-Mario Quintana, “O Aprendiz de
Feiticeiro” é o nome de um poema de Goethe. Você usou esse nome para intitular
uma obra sua de poesia?
-Sim, foi o meu quinto livro.
-Você não traduziu nada de Goethe?
-Eu não dominava a língua alemã; traduzi
autores que escreviam em inglês e francês.
-Nós lembramos Proust, mas um número
razoável de livros de Balzac foram vertidos para o português por você.
Qual!... - fez um gesto de
condescendência e acrescentou:
-Ele escreveu 88 livros, eu não traduzi
5% da sua obra completa.
Contei “Os sofrimentos do inventor”,
“Uma paixão no deserto”, “Os Proscritos” e “Seráfita”. Dei-lhe razão e
continuei:
-”O Aprendiz de Feiticeiro” foi
publicado em 1950; no ano subsequente, ”Espelho Mágico”. Em 1953, você
ingressou no “Correio do Povo”, e se responsabilizou por uma coluna diária até
1967. Era muito trabalho?
-Sim.
-Rubem Braga conta que, certa vez, sem
ideia para cumprir o compromisso de entregar uma crônica no jornal, entregou a
de um cronista mineiro, ainda desconhecido na Capital Federal, como se fosse
sua. Esse cronista era o Carlos Drummond de Andrade.
-Drummond era uma excelente pessoa, não
se aborreceu com ele, réu confesso.
-Manuel Bandeira escreveu, certa vez,
que todos os cronistas guardavam os voos mais altos para o poema, o que não
acontecia com Rubem Braga, por isso ele era o cronista maior.
-Há crônicas de Drummond de grande
beleza poética. - frisou.
-As suas crônicas, embora eu confesse
que não li muitas, não perderam a poesia.
-Mario Quintana, costumo levantar a
cabeça e vê-lo na tela do meu computador, agora, eu o vejo em carne e osso.
-Não exagere. - sorriu o poeta.
-É verdade; você está fisicamente morto
desde 1994.
-A morte é a libertação total: a morte é
quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos.
-Pois é, Mario Quintana, seus
pensamentos, tanto quanto sua poesia, povoam as telas dos computadores através
de mensagens eletrônicas.
-Alegro-me em não ter sido esquecido.
-Não foi você mesmo que escreveu...
Deixe-me ver no computador...
Ao ver-me atrapalhado com a minha
memória, interveio com a gentileza que lhe era peculiar.
-Não há necessidade, eu repito.
E repetiu:
-”Amigos, não consultem os relógios
quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira – em que basta um momento de poesia para
nos dar a eternidade inteira.”
-Sim, a sua poesia o eternizou, mas
também, insisto, os seus pensamentos. Muitas vezes, dos atos mais prosaicos
você mostrava uma profundidade oculta, como nessas suas palavras...
Dessa vez, não titubeei em reproduzi-las
de cor:
“Olho em redor do bar em que escrevo
estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia
que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando
problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do
mundo.”
-É tudo poesia. - resumiu Mario
Quintana.
-Você nasceu em Alegrete, Rio Grande do
Sul, em 1906?
-Filho do farmacêutico Celso de Oliveira
Quintana e Dona Virgínia de Miranda Quintana. A minha cartilha foi o jornal
Correio do Povo, com ele meus pais me ensinaram a ler.
-E com “Le Figaro”, eles o ensinaram
francês? - brinquei.
-É verdade que o início do meu
aprendizado da língua francesa se deu com os meus pais.
-Lá, em Alegrete, você concluiu o curso
primário?
-Sim, na escola do mestre português
Antônio Cabral Beirão; e já trabalhava na farmácia da família.
-Com 13 anos de idade, em 1919, você foi
matriculado no Colégio Militar de Porto Alegre, em regime de internato?
-Sim; existia, na época, a revista Hyloea,
órgão da Sociedade Cívica e Literária dos alunos, em que publiquei os meus
primeiros esboços literários. Em 1924, deixei o Colégio Militar e me empreguei
na Editora Globo, conhecida pelos literatos de todo o Brasil.
-Quando você retornou para Alegrete?
-No ano seguinte, 1925, quando voltei a
trabalhar na farmácia. Perdi a minha mãe, pouco depois. Publiquei um conto para
um concurso do Diário de Notícias, de Porto Alegre, e me premiaram. Meu pai não
durou muito depois do falecimento da minha mãe. Álvaro Moreira, diretor da
revista “Para Todos”, do Rio de Janeiro, pediu-me um poema para publicar, e
atendi ao seu pedido.
-E os acontecimentos políticos?... Pelo
menos uma vez na vida, os gaúchos se envolvem com a política até a medula.
