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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

2007 - Influências sobre Scliar

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3837 Data: 29 de agosto de 2011

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61ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Fico envaidecido em receber o autor de “O Centauro no Jardim” em minha casa. - disse, quando Moacyr Scliar se materializou à minha frente.

-Mas não escrevi só esse livro, sou autor de mais de setenta. (*)

-Sei disso, mas “O Centauro no Jardim” foi incluído na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos pela National Yiddish Book Center, nos Estados Unidos.

-É verdade.

-Moacyr Scliar, você foi alfabetizado em que escola?

-Fui alfabetizado pela minha mãe, Sara Scliar, que era professora primária. Ela era super protetora e super alimentadora, estava sempre com uma colher e uma panela de sopa atrás de mim. Depois, cursei a Escola de Educação e Cultura, conhecida como Colégio Iídiche. Cinco anos depois, em 1948, fui transferido para o Colégio Nossa Senhora do Rosário.

-Um colégio católico. - acrescentou com um sorriso bonachão.

-Os seus ascendentes judaicos vieram de que país?

-Vieram da Bessarábia, em 1904. A Rússia era um país dilacerado por lutas políticas e religiosas; para sobreviverem, os judeus fugiram de lá. O bairro de Bom Fim era uma aldeia de imigrantes judeus encravada em Porto Alegre. Eram casas pobres, eu me lembro que havia muitos ratos. Meu pai, José Scliar, era marceneiro.

-A pobreza empanou o encanto da sua infância?

-De modo algum. A minha infância foi feliz porque havia trocas afetivas. Essas trocas afetivas se consubstanciavam em reuniões das famílias. Não existia ainda a televisão. Assim, todos se juntavam para contar histórias.

-Ganhou-se, por um lado, com o avanço da tecnologia, e perdeu-se muito, por outro. - concluí, enquanto Moacyr Scliar continuava:

-Contar história é a gênese da literatura. Toda a literatura começa com a narrativa. Escutar e contar depois o que se ouviu está no genoma humano. Quando os pais, para levar os filhos para cama, prometem que vão contar uma história, não há criança que resista a esse convite.

-Charles Darwin embalou a infância dos filhos com as histórias da viagem que realizara no navio Beagle, quando tinha 22, 23 anos. - exemplifiquei. (**)

-Os pais, ao contarem histórias para os filhos, estabelecem uma troca emocional e as crianças ficam marcadas pelo resto da vida. Meu pai era um ótimo contador de histórias, muitas delas, ele contou num botequim de Porto Alegre, onde tomava café; eu ia para lá ouvi-lo.

-E a sua mãe?

-Minha mãe me deu o nome Moacyr em homenagem a um personagem de José de Alencar.

-É um nome indígena.

-Minha mãe me deu esse nome depois de ler “Iracema”. Moacir significa “filho da dor”. Os nomes são recados dos pais para os filhos, são ordens a serem cumpridas pelo resto da vida.

-Moacyr, há quem considere árdua a tarefa de escrever.

-Kafka, que foi um escritor notável, chegou a dizer que era um absurdo trocar a vida pelo escrever.

Com tom professoral, Scliar esmiuçou o pensamento de Kafka:

-Ele considerava uma loucura a pessoa deixar de viver, ou seja, de sair com os amigos, de namorar, para ficar em casa, escrevendo.

-Voltaire afirmou que Beaumarchais não se tornaria tão bom quanto Molière, porque gostava demasiadamente de viver.

-Kafka, no entanto, tinha um emprego, era advogado. Para escrever, varava a noite, e publicou pouca coisa em vida. No leito de morte, pediu ao amigo Max Brod que queimasse os seus originais. Como não foi atendido, nós não perdemos a sua fabulosa literatura.

E foi adiante:

-Um dos meus livros se chama “O Texto e a Vida”; e eu digo que não existe oposição entre o texto e a vida. O texto é um segmento da vida, quando escrevo, sinto as emoções de quem vive.

-O Gabriel Garcia Marques se sente flutuando, quando escreve. - aparteei.

-O escritor se delicia com as palavras, quando encontra as certas; sente o fascínio das palavras, como o músico pelas notas musicais e o pintor pelas cores.

-Você se orgulha, então, de ser escritor?

