Total de visualizações de página

terça-feira, 6 de setembro de 2011

2005 - Darwin e a mula

------------------------------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 3835 Data: 27 de agosto de 2011

------------------------------------------------------------------------------------

O CAMINHO DE DARWIN

Para Macaé, íamos eu, um colega e o motorista justificar os nossos respectivos salários. Eram duas horas da tarde de uma terça-feira e o nosso carro chegou a Niterói sem encontrar dificuldades no tráfego.

-Caminho de Darwin. - balbuciou o motorista.

Eu, que me encontrava no banco do carona, virei o pescoço para ver a placa com esses dizeres, mas o descompasso proveniente da lentidão das suas palavras e a velocidade do veículo me impediu.

Rodamos mais alguns quilômetros e ele repetiu, intrigado:

-Caminho de Darwin.

Dessa vez, eu vi a placa e também o meu colega de trabalho que, esparramado no banco traseiro, dormitava.

Depois de mais uma hora e meia de viagem, Márcio, este é o nome do motorista terceirizado pela nossa agência, expressou a sua curiosidade.

-O que vem a ser o Caminho de Darwin?

-Rapaz, este caminho trilhado por Charles Darwin contribuiu sobremaneira para que ele sacudisse o mundo da ciência, com o evolucionismo, e abalasse os alicerces da religiosidade.

-Mas que caminho é esse? – ele queria uma resposta mais direta.

-Charles Darwin, quando esteve no Rio de Janeiro, viajou pelo norte fluminense, subindo a serra da Tiririca, em Niterói; passou por Maricá, Saquarema, Araruama, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio, Barra de São João, Macaé, Conceição de Macabu, Rio Bonito, Itaboraí.

-Parece até que ele, alguns séculos antes de nós, foi fiscalizar algumas empresas de navegação. - brincou meu colega de trabalho que, evidentemente, já estava acordado.

-Não sei como Seu Carlos sabe disso tudo? - disse o motorista.

-Tenho obrigação de saber um pouquinho, pois em 2009 se celebrou os 200 anos de nascimento do grande homem e o Elio Fischberg, um amigo, me presenteou, no meu aniversário, com uma biografia do evolucionista redigida por Adrian Desmond e James Moore.

-Eu vi o livro na Saraiva. Aquele ministro do Collor, o Rogério Magri, que testava a força rasgando listas telefônicas, teria dificuldades para rasgar essa biografia. - manifestou-se meu colega.

-É um cartapácio; são quase 800 páginas. Não fosse muito bem elaborado e eu teria dificuldades para o ler.

-Ele participou de uma viagem de navio pelo mundo, quando jovem, e recolheu material que levou para casa e estudou durante anos e anos até chegar à descoberta da Evolução da Espécie, não foi isso?- atalhou o meu colega de trabalho.

-Charles Darwin viajou por 5 anos no navio Beagle, que fez a sua terceira parada no Brasil. No nosso país, passaram, sem demora, pelo arquipélago Fernando de Noronha e em fevereiro de 1832, desembarcaram em Salvador.

-Será que chegaram a tempo de ver o carnaval baiano? - brincou meu colega.

-Sim; no livro está registrado que Darwin se aventurou pelas ruas carnavalescas com dois tenentes ingleses, mas bateu em retirada debaixo de bolas de cera cheias d' água e o borrifo de grandes esguichos de lata.

-Como esses dois biógrafos sabem disso?... Não estariam fantasiando sobre esse carnaval?... - mostrou-se cético meu colega.

-Eles se basearam no diário do próprio Charles Darwin. - esclareci para, em seguida, prosseguir:

-Charles Darwin ficou deslumbrado com a vegetação, as gramíneas, as plantas parasitas, as flores. Ele escreveu que a sua mente era “um caos de beleza”.

-Naquela época, a Mata Atlântica não estava destruída como hoje. - interveio o motorista.

-O que chocou o cientista foi a escravidão, uma instituição que sempre contrariou os ideais dele e da sua família, que eram whig, o partido liberal da Inglaterra. O comandante do Beagle, FritzRoy, era tory, o partido conservador e os dois discutiram acaloradamente sobre a escravidão.