-Empolguei-me com a revolução liderada
por Getúlio Vargas, em 1930, alistei-me como voluntário do Sétimo Batalhão de
Caçadores de Porto Alegre e vim para o Rio de Janeiro. Em 1931, retornava ao
Rio Grande do Sul e ao jornal “O Estado do Rio Grande”.
-Em 1935, você inicia o seu trabalho de
tradutor de obras de Proust, Giovanni Papini, Voltaire, Virgínia Woolf, Guy de
Maupassant, Balzac, Beaumarchais, Somerset Maugham. Não preciso dizer que a dificuldade
maior se deu na versão de Proust do francês para a nossa língua,
-Uma frase de Proust subia, descia,
dobrava a esquina e eu não sabia onde pararia. No quinto volume de “À Procura
do Tempo Perdido” intitulado “A Prisioneira”, há uma frase que ocupa quase toda
uma página.
-Quais os volumes da obra-prima de
Proust que você traduziu?
-”No Caminho de Swann”, “À Sombra das
Raparigas em Flor”, “O Caminho de Guermantes”, “Sodoma e Gomorra”.
-Você voltou a trabalhar na Editora
Globo?
-Em 1936, sob a direção do Érico
Veríssimo.
-Monteiro Lobato, quando conheceu seus
poemas, encomendou-lhe um livro?
-Isso foi em 1939; escrevi, então,
“Espelho Mágico”.
-Como Monteiro Lobato, você também
escrevia para crianças?
-Em 1975, foi editado o meu poema
infanto-juvenil “Pé de Pilão, uma coedição do Instituto Estadual do Livro com a
Editora Garatuja, com introdução do Érico Veríssimo.
-O livro obteve uma ótima repercussão
entre a petizada que se iniciava na leitura.
-Os guris gostaram e eu me sentia bem
escrevendo para eles.
-Sei que publicou mais cinco obras
infantis: “O Batalhão das Letras”, em 1948; “Lili inventa o mundo”, em 1983;
“Nariz de Vidro”, em 1984; “O Sapo Amarelo”, em 1984; “Sapato Furado”, em 1994.
“Pé de Pilão”, que saiu pela primeira vez pela editora Vozes, era de 1968.
-Não foi Monteiro Lobato que o insuflou
a escrever para crianças?
-Não, Monteiro Lobato havia gostado de
doze quartetos meus; quando me encomendou uma obra, eu escrevi “Espelho
Mágico”. Trata-se de uma coleção de quartetos com um texto de Monteiro Lobato
na orelha do livro, quando foi publicado em 1951.
-Aqui, no Rio de Janeiro, nós chamamos
de quadrinhas, apesar de os livros escolares trazerem impressos o nome
“quartetos”.
-Também penso que quartetos se reportam
mais às músicas de Haydn, Mozart, Beethoven, Debussy,
-Como entramos no universo musical, Mario
Quintana, vale lembrar que o maestro Gil de Rocca Sales musicou, em 1993, treze
poemas seus para o Recital Canto Coral Quintanares. No ano seguinte, em 1994, o
maestro Adroaldo Cauduro também musicou poemas seus para o Coral Casa de Mario
Quintana.
-Foi um bálsamono fim do meu caminho.
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A visita do poeta Mario Quintana
prosseguirá no próximo número, por enquanto, como bônus, reproduziremos o poema
com que Manuel Bandeira saudouo poeta
quando ele foi homenageado por seus pares na ocasião dos seus 60 anos de idade.
-Li a edição deste periódico sobre os 77
anos da Brigitte Bardot, quando foram transcritas algumas observações de Cícero
sobre a velhice. Ora, ele cultivava a tranquilidade dos filósofos. Eu gostaria
de conhecer a avaliação sobre a terceira idade daqueles que viveram paixões
efervescentes antes dos cabelos embranquecerem, se é que tinham cabelos. Thor
BM: O leitor conhece o senador Bernardo Cabral que, de
acordo com os mexeriqueiros, dançou, quando ministro da Justiça do governo
Collor, de rosto colado o bolero Besame Mucho com a ministra da Economia
Zélia Cardoso de Mello. O leitor também conhece o economista Roberto Campos,
que foi esfaqueado por uma amante, fato que ele omitiu da sua formidável
biografia “A Lanterna na Popa”. Conta Bernardo Cabral que conversava com
Roberto Campos, quando uma atraente mulher passou pelos dois.
-Estou ficando velho. - lamentou Roberto
Campos.
Bernardo Cabral narra que pousou a mão
sobre o seu ombro e lhe disse:
-A velhice é o armazenamento da
juventude.
Então, segundo Bernardo Cabral, Roberto
Campos retrucou:
-A velhice mantém o desejo, mas perde a
oportunidade.