-Evidentemente, mas, no Brasil, a literatura não é sequer considerada uma profissão. Quando eu me hospedava nos hotéis, na ficha de inscrição, eu me identificava como médico, não como escritor. Nas vezes em que preenchi a linha da profissão com a palavra escritor, o funcionário do hotel me olhou feio. “Será que esse sujeito vai pagar a conta?... Não vai saquear o frigobar e sumir na escuridão da noite?...”- pensavam.

-E não seria uma profissão para qualquer um.

-Sim, redigir não é fazer literatura; aprende-se a redigir na escola, nas oficinas literárias. Redigir é expressar corretamente alguma coisa, mas na literatura urge criar.

-Sei que já lhe perguntaram sobre o talento do Paulo Coelho.

-Paulo Coelho é um grande amigo meu, da Academia Brasileira de Letras. Gosto muito de conversar com ele, de ouvi-lo. Certa vez, no exterior, dividimos uma noite de autógrafos; eu, com uma fila pequenina, e ele, com uma fila que dava voltas no quarteirão. Não podemos, no entanto, analisar a obra de Paulo Coelho com os mesmos parâmetros que analisamos, por exemplo, a obra de Machado de Assis. Os livros de Paulo Coelho não são literatura, eles se ajustam na categoria de autoajuda.

-Você se formou médico em 1963 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especializou-se em Saúde Pública, como médico sanitarista. Em 1970, frequentou o curso de pós-graduação em Medicina, em Israel. Também foi professor da Universidade Federal de Ciências e Saúde de Porto Alegre. Por que a Medicina o atraiu?

-Desde garoto, eu tinha medo de doença, não porque eu fosse hipocondríaco. Ficava em pânico quando os meus pais caíam doentes, eu tinha de fazer alguma coisa. Comecei, então, a ler livros sobre o assunto. O lado humanístico da profissão médica me interessou muito, eu tinha sérias restrições sobre o predomínio tecnológico no campo das doenças.

-Não houve choques entre as duas atividades?

-De maneira alguma; comecei, desde menino, escrevendo, e não parei porque me tornei médico. Minha primeira obra, publicada em 1962, se chamou “Histórias de Médico em Formação”.

-Os estudiosos apontam duas influências importantes na sua prolífica obra.

-Vamos lá. - mostrou-se curioso.

-Uma é a sua condição de filhos de imigrantes, que aparece em obras como A Guerra no Bom Fim, O Exército de um Homem Só, O Centauro no Jardim, A Estranha Nação de Rafael Mendes, A Majestade do Xingu. A outra influência é a sua formação de médico sanitarista, que lhe trouxe a intimidade com a doença, com a dor, o sofrimento e a morte. Assim, você teve contato com a realidade brasileira, e isso é perceptível em suas obras ficcionais como A Majestade do Xingu e não ficcionais, como A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura.

-Eu preciso reler minhas obras para saber se eles estão certos ou não. - sorriu.

E arrematou:

-Foram marcantes mesmo essas duas influências.

-Moacyr Scliar, você estava ótimo, quando eu o vi, três anos antes, no programa “Sempre um Papo”, da TV Câmara. Você se mostrou extremamente lúcido, bem-humorado. Vem a morte e o leva.

-Se a minha mãe super protetora estivesse perto de mim, na hora extrema, teria posto a morte para correr.

(*) Não há uma explicação lógica, ou justa, mas há pessoas que ficam estigmatizadas com alguns de seus feitos, como se houvessem existido apenas naquele momento. Thomas Edison é, possivelmente, o maior exemplo, pois lhe irritava ser conhecido apenas como o inventor da lâmpada elétrica, quando tinha mais de 1200 patentes registradas. Outros casos, no campo da representação, são decorrentes de uma identificação a mais entre criador e criatura. James Bond será sempre Sean Connery, Sherlock Holmes será sempre Basil Rathbone.

(**) – Charles Darwin fez uma longa viagem no HMS Beagle: iniciou em 27 de dezembro de 1831 e terminou em outubro de 1836, faltando 4 meses para completar 27 anos, pois nasceu em 12.02.1809. Suas histórias, coletadas ao longo desses quase 5 anos de viagem deviam ser saborosíssimas, exóticas e rocambolescas.

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