verdade que Noel compôs mais de 300 canções, deixando uma obra maravilhosa.
-Noel Rosa ficou conhecido como o filósofo do samba, porque ele elevou o nível das letras a um patamar elevado. - comentei.
-Noel também conhecia o samba dos morros. - frisou meu irmão.
Nesse instante, Daniel e Gina surgiram, emperiquitados, prontos para sair.
-Amanhã, Carlinhos, lá no aniversário da Ana Clara. - disse a Gina a caminho do portão da casa.
Mal saíram os dois, apareceu o Luís Xalulu.
Daniel, do outro lado do muro, esticou-se todo para o seu rosto aparecer para nós, e bradou:
-Deixo o Luís Xalulu como meu substituto.


terça-feira, 26 de junho de 2012

2170 - aprender alemão 2


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3970                                           Data: 17 de junho de 2012
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84ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE

-Com a desilusão amorosa, a sua criatividade irrompeu como um vulcão.
-Eu diria que, sem as amarras jurídicas, pude atender à minha vocação.
-Foi quando você saiu de Wetzlar e se estabeleceu em Weimar?
-Sim; escrevi Die Leiden des Jungen Werther, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, poemas como  Prometeus, peças de teatro, algumas curtas, e dei início ao Faust, “Fausto”.
-”Fausto”, a obra-prima da literatura alemã. - interferi, extasiado.
E prossegui:
-Como “Werther”, eu conheci “Fausto” através da música. Essa obra motivou duas grandes óperas, “Mefistófoles”, de Arrigo Boito, e “Fausto” de Gounod. Quando eu tinha 15 anos de idade, ouvi, pela Rádio MEC, uma récita do “Mefistófoles”, no Teatro Municipal, com o soprano Magda Oliviero no papel de Margarida e fiquei embevecido.
-E não se interessou em ler o meu livro, nessa época?
-Li anos depois. As traduções do “Fausto” eram criticadas porque, além da dificuldade em verter os seus versos para o nosso idioma, eram traduções de segunda mão, ou seja, recorria-se aos tradutores franceses. O eminente poeta português, Antônio Feliciano de Castilho, traduziu o “Fausto” do francês para a língua de Camões. Eu já estava com mais de 25 anos de idade quando lançaram uma tradução diretamente do alemão para a nossa língua, que recebeu elogios comedidos. Comprei o livro, li, mas lamentei o fato de o tradutor não se aprofundar mais nesse trabalho.
-Depois, falaremos mais do “Fausto”.
-E o seu começo em Weimar, Goethe?
-Carlos Augusto, em 1775, herdou o governo de Saxe-Weimar-Eisenach e me convidou para conhecer a capital do ducado. Aceitei, confesso, porque pretendia fruir os prazeres da corte. O príncipe Carlos Augusto, no entanto, me nomeou ministro e, assim, fiquei comprometido com alguns setores do governo. Exerci, por isso, serviços administrativos como inspecionar minas e irrigação do solo.
-Foi nesse período que você conheceu outra Charlotte?
-Charlotte von Stein, amor que resultou em duas mil cartas e bilhetes.
-Daria para escrever mais um romance epistolar. - brinquei.
-Com o trabalho político-administrativo do dia a dia, ainda encontrei tempo para a poesia. Trabalhei em outra obra, esta em prosa, “Ifigênia em Táuride”.
 Em seguida, voltou-se para mim com a expressão irônica.
-Já sei: conheceu primeiramente a ópera e depois leu o livro.
Eu, de fato, conhecera a ópera de Gluck, mas não havia ainda lido o romance de Goethe; limitei-me a sorrir, apenas.
Ele prosseguiu com as obras da sua lavra naquele período.
-Egmond...
-Que inspirou a “Abertura Egmond”, de Beethoven. - adicionei.
-Torquato Tasso...
-Que inspirou o poema sinfônico “Tasso”, de Franz Liszt.
-”Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister e os poemas Wandrers Nachtlied, Grenzen der Menschheit e Das Göttliche.
-Algum desses poemas é “O Aprendiz de Feiticeiro”?
-Você deveria estudar alemão. - sugeriu.
-O seu poema ”O Aprendiz de Feiticeiro” inspirou o scherzzo do compositor Paul Dukas, com o mesmo nome, que, por sua vez, se transformou num dos maiores desenhos animados já feitos, do filme “Fantasia”, de Walt Disney, protagonizado pelo Mickey Mouse.