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-Não nego que vibrei de contentamento
quando li a declaração do Delfim Netto sobre o motivo de ele doar a sua biblioteca
de mais de 250 mil livros para a Universidade de São Paulo: “A USP vai ficar,
eu não”. Odin
BM: Se eu estou com o controle remoto da televisão no meu
poder, zapeando os canais, eu paro sempre que aparecem o Fernando Henrique
Cardoso e o Delfim Netto, apesar de um ser a antítese do outro.
Delfim Netto, quando se tornou Ministro
da Agricultura do governo João Batista Figueiredo, mostrava um apetite
descomunal pelo cargo do Mário Henrique Simonsen, o Ministério do Planejamento
(“Meu negócio é número” - bordão do Dr. Sardinha, personagem de Jô Soares/ Max
Nunes que retratava o Delfim).
Quando o mundo entrou em crise com o
segundo choque do petróleo, Simonsen pensou em preparar o país para o
enfrentamento com rigidez das dificuldades, mas foi atropelado pelo discurso
desenvolvimentista do Delfim Netto. Simonsen saiu e o Dr. Sardinha, aplaudido
pelo empresariado da FIESP, assumiu o seu cargo, O lema era: o Brasil é uma
ilha de tranquilidade num mar de tormenta.
“Meu negócio é número...” Metade das
importações brasileiras era constituída de petróleo. Os juros da dívida externa
brasileira chegaram a 21% com a política de Paul Vocker no FED, durante o
governo Reagan.
Delfim Neto, que decretara uma
maxidesvalorização do cruzeiro diante do dólar em 1979, decretou outra, de
igual valor, em 1981, quebrando inúmeras empresas endividadas na moeda
americana. Decretou ele que a correção monetária e a inflação seriam de 40 e
45%, a inflação ultrapassou os 100%. Em 1982, o Brasil quebrou, entrando em
moratória.
As grandes cidades foram tomadas pelos
camelôs que ainda hoje vicejam, desempregados que procuraram sobreviver na
informalidade.
Hoje, eu me impressiono com o
malabarismo intelectual do Dr. Sardinha para justificar as medidas que tomou no
tempo em que foi o czar da economia brasileira.
Delfim Netto, octogenário, caiu nos
braços do Lula, mas a sua inteligência falou mais alto, e agora o critica no
terreno econômico; recentemente, enaltece o Itamar Franco. A má vontade com o
Fernando Henrique Cardoso é pétrea, afinal foi ele que geriu o Plano Real que
limou a hiperinflação que tinha recebido um incentivo e tanto do Czar do tempo
do Figueiredo... Delfim Netto não o perdoa por ter desfeito muito das suas
lambanças.
Outro dia, ouvi o Fernando Henrique
Cardoso referir-se a Delfim Netto, quando citou os grupos de acadêmicos da
Universidade de São Paulo.
Não sou tão extremado quanto o Odin.
Creio que Delfim Netto se redime de muitos pecados quando se propõe a doar os
seus mais de 250 mil livros para quem quer estudar.
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A propósito do BM que tratou da origem
dos táxis, Dieckmann escreveu um asterisco que aqui transcrevemos uma parte em
forma de carta.
“Os riquixás surgiram no Japão por volta de 1868, no início da Restauração Meiji.
Eles logo se tornaram um meio de transporte popular, pelo fato de serem mais
rápidos que as liteiras
utilizadas anteriormente (e o trabalho humano era consideravelmente mais barato
do que a utilização de cavalos).
Outros ainda dizem que o riquixá foi
projetado por um pastor evangélico americano em 1888. Essa hipótese certamente está incorreta, pois
um artigo de 1877 de um correspondente do The
New York Times declarava que o "jin-riki-sha,
ou carruagem de tração humana" estava sendo popularmente utilizado, e
tinha sido inventado provavelmente por um americano em 1869 ou1870.”Dieckmann.
BM:
Meu caro Dieckmann, não quero desconsiderar a sua fonte, mas muitos
“inventos” já existiam na China e foram
conhecidos por nós alguns séculos depois, talvez o riquixá seja um deles. Eis o
que eu colhi em outra fonte:
“Um meio de transporte característico da China é o riquixá, riquexó
ou rickshaw que é de tração humana, em que uma carroça de duas rodas
onde se acomodam uma ou duas pessoas, normalmente usada como “táxi”.
Quanto ao carrinho de mão,
não resta dúvida, quase mil anos antes de os europeus o conhecerem já existia
na China. Atribui-se ao general Jugo Liang , que viveu na dinastia Han, o
invento.
O carrinho de mão chinês
era, evidentemente, utilizado nas guerras.