-E onde entra o Rio de Janeiro, nesse viagem?- apressou-me o meu colega de serviço, enquanto o nosso carro seguia por alguns trechos do Caminho de Darwin.

-Vejamos os que os dois biógrafos disseram. Na viagem da Bahia para o Rio de Janeiro, Darwin viu a sua primeira tromba-d'água, apanhou o seu primeiro tubarão e recebeu a mala postal, enquanto o Beagle entrava no porto do Rio. A ansiedade para saber das novidades de casa arrefeceu-lhe o impacto que a beleza do Rio provoca nos visitantes. Soube, numa dessas cartas, que uma apaixonada sua se casou.

-Isso é bom, porque um homem desiludido estuda mais. - disse, com um riso, meu colega.

-O navio dele chegou aqui, no Rio, quando, Seu Carlos?

-Em 5 de abril, mas teve de voltar a Bahia para fazer uns levantamentos sobre longitude, algo assim. Parte da tripulação ficou no Rio com Charles Darwin. Com a embarcação ainda aqui, ele se juntou com um grupo de aventureiros britânicos e subiram 160 quilômetrosa pelo norte, onde um deles possuía terras.

-Era o tal Caminho de Darwin. - concluiu o Márcio.

-O caminho era tortuoso, as acomodações estavam sujas e a comida era escassa, sem falar no calor que ainda estorrica no mês de abril. Embora debilitado e exausto, Charles Darwin se sentia compensado com o que via: cupinzeiro em forma de cone, erguendo-se 4 metros acima do solo, garças voando em lagunas salgadas, morcegos-vampiros sugando sangue de cavalo e uma profusão de orquídeas e palmitos.

-E a tal fazenda do inglês aventureiro? - perguntou meu colega.

-Ela ficava entalhada na floresta virgem, e Darwin se acomodou nela. Lá, escreveu muito no seu caderno de anotações. A visita durou alguns dias e eles retornaram. Como eu disse antes, o Beagle teria de ir de novo à Bahia e Darwin pegou, então, os pertences dele, muito material de estudo, colocou num bote e remou para a enseada de Botafogo. Quando desembarcava, uma onda rebentou sobre o bote, virando-o de cabeça para baixo.

-Ele perdeu tudo! - exclamaram em uníssono.

-Livros, instrumentos e estojos de armas flutuaram. Charles Darwin se multiplicou e trouxe tudo de volta para si. Depois, alugou uma cabana, na proximidade e ficou o dia inteiro secando aquilo tudo.

-Ainda bem que encontrou essa cabana.

-Compartilhando a cabana com ele, ficou um artista que pintou a natureza selvagem.

-E na cidade do Rio de Janeiro, ele não explorou nada?- perguntou meu colega com entonação crítica.

-Claro que ele não ficou, no Rio, só estudando. Visitou o Jardim Botânico e descobriu o aqueduto que conduzia à montanha do Corcovado. Escalou duas vezes o que ele chamou de “Corcunda”, que tem uns 600 metros de altitude, maravilhando-se com o cenário lá de cima. No Rio, ouviu sapos coaxando e papagaios berrando, viu pirilampos e beija-flores iridescentes, e observou lagartos fugindo de formigas predadoras. Aqui, ele se deparou com o primeiro macaco do Novo Mundo, um animal barbudo, pendurado numa árvore enorme pela cauda preênsil.

-Era uma biodiversidade e tanta. - disse meu colega.

-Charles Darwin, desde a Inglaterra, colecionava espécies de besouros, mas encontrou no Rio de Janeiro 68 espécies. Nas cartas que escrevia para casa, acentuava os dados sobre os besouros para matar os amigos cientistas de inveja.

-Sem falar nas descobertas científicas, ele teve muitas histórias para contar sobre essa viagem. - deduziu o Márcio.

-Sim; mais tarde, os filhos, quando pequenos, preferiam mil vezes mais ouvir as histórias que o papai Darwin contava do que os livros que a mãe lia em voz alta para eles dormirem.

Depois de passarmos por mais uma placa “Caminho de Darwin”, o meu colega de trabalho disse:

-Lá vamos nós, como Darwin, para Macaé.

-Ele foi no lombo de uma mula.- assinalei.

Nenhum comentário:

Postar um comentário