-Eu escrevi “O Aprendiz de Feiticeiro” em 1797.
-Mas certamente muitos dos poemas que você citou foram musicados por Franz Schubert e Robert Schumann, os dois maiores criadores de lied que existiram.
-Estamos, neste pequeno resumo das minhas memórias, em 1780.
-Isso.- confirmei.
-Em 1780, um pouco antes, um pouco depois, a minha curiosidade intelectual se voltou para as ciências naturais: geologia, botânica, osteologia...
-Lembro-me que, quando estudei botânica, na 2ª série ginasial, a professora falou que a definição de flores era sua: folhas modificadas. Sei que havia maiores complexidades, mas ela se restringiu a isso. - interrompi.
-Você se recorda de eu ter falado em Johann Gottfried Herder?
-Sim, o teólogo que lhe abriu as portas para a leitura de Homero, Shakesperare e Ossian.
-Correto; eu e ele nos tornamos membro de uma sociedade secreta, os Illuminati.
-Illuminati?... - expressei estranheza.
-Era a Maçonaria Iluminada, que alcançou grande prestígio entre os intelectuais europeus. O governo da Baviera, temendo conspirações, proibiu as reuniões dos Illuminati.
-E o seu trabalho na administração pública de Weimar e seu relacionamento com Charlotte von Stein?
-Naquela altura da minha vida, eu entrei em crise, tudo me entendiava; precisava renascer como as águias que envelhecem.
-E o que você fez?
-Sem avisar a ninguém, e usando um pseudônimo, pois fiquei conhecido na Europa com “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, parti para a Itália.
-Partiu em 1786?
-Sim, e fiquei na Itália durante dois anos; passando por Verona, Veneza, Lago di Garda, Roma. De Roma, onde fiquei mais tempo, visitei Nápoles e Sicília.
-Infelizmente, ainda não li as suas impressões sobre a Itália, mas soube de leitores que reclamaram do fato de você dedicar muitas páginas à observação das pedras.
-Eu olhava as pedras italianas como um estudioso de geologia.
-No Brasil, José Bonifácio e a Princesa Leopoldina de Habsburgo mantinham longas conversas acadêmicas sobre as pedras brasileiras.
-Na Itália, fascinaram-me as construções e obras de arte da antiguidade clássica e renascentista. Encantaram-me, sobremaneira, as obras de Rafael e Andrea Palladio.
-Com certeza, você não parou de criar.
-Desenhei muito, eu tinha de reproduzir aquelas belezas no papel. Como fui grato ao meu aprendizado de desenho, xilografura e gravura em metal.
-Um economista brasileiro, Roberto Campos, citava por diversas vezes uma anotação sua, quando um guia turístico não soube explicar de maneira cristalina uma pintura, recorrendo a frases sem sentido.
-Lembro-me desse caso; quando pediram ao guia para ser mais claro, ele disse: “Aqui, na Itália, para se entender alguma coisa, é preciso de um pouco de confusão.” Eu anotei, prontamente, essa frase.
-Quando você voltou a Weimar, depois da longa ausência, conheceu a mãe do futuro filósofo do pessimismo, como ficou conhecido, Johana Schopenhauer? - cuidei de não colocar veneno algum nas minhas palavras.
-Mãe e filho não se entendiam muito bem, embora ela fosse uma animadora cultural, como se diz hoje.
-Depois, você conheceu Christiane Vulpius, uma jovem de 23 anos, de origem simples e sem colocação na sociedade burguesa.
-Casamos em 1806 e só nos separamos quando ela faleceu, em 1816.
-No ano do seu casamento, as tropas francesas entraram em Weimar. Foi quando se avistou com Napoleão Bonaparte, e ele  disse sobre você: “Aqui está  um homem.”
-Isso foi em 1808, no Congresso de Erfurt, quando ele me condecorou.
E mostrou-se aflito:
-Tenho de partir e não falei de Schiller.
-Outro gênio da literatura alemã. - frisei.
-Infelizmente, ele morreu cedo, o que me arrasou, mas com o seu incentivo, retomei a escrita do “Fausto”. Após 16 anos de trabalho, finalizei o livro em 1830, dois anos depois, em 1832, morri.
-Morreu só fisicamente. - disse, enquanto se volatizava à minha frente.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