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-Como terminou a expedição de Pedro
Álvares Cabral depois de descobrir o Brasil e guerrar em Calecute? Jord
BM: Cabral se aproveitou da rivalidade entre os governantes de Cochim,
onde desembarcou em 24 de dezembro de 1500 e Calecute, e fez ótimos negócios.
Com as embarcações carregadas de especiarias, rumou de volta para o leste da
África, onde um dos navios encalhou num banco de areia. Como não havia mais espaço para carga em
outras embarcações, a nau foi incendiada por ordem de Cabral.
A
frota fez uma parada em Moçambique, para enfrentar dias depois, a passagem pelo
Cabo da Boa Esperança. A mais veloz caravela da frota partiu na frente para
levar ao rei as alvíssaras da viagem, comandava-o Nicolau Coelho. Em 22 de maio, em Bezeguiche, que se chamaria
Dakar, encontraram-se com a nau de Diogo Dias, desaparecida há um ano, quando
houve uma tenebrosa tempestade. Nela se encontravam apenas sete homens
esfarrapados, um deles morreu de emoção ao ver os companheiros.
A nau capitânia, que partiu em 9 de
março de 1500, chegou a Portugal em 21
de julho de 1501; Nicolau Coelho desembarcara em 23 de junho desse ano. Ao todo, dois navios voltaram vazios, cinco estavam
plenamente carregados e seis foram perdidos.
Após as especiarias serem vendidas, as
receitas cobriram os custos de equipamento e dos navios perdidos. A frota gerou
lucros de até 800% para a Coroa Portuguesa.
-Está cada vez mais insuportável viajar
de metrô. - desabafei no táxi 009, do Gaguinho, ainda com um zumbido nos
ouvidos.
-Muito cheio?...
-Não é só isso; falam nos celulares aos
berros; expõem a sua privacidade sem a menor cerimônia. Ora, eu não tenho nada
com isso, e nem quero ter! Que falem baixo!
-Já notei que você não assiste ao Big
Brother Brasil.
Desconheci o seu aparte e prossegui na
minha indignação.
-Mesmo quando os passageiros conversam
entre si, só se houve bobagem: pagode, baile funk...
-Não tocavam música clássica nas
estações do metrô?
-Isso foi anos atrás quando, nos últimos
meses, eu só ouvia duas composições: o primeiro movimento da “Sinfonia Titã”,
de Gustav Mahler, e “Quadros de Uma Exposição”, de Mussorgsky.Depois de ouvi-las todos os dias, eu imaginei
que roubaram a discoteca do Metrô e só deixaram esses dois discos.
-Uma música que agrade aos nossos
ouvidos é, pelo menos, um oásis no meio de tantas besteiras que se falam à
nossa volta. - observou.
-Acabo me tornando um daqueles
socialistas brasileiros que querem muito bem às pessoas do povo, mas eles aqui,
nos trens do metrô e da Central do Brasil, e ele em Paris.
-E o Hugo Chávez que não conseguiu
manter o Fernando Lugo, no Paraguai, mas meteu a Venezuela no Mercosul?... Para
mim, um sujeito que se aproveita da batina para fazer filho nas carolas é muito
safado. - disse ele.
-Eu não discuto isso; eu vejo o problema
paraguaio por outro prisma. Existe meio milhão de brasileiros nesse país,
chamados de brasiguaios, que cultivam a soja e transformaram o Paraguai no
quarto ou quinto exportador mundial dessa mercadoria. O Fernando Lugo, em nome
do seu socialismo estrambótico, não mexia uma palha em defesa dos brasiguaios,
quando eles eram atacados pelos sem-terra de lá.
-A nossa política externa comeu mosca;
aliás, nós sempre seguimos a vontade do Hugo Chávez. - observou.
-Dizem que ele ameaçou cortar a entrega
de combustível ao novo governo do Paraguai, mas a Dilma Rousseff reagiu: se ele
fizesse isso, o Brasil não deixaria os paraguaios desabastecidos.
-Se for verdade, eu aplaudo a
presidente. - declarou.
-Por outro lado, aceitou a Venezuela no
lugar do Paraguai, no Mercosul. Mas com esse protecionismo exagerado,
principalmente da Argentina, o Mercosul está fadado ao fracasso. -
manifestei-me.
-Soube que o dólar subiu alucinadamente
na Argentina.
-A Cristina Kirchner afunda cada vez
mais o seu país. O protecionismo lá chegou ao ponto de uma empresa, para
importar 1 dólar, tem de exportar 1 dólar. Assim, empresas fabricantes de
celulares, por exemplo, que necessitam de componentes de fora da Argentina, têm
de exportar garrafas vinho. É a economia do uno por uno.
-Espero que o Brasil de amanhã não seja
a Argentina de hoje. - disse, enquanto parava o carro na Rua Modigliani.
No dia subsequente, peguei o táxi 045, o
do Gordinho.
-Podia aparecer o sol para, pelo menos,
esquentar um pouquinho. - comentou.
-Está difícil fazer até a barba.
-Você molha o rosto, não molha? Eu jogo
talco e, depois, passo o barbeador elétrico.
-Primeiramente, eu emplastro a barba com
creme, mas antes eu pincelo a cara com água fria. Após isso tudo, raspo com uma
lâmina inspirada na Gillette.
-A água fria fica distante da minha
barba. - afirmou.
-De manhã cedo, eu caminho e como a
friagem ajuda, eu acelero bastante as minhas passadas, assim, consigo entrar no
chuveiro de água fria; não posso, porém, deixar o intervalo da caminhada para o
banho chegar a cinco minutos, senão eu congelo.
-E a temperatura está por volta de 20º.
- sorriu.
-Digamos que, na hora das minhas
caminhadas, a temperatura esteja por volta de 17º.
-Eu também caminho de manhã, foi
exigência do médico para eu emagrecer e controlar a pressão arterial.
-As caminhadas só trazem benefícios. -
empolguei-me.
-Também para os assaltantes...
Atingido o objetivo dele de me deixar intrigado,
esclareceu:
-Com a chegada do inverno, ainda está
escuro às 6h da manhã. Eu caminhava por volta das 5h 30min pela calçada da
igreja do bispo Macedo, quando vislumbrei um tipo suspeito um pouco à frente de
mim. Estávamos separados por um tapume, pois aquela calçada está em obra.
-Será que virão pedras de Jerusalém? -
aparteei.
-Não sei por que eu pisaria a terra, mas
resolvi dar meia volta. De esguelha, vi que o sujeito também girou 180 graus.
Continuei calmamente sabendo que seria assaltado. Ele então disse: “perdeu”, puxou
o meu fone de áudio, plugado no meu radinho sintonizado na Ceci Melo, a
locutora de notícias da Rádio CBN. Por instinto de defesa, segurei o fio e ele
levou a mão à cintura. “Quer levar um tiro na cara?” Notei que ele olhava por
cima da minha cabeça, demonstrando mais medo do que eu.
-Os vigias da igreja ficam por ali e com
a escuridão, tornam-se invisíveis.
-Eu seu disso, por isso, eu torci mais
do que o assaltante para que nenhum vigia estivesse ali, vendo o assalto, pois
eles poderiam atirar e me acertar.
-E o assaltante com medo. - adiantei a
narrativa dele.
-Com tanto medo, que não viu o meu
relógio de 100 reais e o meu tênis de 200. Levou, apressadamente, o meu radinho
e o áudio, que não devem valer 5 reais.
-Não valeria um pouco mais? - pus em
dúvida a sua avaliação.
-Para você ter uma ideia, nesse mesmo
dia, fui à Casa e Vídeo e comprei o radinho para enganchar no cós da bermuda e
o fone de áudiopor 14 reais; o que o
meliante levouestava com o gancho
partido e precisando de pilhas novos.
-Tudo por 5 reais.- resumi.
-Se os vigias do bispo Macedo estivessem
lá, atirando, eu corria o risco de morrer por 5 reais. Quanto aos assaltantes,
a vida deles não valem mais do que isso. - disse, enquanto me deixava na Rua
Modigliani.
-Quando eu vi os homens construindo um
altar em terra, por ordem de Pedro Álvares Cabral, soube que era dia 26 de
abril de 1500.
-Como, Carlos?
-Desde a escola primária me obrigaram a
decorar a data da primeira missa no Brasil; a data e o nome de quem a celebrou,
Frei Henrique de Coimbra.
-Eu me lembro também disso tudo; até
ficou na minha memória o nome do Bispo Pero Fernandes de Sardinha, que foi
comido pelos índios caetés.
-Também como esse nome....
-Será que há canibais aqui, Elio?
-Entre os indígenas, não acredito;
alguns são nômades, outros sedentários. Conhecem o fogo, mas não os metais; os
homens caçam e pescam, as mulheres se dedicam à agricultura.
-Olha: um grupo oferece vinho aos
índios. - apontei.
Aproximamo-nos daquelas pessoas que riam
com a reação dos índios, que cuspiam a bebida e faziam caretas de asco.
-Só devem beber água. - entremeou um
marujo as suas palavras com risos.
Um índio, que se afastara, retornou com
uma espécie de cuia com um líquido dentro. Fez sinal para que um marinheiro
bebesse, mas este se mostrou demasiadamente desconfiado.
-É melhor beber, pois são ordens
superiores nós não aborrecermos os naturais da terra. - lembrou alguém.