2169 - aprender alemão

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3969                                       Data: 16 de junho de 2012
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84ª VISITA À MINHA CASA

-Um gênio me visita. - disse, embevecido, quando vi Goethe à minha frente.
-Apenas estudei muito.
-A transpiração contribui muito com a sua genialidade, porém a sua inspiração foi maior, se é que as duas podem ser medidas, Goethe.
-Goethe com “oe”.- frisou.
-Se os alemães se confundiam na pronúncia do seu sobrenome, imagine eu.
-Meu nome é Johann Wolfgang von Goethe, mas chamavam-me de Goethe.
-Você nascem em 1749, na Alemanha?
-Em Frankfurt am Main. Eu era o filho mais velho de Johann Gaspar Goethe e Catharina Elizabeth Goethe. Meu pai era jurista, mas vivia dos rendimentos da fortuna dela; minha mãe pertencia a uma família abastada, Ela estava com 18 anos de idade quando eu nasci, teve outros filhos, só eu cheguei à idade adulta.
-E como se deu o início da sua formidável cultura?
-Fui educado inicialmente pelo meu pai, depois, vieram os tutores bem remunerados.  Estudei francês, inglês, italiano, latim, grego, ciências religião, desenho e equitação.
-Você também estudou música a ponto de, anos depois, desfrutar da amizade de Beethoven, e do menino-prodígio Mendelssohn tocar para você.
-Aprendi a tocar piano e violoncelo.
-E o aprendizado de literatura?
-Começou na minha infância com as histórias que a minha mãe me contava e da leitura da Bíblia.
-Seu pai possuía uma biblioteca que impressionava.
-Estava longe de dez mil livros.
-E quando você partiu para enfrentar o mundo?
-Com 16 anos de idade, meu pai me enviou para a Faculdade de Direito de Leipzig. Lá, mostrei pouco interesse nos estudos jurídicos, e dediquei-me ao desenho, xilogravura e gravura em metal. Jovem e longe de casa, frequentei os teatros e as noites de boemia. Caí doente e tive de voltar para casa.
Parecia que a sua saúde era frágil, haja vista que nenhum dos seus irmãos vingou, mas você era possuidor de uma grande energia criativa e viveu 83 anos, clamando por luz, mais luz.
Retornei à casa dos meus pais para recuperar a saúde. Enquanto isso, interessei-me por alquimia e astrologia. Em 1769, com 20 anos, publiquei minha primeira antologia, Neue Lieder e escrevi minha primeira comédia, Die Mitschuldigen.
-E os estudos de direito?
-Não foram abandonados, retornei às aulas, mas agora em Estrasburgo, na Alsácia. Lá, conheci Johann Gottfried Herder, teólogo e conhecedor das artes e da literatura.
 -Ele enriqueceu o seu conhecimento.
-Sim, pois me conduziu às leituras de Homero, Shakespeare, Ossian, e ainda me colocou em contato com a volkspoesie.
-A volkspoesie?- estranhei.
-A poesia popular.
-Ah, sim.- entendi, reportando-me ao volkswagen, o carro do povo.
-Com 20 anos de idade, ainda não nutria paixão alguma por uma bela moça?
-Claro que sim, mantive um romance com Friederike Brion, a quem dediquei muitos versos líricos que foram enfeixados num pequeno volume chamado Sesenheimer Lieder.
-E os estudos jurídicos tão cobrados pelo seu pai?
-Em 1771, obtive a licenciatura na faculdade de direito.
-Não tinha mais motivo para ficar em Estrasburgo?
-Retornei à minha cidade natal, Frankfurt am Main para trabalhar num escritório de advocacia, mas minha atenção convergia para os poemas. Escrevi, nesse mesmo ano, a peça de teatro “Geschichte Gottfriedens von Berlichingen mit der eisernen Hand.”
-Por favor, Goethe, qual o nome dessa peça no meu idioma?
-”O Cavaleiro da Mão de Ferro”, abreviando; essa peça foi importante.
-Teve a importância de ser a primeira obra do movimento Sturm und Drang, que significa Tempestade e Ímpeto.
-Os livros escolares de literatura ensinam que o movimento surgido nas terras de língua alemã, Sturm und Drang, deflagraram o movimento romântico nas artes em todo o mundo.
-E o que diziam os livros escolares?
-Dizem que, no fim do século XVIII, surgiu na Alemanha e no Reino Unido, um movimento que será uma reação à tirania do classicismo, que foi conhecido como Romantismo. Com o romantismo, o “eu”, como entidade autônoma, é alçado além dos estereótipos e das regras universais classicistas. O  romantismo  destaca o sentimento e a aventura da imaginação, e faz do poeta um explorador de mundos diferentes e exóticos. O romântico opõe à razão os sentimentos, o sentir profundo e arrebatado.
-Os livros didáticos fizeram uma resenha razoável. Mas não falaram no amor para o romantismo.
-Falaram sim; disseram que o amor, para os românticos, tinha um papel fundamental, que o amor é como uma tormenta, torna-se logo impossível, faz sofrer. Para os românticos, o amor é impossível.
-Realmente.
-Quando o amor o fez penar, Goethe?
-Primeiramente, devo contar que, a pedido do meu pai, mudei-me para Wetzlar e fui trabalhar na sede da corte da justiça imperial. Lá, conheci Charlotte Buff, uma linda moça, que se identificava inteiramente comigo; gostava de poesia lírica e de música, cantava no coro da igreja, numa posição de destaque. Recitei versos para ela e tocamos piano juntos, no meio da criançada, ou seja, dos seus irmãos.
-E ela era noiva de Albert?
-Ela era noiva de Johann Christian Kestner, que trabalhava com as leis, juntamente comigo, com a diferença que ele nasceu para o mundo jurídico.
-Quando falei Albert, eu me referia à ópera de Massenet que foi baseada na história desse amor.
-Charlotte vivia numa família numerosa e o seu pai lutava com duras dificuldades financeiras para manter todos bem. O casamento da filha com um pretendente que traria segurança financeira era uma dádiva do céu para ele.
-E Charlotte? Creio que era impossível que ela, sendo inteligente, resistisse à sedução de um poeta, músico, desenhista...
-Ela gostava de mim, mas preferiu a estabilidade da família e a manutenção da palavra dada.
-Você se desesperou com a separação?
-Escrevi um livro epistolar, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, e sublimei o meu desespero com o suicídio de Werther.
-O seu livro provocou mais suicídios do que a mais bela mulher do mundo, é o que dizem os estudiosos.
-Havia muitas pessoas sofrendo com um amor impossível, deveriam, como eu, escrever o seu “Werther” e superar essa fase tenebrosa das suas vidas.
-O seu livro se tornou um sucesso em toda a Europa e a vestimenta de Werther, descrita no livro, se tornou moda entre os enamorados.
-Fiquei conhecido em todo canto, mas o importante, para mim, é que o meu pai se convenceu que eu não nasci para ser jurista.
-Depois que conheci a ópera, que muitos tenores adoram interpretar, procurei saber tudo, ou quase tudo, sobre o verdadeiro Werther, aquele que não se matou.
-Parti, depois desse amor contrariado, para Weimar. - disse Goethe.