-É cauim. - sussurrei no ouvido do Elio.
-O tal marinheiro bebeu um gole e, em
seguida, abanou a boca aberta com a mão espalmada.
-Caramba, isso é fogo líquido. - disse
ele.
-Também quero provar. - gritou cada um
dos integrantes do alegre grupo, estendendo os braços.
-Os índios brasileiros têm um invejável
conhecimento de bebidas alcoólicas fermentadas, que obtêm de raízes, cascas,
sementes, frutos, tubérculos, totalizando uns oitenta tipos de aguardente.
-Os americanos usaram o uísque para
amolecer a fibra dos índios, os brasileiros não precisaram. - interrompi o
Elio.
-Cabral não vai partir logo do Brasil, é
melhor, então, nós nos dedicarmos ao trabalho para o tempo passar mais rápido.
- propôs.
-Eu vou escrever agora uma edição do
Biscoito Molhado sobre a descoberta do Brasil.
-Pero Vaz de Caminha já escreve sobre
isso.
-Mas o texto dele é chapa branca e ainda
pede emprego para um conhecido.
-Bem, Carlos, Pedro Álvares Cabral
ordenou que se armazenasse água, alimentos, madeira e outros suprimentos.
Trabalho não faltará para todos.
-E você, Elio, o que fará?
-Vou corrigir os erros de português da
Carta de Pero Vaz de Caminha.
Transcorridos dois, três dias, Cabral
ordenou que se construísse uma cruz com a madeira vertical ultrapassando os
sete metros de altura.
-Terei de assistir a outra missa
católica. - resmungou o Elio.
-Calma, Elio, as sinagogas só aparecerão
no Brasil e nas Américas com a invasão holandesa.
No dia primeiro de maio, foi celebrada a
segunda missa. Em honra a cruz, Cabral chamou o lugar descoberto de Ilha de
Vera Cruz.
Um navio da frota partiu na manhã
seguinte.
-De quem é aquela embarcação que se
vai?- perguntei a um soldado.
-Uns dizem que é a de Gastar de Lemos,
outros, a de André Gonçalves. Leva a carta de Pero Vaz de Caminha e avisa ao
rei das novas terras de Portugal. - respondeu.
Pouco depois, éramos todos nós que
zarpávamos, mas com outro destino: as Índias.
-Em poucos dias, dobraremos o Cabo das
Tormentas. - disse-me um tripulante.
-O nome de lá mudou para Cabo da Boa
Esperança. - retruquei.
-Boa Esperança... - a sua expressão era
tão lúgubre que um arrepio de pavor percorreu-me a espinha.
Em poucas horas, as nuvens se tornaram
carregadas e o mar ficava cada vez mais encapelado.
-Elio, a Dona Sarita lhe ensinou o que
aconteceu com a expedição de Pedro Álvares Cabral depois da descoberta do
Brasil?
-Carlos, se ela tivesse me ensinado, eu
não me meteria nesta enrascada, teria embarcado no navio que levou a carta de Caminha.
- disse, enquanto as bátegas nos castigavam e o mar se abria com vontade de nos
tragar a todos.
-Se eu não soubesse que nasceria 447
anos depois, eu me consideraria hoje um homem morto.
-É o Adamastor de Camões e o Mostrengo
de Fernando Pessoa. - reportou-se à poesia.
Passada a tormenta, veio o balanço da
desgraça: a caravela de Bartolomeu Dias naufragou, além de três caravelas,
perdendo-se quase 400 vidas humanas.As
outras embarcações, com os instrumentos danificados, dispersaram, depois
reagruparam-se, porém a que estava sob o comando de Diogo Dias permaneceu
distante.
Paramos em Sofala, Moçambique, onde a
frota foi reparada e os nervos foram colocados no lugar. Dez dias depois,
partimos e desembarcamos em Quiloa.
Enquanto Pedro Álvares Cabral procurava
assinar um tratado comercial com o rei do lugar, perguntei ao Elio em que país
se situava Quiloa.
-Carlos, no dia da aula de geografia
sobre cidades africanas, eu fui visitar o Reinaldo do Jipe na cadeia do Colégio
Militar.
Mais tarde, eu saberia que estávamos em
Zanzibar.
Irritado com o rei africano, que se
mostrou turrão, Cabral navegou até Melinde, onde Vasco da Grama foi recebido
com todas as honras. Lá, repetiu-se a boa recepção e houve troca de presentes.
Antes do desembarque em Calecute,
Cabral, repetindo Vasco da Gama, fez uma parada nas Ilhas Angediva para
fortalecer máquinas e homens. No nosso destino, Cabral negociou com o Samorim.