quarta-feira, 20 de junho de 2012

2168 - carta sem espinho


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3968                                      Data: 10 de junho de 2012
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CARTA DA LEITORA

Amigo Carlos,
Sugiro que leia o anexo (1), aprendi o termo com o tal livro inglês do inglês Borrow, o fulano era da pá virada (ainda se usa a expressão?) (2), foi vender Bíblias protestantes na Espanha nos primórdios do século XIX, quando os ibéricos eram católicos até a medula. Escapou de ser fuzilado, enforcado ou até assado.
Noutro livro se deu bem (The Romany Rye) vivendo com os ciganos. Noutra mancada, aprendeu galês para visitar o país irmão (The Wild Wales) e quase foi preso como espião, quem poderia crer que alguém aprendesse tal idioma sem espúrias intenções?
Fiquei deveras sensibilizada com a nímia gentileza que me foi presenteada, na pesquisa sobre a minha curiosidade, já velha de 15 anos (desde 1997). (3) Redobrou o apreço que lhe dedico. E ainda veio com a gravura do PRÉ-RAPHAELITA (sic) que admiro, gosto demais do Rossetti (e também do coleguinha Millais).
Vossência é um mago do teclado, não tenho capacidade para manusear apetrechos, sei lá se batucando de leve iria sentir o prazer que sinto escabichando alfarrábios, incunábulos e palimpsestos, é como se estivesse saboreando alcachofras pétala a pétala.
A história da cançoneta é variegada (4), até manchas verdes sugerem amassos na grama, a falta que fazia o Cartago em Del Castilho (5). Seu empenho em descerrar meus olhos é cativante. Sei o quanto é atarefado perseguindo táxis e invadindo superlotados vagões de metrô. Ser-lhe-ei grata enquanto os rios correrem para o mar! Ixe Maria, já comecei a tripudiar...
Como diria a proverbial D.Isaura: “Quem sai aos seus não degenera.” Passemos à lauta fornada de BMs:
BM 3853 – Mea culpa, sempre atribuí o “arrecua os arfes” ao Neném Prancha, o Arubinha não conhecia de beca nem Meca (6).  O Isaac Newton mereceu ser chamado, em Roma, de Isacco, batizando uma rua em que fui quase atropelada por desvairados ciclistas em competição esportiva (7), morte grandiosa para uma suburbana: seria enterrada ao lado do Keats (“A thing of beauty”, etc). BM 3860 – Não vi o “No Velho Chicago”, porque não era admiradora do Tyrone Power nem do Ameche (só valeu em “Cocoon” e “Trocando as bolas”), por via das dúvidas (outra expressão paleolítica) trabalhava também Alice Faye? (8).
Dos filmes dedicados a “catastres sem arfes”, revi na máquina de fazer doidos (9) “São Francisco, Cidade do Pecado”, não pelo Clark Gable, que só ficou potável como Rhett Butler, mas pelo Spencer Tracy, Jeanette MacDonald operatizando e causando tremores (10). Achei espetacular a encenação do terremoto, fiquei apavorada com o desenrolar do sismo. Até recusei convite de amiga Embaixatriz (sic) (já é falecida) em Santiago do Chile, pagava passagem e me hospedava na Embaixada, aleguei temer os constantes terremotos às margens do Mapocho. Ela garantiu que eram só “tremblores”, eles lá e eu aqui, dispensei-os (11).
Apresento minhas despedidas com fraternais amplexos.
R.

(01) O anexo a que se refere  a remetente é uma crônica do Pasquale Cipro Neto, na Folha de São Paulo, sobre a CPI do Carlinhos Cachoeira, quando foi bradada a palavra “alcagueta”. Basta reproduzirmos um parágrafo apenas dessa crônica para entendermos o início da carta em questão:
“Sabe qual é a origem de “alcaguete”? Recorramos ao “Houaiss”, que diz que o termo vem do espanhol “alcahuete”, que, por sua vez, vem do árabe “al-qawwad”, que significa Elaiá! Significa “alcoviteiro” (modernamente “cáften”, que, na boca do povo, lá no Mooca e em todo o Brasil, vira “cafetão”). Quem serão as prostitutas que ficam sob a “´égide” desses cafetões? Sabe Deus! E que Deus nos proteja! É isso.”
Mas as frases manuscritas pela Rosa Grieco, à margem dessa crônica, esclarecerão tudo:
“Li no saboroso “The Bible in Spain” de George Borrow que “alcahuette” era o olheiro dos contrabandistas que alertavam sobre a vinda dos policiais, nada a ver com cáftens. O escritor George Borrow é ótimo, li mais duas obras dele. É isso aí, Rosa.
(02) Histórico: quando a pá está virada para baixo, voltada para o chão, não tem utilidade, por isso “pá virada” significava vadio, vagabundo. Com o passar do tempo, a expressão mudou de sentido, passando a designar um aventureiro corajoso. Como notou a Rosa, a expressão é pouco usada atualmente.
(03) Trata-se da canção “Greensleeves”. Alguns dizem que ela surgiu na Era Elizabethana, mas Shakespeare, na comédia “As alegres comadres de Windsor”, a cita, o que nos leva a crer que foi composta no reinado de Henrique VIII.
Muitos compositores a reverenciam musicalmente, como os Beatles em “All you need is love”.
(04) Há quem vislumbre conotação sexual nessa belíssima canção de autor desconhecido.
(05) Cartago é um motel, edificado há poucos anos, em Del Castilho. Antes, alguns casais se encontravam no campo de futebol da pracinha “Sangue e Areia, que não tinha grama e iluminação noturna.
(06) Muitas frases futebolísticas foram atribuídas ao Neném Prancha, por exemplo: “Se macumba desse resultado, o campeonato baiano terminaria empatado” é do João Saldanha. Da autoria de Neném Prancha, todos concordam, é esta frase: “o goleiro deve treinar tanto que tem de dormir com a bola, se for casado, deve dormir com as duas.”
(07) Rosa faz alusão ao BM 3854, o que recebeu o título “Padeiro assa Londres”. O número dos BMs citados, aliás, estão diminuídos em 100, um erro que ocorreu quando meu computador voltou do conserto. A correção só foi realizada nesta semana, quando suspeitei que algo estava estranho na numeração.
(08) Alice Brady, e não Alice Faye atua nesse filme, de 1937, dirigido por Henry King, e ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Morreria dois anos depois com apenas 48 anos de idade.
(09) Foi o humorista Sérgio Porto, que teve programas televisivos, que chamou a televisão de máquina de fazer doido, nos anos 60.
O filme de Fellini, “Ginger e Fred”, mostra o quanto o Sérgio Porto, também conhecido como Stanistaw Ponte Preta, estava certo.
(10) Jeanette MacDonald exibiu os seus trinados principalmente nos filmes em que atuou com o barítono Nelson Neddy. Era uma dupla que se restringia à arte cinematográfica, apenas, o que não era o caso do tenor Mario Lanza. Este tinha condições de se apresentar num teatro de óperas, mas não conseguiu porque ficou estigmatizado como cantor de cinema. Muitos anos depois de morto, viveu apenas 38 anos, a sua voz foi enaltecida por Placido Domingo e Luciano Pavarotti.
(11) Rosa Grieco não quis ser a Mary Graham do século XX. A inglesa escreveu sobre o terremoto que viu no Chile e foi citada numa discussão científica, em Londres, até por Charles Darwin.

terça-feira, 19 de junho de 2012

2167 - um piano para dois

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3967                                  Data: 09 de junho de 2012
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83ª VISITA À MINHA CASA
PARTE II