-Carlos, parece que tudo corre as mil
maravilhas: Cabral obteve autorização para instalar uma feitoria e um armazém.
-Por que, Elio, ele despacha homens para
missões militares?
-Tem razão, apesar de o Samorim
concordar, é melhor nós nos protegermos em um dos navios.
Foi a nossa salvação; a feitoria foi
atacada de surpresa por centenas de árabes muçulmanos e indianos hindus. Os
besteiros lusitanos contra-atacaram, porém mais de 50 portugueses morreram,
enquanto os demais fugiam para os navios, alguns a nado.
-Cabral está furioso. - gritou um
soldado.
-Não interessa aos árabes, que já
negociam as especiarias com as Índias, pelo Mar Mediterrâneo, ganhar mais um
concorrente, por isso, eles insuflaram este ataque aos portugueses. - deduziu
um marinheiro com ares de lobo do mar.
Pedro Álvares Cabral estava, de fato,
furioso com o ataque à feitoria; ordenou um devastador ataque a dez navios
árabes que estavam ancorados no porto. Depois da morte de centenas de inimigos,
foram confiscados os carregamentos dos navios que, em seguida, foram tomados
pelo fogo.
-Espero que Cabral já tenha se acalmado
depois de tanta fúria.- disse ao Elio.
Qual!... Durante um dia inteiro,
bombardeou a cidade de Calecute.
-Onde nos metemos! - lamentei.
Depois, navegamos até outra cidade da
Índia, Cochim, precisamente. Lá, Pedro Álvares Cabral, soube explorar a
rivalidade entre as cidades, e assegurou a hegemonia portuguesa na região.
-Carlos, vamos dar um jeito de sair
daqui, enquanto as coisas ainda estão calmas.
-Pedro
Álvares Cabral, você de novo descobrindo o Brasil?!...
-É
verdade; depois de 1500 eu nunca mais estive aqui, no Brasil.
-Voltou
ao Brasil 512 anos depois.
-As
coisas mudaram muito; os habitantes vestem roupas...
-Fala
isso porque está em Del
Castilho, se estivesse na praia, veria que as coisas não
mudaram muito...
-E
Porto Seguro?
-Continua
com o nome que você deu, mas virou um lugar de turismo com os imóveis
supervalorizados.
-E
os índios? Não vi um só no caminho para cá.
-Se
você chegasse ao Brasil no carnaval, veria alguns.
-Da
próxima vez, aprazarei a minha viagem para os dias carnavalescos.
-Pedro
Álvares, você pertencia a uma ilustre família lusitana?
-Sim;
meu pai, Fernão Cabral, foi 1º regedor das justiças da Beira, adiantado-mor da
Beira, coudel-mor do Reino, alcaide-mor de Belmonte, Senhor de juro e herdade
de Belmonte, de Azurara da Beira e de Manteigas. Minha mãe, Isabel Gouveia, era
filha de João, senhor de Gouveia.
-Você
nasceu em 1467, em Belmonte e se chamava Pedro Álvares de Gouveia?
-Só
usei o sobrenome de meu pai um ano após a morte do seu primogênito.
-Falam
que a família Cabral deriva de um clã castelhano chamado Cabreiras, que as
armas de sua família foram elaboradas com duas cabras roxas em um campo de prata?...
-O
roxo representa a fidelidade. A minha família já se destacava no século XIV,
meu ascendente Álvaro Gil Cabral foi comandante militar de fronteira e
permaneceu ligado ao rei D. João I durante a guerra contra o rei de Castela.
Como recompensa, D. João I presenteou Álvaro Gil com a propriedade do feudo
hereditário de Belmonte.
-Você
recebeu, então, uma educação esmerada?
-Fui
enviado à corte do rei D. Afonso V em 1479, quando contava 12 anos de idade.
Fui educado em humanidades e treinado para pegar em armas e combater. Quando
estava com 17 anos, o rei D. João II me nomeou moço fidalgo.
-Era
um título que arrancava suspiros das cachopas?
Ele
ignorou o tom galhofeiro da pergunta e disse que a nomeação não representava
muito, mas tinha a sua importância por vir do rei.
-Adulto,
participei de missões no norte da África, lutas contra os muçulmanos, como
outros nobres ambiciosos da corte portuguesa.
-Você
se dava bem com o rei D. Manuel I, nessa época?
-Dom
Manuel, o duque de Beja, ascendeu ao trono em 1495 e me concedeu um subsídio
anual de 30 mil reais, em abril de 1497. Com esse valor pecuniário, recebi o
título de fidalgo do Conselho do Rei e fui nomeado Cavaleiro da Ordem de
Cristo.
-Em
1500, o rei o convocou para chefiar uma expedição à Índia, seguindo o caminho
percorrido por Vasco da Gama, que contornava a África?