-Joaquim Antônio Callado era um negro bonito?
-Sim, mas casado e não cuidava da saúde, trabalhando incansavelmente. Ele, na verdade, antes de “Flor Amorosa”, dedicou-me uma polca, em 1869, “Querida por Todos.”
-Com vinte e dois anos, a sua beleza deslumbrava a todos os músicos...
-E engenheiros – interrompeu-me - Deixei-me seduzir por João Batista de Carvalho Jr., formado em engenharia, que frequentava a casa do meu ex-marido.
-Vocês, então, já se conheciam?
-Sim, o que levou os maledicentes a insinuarem que a nossa relação era antiga.
-Nem imagino como ficou sua situação.
-Os olhares preconceituosos dirigidos a mim, porque eu era separada, tornaram-se hostis com essa suspeita de uma relação extra-conjugal com o engenheiro João Batista. Para mim, caiu do céu a proposta que ele recebeu de trabalhar na Serra da Mantiqueira, era a oportunidade de eu encontrar a paz. Arrumei a minha mala e a do João Gualberto, e o acompanhamos. Foram dois anos longe do Rio de Janeiro, quando retornamos, em 1875, o clima de rejeição persistia.
-Nasce, então, a sua filha com ele?
-No ano seguinte, 1876, nasceu Alice Maria. Afastamo-nos de novo do Rio de Janeiro, mas o que parecia impossível para mim aconteceu: as coisas pioraram. João Batista, galanteador incorrigível, não me deixava dúvidas, no espírito, de que me traía. Peguei Gualberto pela mão e o abandonei com nossa filha, voltando para o Rio de Janeiro.
-Onde foi morar, Chiquinha Gonzaga?
-Num casebre em São Cristóvão.
-Num casebre?...
-Eu estava, porém, próxima do Centro da cidade e, assim, participei de vez do ambiente musical do Rio de Janeiro.
-Voltou a dar aulas de piano?
-Sim, e entrei para o conjunto criado por Joaquim Antônio Callado, Choro Carioca, composto de flauta, cavaquinho e dois violões, que tocava em festas.
-Com você, o conjunto de Callado ficou com uma pianista.
-Pianista era quem executava Chopin, Mozart, Beethoven, Brahms, eu era chamada de pianeira. Na minha época, quem tocava música popular era pianeiro, um modo de depreciar os instrumentistas que não participavam de concertos.
-No nome desse conjunto, aparece pela primeira vez a palavra “Choro”.
-É verdade; nós interpretávamos chorosamente tangos, polcas, valsas, assim, as formas musicais europeias recebiam um molho carioca. Depois, a abordagem de Callado evoluirá para um novo gênero musical.
-O choro é um gênero musical de quase 150 anos que, ainda hoje, se renova. Está mais vivo do que nunca.
-Eu tenho orgulho de me encontrar entre os pioneiros.
-Joaquim Antônio Callado nos deixou prematuramente, devido a tuberculose, mas a sua importância é realçada por todos os que conhecem a nossa música.
-Devo-lhe muito.
-Eu ouvia a marcha fúnebre que você compôs para a morte dele na Rádio MEC, infelizmente, nos últimos anos, nem mais nessa estação de rádio tem tocado mais a sua homenagem. - lamentei.
Notando que os olhos de Chiquinha Gonzaga se tornaram melancólicos, mudei para o tom maior:
-Vamos falar de coisas alegres. E o grande sucesso que foi a polca “Atraente”?
- Eu tinha 29 anos de idade. Em fevereiro de 1877, foi publicada a primeira edição da partitura e, em novembro desse mesmo ano, a décima quinta edição.
-Esse sucesso estrondoso chegou, evidentemente, até a casa dos seus pais. - mostrei curiosidade.
-Sim, as partituras da minha polca eram anunciadas pelos pregoeiros, nas ruas e o meu pai se irritava, pelo que eu soube, porque o meu nome estava ligado à música “indecente” e “chula”. As partituras que ele podia rasgar, rasgava.
-Com todo o sucesso, as barreiras à sua frente ainda subiam?
-Sim, era inconcebível para a sociedade brasileira que eu, sendo mulher, trabalhasse para sobreviver. E piorava ainda o fato de a minha atividade não ser reconhecida como profissão e sim, condizer com boêmios e vagabundos.
 -Esse período que juntou você, Joaquim Antônio Callado, Henrique Alves de Mesquita e outros músicos, é considerado um grande momento de efervescência cultural. Buscava-se uma música identificada com o Brasil e, assim, tocava-se o maxixe, o tango brasileiro... o choro, que ganhava  mais adeptos, os chorões...
-Porém, recrudesce o preconceito da elite, que venera as coisas da Europa, contra nós. Acusam-nos de atrasar culturalmente o Brasil. - manifestou-se a Chiquinha Gonzaga.