-Aprendi
na escola que a rota pelo Mediterrâneo seria mais curta, mas os turcos tomaram
Constantinopla em 1453.
-Portugal
e Espanha buscavam uma rota alternativa para chegar à Índia, porque o Mar
Mediterrâneo estava sob o controle das repúblicas marítimas italianas e do
Império Otomano. Essa dificuldade foi benéfica para nós, pois Portugal se
expandiu com a descoberta de novas terras.
-Portugal
e Espanha. - acrescentei.
-Sim,
difundimos o cristianismo católico em terras pagãs.
-Por
isso, o Papa Alexandre VI dividiu as terras a serem descobertas entre
portugueses e espanhóis através do Tratado de Tordesilhas.
-Eu
estava bem ciente disso. - frisou Pedro Álvares Cabral.
-Não
se aborreça, mas tenho de dizer que você não tinha o tirocínio de Vasco da
Gama, em matéria de navegação, para levar à frente uma empreitada dessas.
-Era
costume a Coroa Portuguesa nomear nobres para comandar expedições navais e
militares.
-E assim as
embarcações da sua frota tiveram nobres, no comando, alguns sem experiência e
capacidade na arte de navegação.
-Houve líderes competentes, além disso, compuseram a
minha missão navegantes com grande conhecimento de arte náutica. Lá estavam
Bartolomeu Dias, o primeiro a dobrar o Cabo da Boa Esperança, Diogo Dias e
Nicolau Coelho, que, em assuntos de técnicas navais, ajudariam os comandantes
militares.
-Entendo.
-No decreto real que me nomeou capitão-mor, os motivos
lá estão: meus méritos e meus serviços prestados.
-Não discuto a sua qualidade de chefe militar; a sua
missão foi bem sucedida.
-Não foi fácil chefiar 1 500 homens, sendo 700
soldados, com plebeus sem experiência em combates e 13 navios.
-E qual seria a sua recompensa para tamanha
responsabilidade?
-Eu tinha direito a 10 mil cruzados, que equivaliam a
35 kgs de ouro e a adquirir 30 toneladas de pimenta, às minhas próprias custas,
para transportar de volta à Europa. Eu tinha permissão de vender a pimenta à
Coroa Portuguesa, livre de impostos. Autorizaram-me também a importar 10 caixas
de qualquer tipo de especiaria, livre de impostos.
-A Coroa Portuguesa foi generosa consigo.
-O rei D. Manuel I sabia que a minha viagem era
extremamente perigosa, não se tratava apenas de tomar posse da Ilha de Vera
Cruz...
-O Brasil.- interrompi.
-Aquelas terras se encontravam a leste do Tratado de
Tordesilhas e, portanto, pertenciam a Portugal.
-Quando você se convenceu que não se apossara de uma
ilha?
-Quando retomei a viagem, em 3 de maio, navegando ao
sul, constatei que encontrara, na realidade, um continente. Poucos dias depois,
veio aquela horrorosa tempestade ao sul da África. Em setembro, a mortandade de
Calecute... Fomos atacados à traição pelos muçulmanos.
E concluiu:
-Eu merecia muito mais de Portugal.
-Depois do seu retorno, D. Manuel I planejou outra
expedição à Índia para vingar as perdas portuguesas em Calecute e você foi
escolhido para comandar a “Frota da Vingança”. Durante oito meses você
trabalhou nos preparativos da viagem, mas, perto da partida, em 1502, você foi
afastado. Por quê?
-Questões políticas. O comandante passou a ser Vasco
da Gama e eu me afastei da corte.
-Mesmo afastado do rei, você se casou, em 1503, com
uma mulher de alta estirpe, D. Isabel de Castro, descendente do rei D.Fernando
I e sobrinha de Afonso de Albuquerque, grande líder militar lusitano.
-Tivemos quatro filhos.
-Você caiu durante um bom tempo em injusto
esquecimento.
-Vivo, ainda me concederam um subsídio mensal de pouco
mais de 2500 reais. Sofrendo de febres e tremores de uma malária mal curada, morri
em 1520 com pouco mais de 50 anos de idade.
O imperador D. Pedro II lutou pela reabilitação da sua
memória e quase houve uma crise diplomática entre Brasil e Portugal por causa
do desleixo a que relegaram seu túmulo. A irmã mais velha dele, que reinava em
Portugal, Maria II, acertou tudo.
-Sou hoje lembrado?
-A nota de mil cruzeiros novos, que vigorou de 1967 a 1970 trazia a sua
efígie e a de 100 escudos, dos anos 30, e as de 1000 escudos, antes da
implantação do euro, também traziam a sua efígie.