-O sucesso deu-lhe mais força para lutar, com certeza, contra esses retrógrados enfatuados?
-Tornei-me uma das personalidades mais conhecidas do Rio de Janeiro, odiada por muitos, admirada por alguns.
-Odiada por muitos?... Não seria exagero?
-Eu me encontrava quase todas as noites em cafés, confeitarias, lugares inacessíveis às mulheres de família. Não me perdoavam, mas eu tinha de ganhar a vida com a música.
-Você passou a compor prolificamente?
-Dedicava-me também a musicar peças para o teatro de revista.
-Teatro de revista ainda tem hoje, Chiquinha, um ranço pejorativo. Sua música para o teatro iria para a Broadway, se fosse nos Estados Unidos.- interferi.
-Minha primeira experiência ocorreu em 1883, quando musiquei “Viagem ao Parnaso” de Arthur Azevedo. Porque eu era mulher, o empresário não montou o espetáculo musicado. Fui em frente e iniciei a minha carreira de maestrina, em 1885, com “Corte na Roça”.
-Li que era uma opereta de um ato que, pela crítica, só se salvou pela sua música. “Verdadeiro primor de graça, elegância e frescura.” - escreveu um dos críticos.
-Eu consegui uma razoável fonte de renda com essas composições para o teatro.
-Você foi chamada de “Offenbach de saias”. “Forrobodó” foi um sucesso absoluto, mais de 1500 apresentações.
-Isso foi bem depois. - disse com um sorriso.
-Você frequentou as reuniões com os intelectuais abolicionistas e republicanos, como José do Patrocínio, Lopes Trovão, Paula Nei, Olavo Bilac. Houve problemas seu com o governo Floriano Peixoto...
-Eu compus a cançoneta “Aperte o botão”, uma sátira, recolheram a partitura, deram-me voz de prisão, mas me deixaram solta.
-Em 1899, você criou a primeira marcha-rancho...
Interrompeu-me cantando “Ó Abre Alas”.
 E prosseguiu:
Nesse ano, em 1899, eu tinha 52 anos, já era avó desde os 42, pois João Gualberto se tornou pai. Eu vivia sozinha, quando conheci João Batista Fernandes Lage, um português de 16 anos de idade. Nós nos gostamos, mas seria outro escândalo na minha vida unir-me a um jovem. Lopes Trovão me aconselhou a usar um estratagema: perfilhá-lo. Segui o seu conselho;
-Você e o jovem João Batista viveram juntos por 36 anos, até a sua morte.
-Com a idade, eu já estava mais serena para viver uma vida amorosa.
-E o chamado “Escândalo do Palácio do Catete” em 1914?
-Houve uma recepção no palácio, no final do governo Hermes da Fonseca. Ouviu-se Franz Liszt, Gottschalk, Arthur Napoleão...
-Tudo bem convencional e elegante.
-Veio, então, a surpresa: a jovem esposa do presidente da República, Nair de Tefé, pegou um violão e tocou o “Corta-Jaca” da minha autoria. No dia seguinte, Ruy Barbosa, no Senado, furibundo, discursou.
-Eu tenho o discurso do Ruy Barbosa. - disse, enquanto abria um livro.
E li:
-”Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das boas maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê, do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de Wagner e não se quer que a consciência desse país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”
-Ruy Barbosa também não queria jogadores de futebol da seleção brasileira viajando no navio em que ele estava. - lembrou Chiquinha.
-E a sua luta pelos direitos autorais?
-Em 1913, quando viajava por Berlim, com João Batista, descobri partituras de obras minhas em lojas musicais, editadas sem minha permissão. Parti para a luta pelos direitos autorais dos artistas brasileiros.
-Depois de mais de 2 mil composições, você se recolheu em um apartamento na Praça Tiradentes para viver até os  87 anos de idade.
-Mas não deixava de ir ao SBAT brigar pelos nossos direitos.
-Um colega da SBAT escreveu sobre você.
E li:
-Conheci Chiquinha Gonzaga nos últimos anos de sua vida, sempre vestida de preto, com uma saia que lhe chegava aos pés, gola alta, pele encarquilhada, com quase noventa anos. Mas aqui, na SBAT, estava todos os dias, com esquisitices e rabugices respeitadas e toleradas por todos nós. Sentava-se numa cadeira e ficava a fiscalizar o trabalho dos nossos funcionários, como se administrasse sua própria casa. E, porventura, não era a sua casa?”
 -Grande Chiquinha. - exclamei, enquanto ela partia.

 

 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

2166 - piano para um

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3966                                       Data: 08 de junho de 2012
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83ª VISITA À MINHA CASA

-Francisca Edwiges Neves Gonzaga!- expressei o meu encantamento com a visita.
-Eu fui uma compositora ligada ao gosto popular, não me trate, por isso, tão formalmente.
-Se eu não citar o seu nome todo, não poderei dizer que a minha mãe também se chamava Edwiges, porém, com “h”.
-Com o meu nome, minha mãe homenageou dois santos: São Francisco e Santa Edwiges.
-Os animais e os endividados?
-Os animais endividados. - brincou Chiquinha Gonzaga.
-Você nasceu, em 1847, de uma mestiça pobre e solteira. Sua mãe temeu que o seu pai, com o posto de primeiro-tenente do Exército, parente do Duque de Caxias, não a reconhecesse como filha. Você correu o risco de ser entregue à Roda dos Expostos.
Cabe aqui um parêntese no nosso diálogo:
-A Roda dos Expostos foi introduzida no período colonial brasileiro e extinta no século XIX. A Roda dos Expostos preservava o anonimato daqueles que depositavam os bebês enjeitados. Houve crescentes tensões entre o poder local sobre a obrigação pública de contribuir financeiramente para a Santa Casa, e chegou ao fim.
-Mas como os bebês eram tratados, Chiquinha Gonzaga?
-Quase fui para a Roda, como se dizia popularmente, mas escapei. - reagiu com uma risada.
-Você sabia como era a Roda dos Expostos?
-Uma criança era criada por uma ama de leite até os três anos de idade. Essas amas recebiam um pagamento pelo serviço prestado. Havia casos de fraude, mães que colocavam o filho na Roda para, em seguida, se empregar como ama de leite e recolher um dinheirinho.
-E essas crianças?
-A instituição tentava empregar os meninos como aprendizes, e as meninas como domésticas. - explicou.
-Quase um dos maiores talentos musicais deste país se perdeu em serviços de criada. Ainda bem que o tenente-coronel José Basileu Neves Gonzaga a reconheceu como filha e tomou a sua mãe como esposa.
-Meu pai tinha princípios morais rígidos, assumia os seus compromissos.
-Como parente do Duque de Caxias, seu pai vivia financeiramente bem?
-Nada; o dinheiro não sobrava na nossa família, o que não impediu que eu fosse criada como uma menina da burguesia e educada nos padrões sociais da segunda metade do século XIX. Tive professores particulares que me ensinaram a ler, a escrever, aprendi com eles cálculos, catecismos, idiomas...
-E a música, Chiquinha Gonzaga?
-Um piano em casa era símbolo de alto padrão social. Assim, houve uma grande importação de pianos da Europa pelo Brasil, acompanhados de numerosas partituras.
-Principalmente partituras de polca.
-Eu ainda não nascera, quando a febre a polca tomou o Brasil, e assim foi durante décadas. Foi uma das danças mais populares do Rio e, em seguida, até os salões de elite a receberam.
-Tomando o jeito brasileiro, ela se transformaria no choro; mas isso fica para depois. Com um piano em casa, Chiquinha Gonzaga, seu talento musical deslanchou.
-Ainda não, pois ninguém é uma ilha. Eu precisava conhecer ainda muitos músicos talentosos. Meu tio e padrinho, Antônio Eliseu, era flautista amador e me ajudou muito nesse início.
-Voluntariosa como você era, como se ajustou ao ambiente militar imposto pelo seu pai?
 -As arestas foram muitas, minha mãe interveio incontáveis vezes, muitos foram os castigos. Quando eu estava com dezesseis anos de idade, meu pai me casou com Jacinto Ribeiro do Amaral, um jovem rico de vinte e quatro anos de idade.
-Seu pai já implicava com a sua dedicação à música.
-Ainda não, tanto que me deu, como dote de casamento, um piano.
-E o seu marido implicou logo?
-A implicância não aflorou logo porque nasceu João Gualberto, no ano seguinte às nossas núpcias e, logo depois, tive Maria do Patrocínio. Apesar das crianças, minha fixação na música e meu caráter insubmisso passaram a desagradar o meu marido.
-Havia brigas entre os dois?
-Muitas. Estourou a Guerra do Paraguai e o meu consorte era co-proprietário de um navio, o São Paulo.
-Eu sei; o governo de Dom Pedro II contratou essa embarcação para transportar tropas para o teatro da guerra (escravos alforriados) e material bélico.  Jacinto Ribeiro do Amaral foi à guerra como comandante da Marinha Mercante.
-Levando-me como ele, pretendia me afastar da música e me vigiar. Tive de levar João Gualberto, mas a Maria do Patrocínio, recém-nascida, ficou com minha mãe.
-Um absurdo, pois o bebê precisava de você.
-No navio, era impossível eu controlar os nervos com o tratamento revoltante que davam aos negros que lutariam, “os voluntários da pátria”...
-E a abstinência da música. - interferi.
-Consegui um violão a bordo. O violão não tem os recursos do piano, mas me consolou.
-Mas era tido como o instrumento dos vagabundos. - frisei.
-Furioso, Jacinto me colocou a opção: ou ele ou a música.
-Reza a lenda, Chiquinha Gonzaga, que você respondeu: “Pois, senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia”.
-Decidida a abandonar meu marido, peguei João Gualberto e retornei ao Rio de Janeiro. Na casa dos meus pais, não recebi o apoio que eu esperava. A minha resistência se quebrou porque descobri que estava grávida pela terceira vez.
-Houve, então, uma chance de reatamento.
-Esperei que nascesse Hilário, mas a crise conjugal não teve tréguas e resolvi, de vez, lagar o Jacinto. Maria do Patrocínio ficou com a avó e o bebê com uma tia paterna.
-A posição do seu pai continuou inabalável?
-Ele passou a ignorar a minha existência.
-Depois do grito de independência, vem a guerra. Nem imagino o que significava uma mulher separada na sociedade burguesa do Brasil no século XIX. - falei.
-Eu me encontrava no momento crucial da minha vida; ou seguia em frente com as minhas próprias pernas ou caía pelo caminho.
-E com a responsabilidade de carregar consigo o filho mais velho.
-Sempre carreguei João Gualberto comigo.
-O que fez para se sustentar?
-Dei aulas particulares de piano.
-Enquanto ensinava, travou conhecimento com o flautista Joaquim Antônio Callado.
-Uma pessoa fundamental para a música popular brasileira e para mim.
-Há quem diga que ele criou o choro como gênero musical, conciliando a polca europeia com os ritmos africanos mais o molejo brasileiro. Uma coisa é certa: ele criou o primeiro conjunto de choro.
-Callado me introduziu no ambiente musical do Rio de Janeiro. Ouviu as minhas primeiras composições e apresentou críticas que só me fizeram melhorar. Ele era um respeitado professor do Imperial Conservatório de Música.
-Ele compôs, para você, “Flor Amorosa” e você retribuiu com “Atraente”. - disse sem malícia.