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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3837 Data: 29 de agosto de 2011
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61ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA
-Fico envaidecido em receber o autor de “O Centauro no Jardim” em minha casa. - disse, quando Moacyr Scliar se materializou à minha frente.
-Mas não escrevi só esse livro, sou autor de mais de setenta. (*)
-Sei disso, mas “O Centauro no Jardim” foi incluído na lista dos cem melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos pela National Yiddish Book Center, nos Estados Unidos.
-É verdade.
-Moacyr Scliar, você foi alfabetizado em que escola?
-Fui alfabetizado pela minha mãe, Sara Scliar, que era professora primária. Ela era super protetora e super alimentadora, estava sempre com uma colher e uma panela de sopa atrás de mim. Depois, cursei a Escola de Educação e Cultura, conhecida como Colégio Iídiche. Cinco anos depois, em 1948, fui transferido para o Colégio Nossa Senhora do Rosário.
-Um colégio católico. - acrescentou com um sorriso bonachão.
-Os seus ascendentes judaicos vieram de que país?
-Vieram da Bessarábia, em
-A pobreza empanou o encanto da sua infância?
-De modo algum. A minha infância foi feliz porque havia trocas afetivas. Essas trocas afetivas se consubstanciavam em reuniões das famílias. Não existia ainda a televisão. Assim, todos se juntavam para contar histórias.
-Ganhou-se, por um lado, com o avanço da tecnologia, e perdeu-se muito, por outro. - concluí, enquanto Moacyr Scliar continuava:
-Contar história é a gênese da literatura. Toda a literatura começa com a narrativa. Escutar e contar depois o que se ouviu está no genoma humano. Quando os pais, para levar os filhos para cama, prometem que vão contar uma história, não há criança que resista a esse convite.
-Charles Darwin embalou a infância dos filhos com as histórias da viagem que realizara no navio Beagle, quando tinha 22, 23 anos. - exemplifiquei. (**)
-Os pais, ao contarem histórias para os filhos, estabelecem uma troca emocional e as crianças ficam marcadas pelo resto da vida. Meu pai era um ótimo contador de histórias, muitas delas, ele contou num botequim de Porto Alegre, onde tomava café; eu ia para lá ouvi-lo.
-E a sua mãe?
-Minha mãe me deu o nome Moacyr em homenagem a um personagem de José de Alencar.
-É um nome indígena.
-Minha mãe me deu esse nome depois de ler “Iracema”. Moacir significa “filho da dor”. Os nomes são recados dos pais para os filhos, são ordens a serem cumpridas pelo resto da vida.
-Moacyr, há quem considere árdua a tarefa de escrever.
-Kafka, que foi um escritor notável, chegou a dizer que era um absurdo trocar a vida pelo escrever.
Com tom professoral, Scliar esmiuçou o pensamento de Kafka:
-Ele considerava uma loucura a pessoa deixar de viver, ou seja, de sair com os amigos, de namorar, para ficar em casa, escrevendo.
-Voltaire afirmou que Beaumarchais não se tornaria tão bom quanto Molière, porque gostava demasiadamente de viver.
-Kafka, no entanto, tinha um emprego, era advogado. Para escrever, varava a noite, e publicou pouca coisa
E foi adiante:
-Um dos meus livros se chama “O Texto e a Vida”; e eu digo que não existe oposição entre o texto e a vida. O texto é um segmento da vida, quando escrevo, sinto as emoções de quem vive.
-O Gabriel Garcia Marques se sente flutuando, quando escreve. - aparteei.
-O escritor se delicia com as palavras, quando encontra as certas; sente o fascínio das palavras, como o músico pelas notas musicais e o pintor pelas cores.
-Você se orgulha, então, de ser escritor?
-Evidentemente, mas, no Brasil, a literatura não é sequer considerada uma profissão. Quando eu me hospedava nos hotéis, na ficha de inscrição, eu me identificava como médico, não como escritor. Nas vezes em que preenchi a linha da profissão com a palavra escritor, o funcionário do hotel me olhou feio. “Será que esse sujeito vai pagar a conta?... Não vai saquear o frigobar e sumir na escuridão da noite?...”- pensavam.
-E não seria uma profissão para qualquer um.
-Sim, redigir não é fazer literatura; aprende-se a redigir na escola, nas oficinas literárias. Redigir é expressar corretamente alguma coisa, mas na literatura urge criar.
-Sei que já lhe perguntaram sobre o talento do Paulo Coelho.
-Paulo Coelho é um grande amigo meu, da Academia Brasileira de Letras. Gosto muito de conversar com ele, de ouvi-lo. Certa vez, no exterior, dividimos uma noite de autógrafos; eu, com uma fila pequenina, e ele, com uma fila que dava voltas no quarteirão. Não podemos, no entanto, analisar a obra de Paulo Coelho com os mesmos parâmetros que analisamos, por exemplo, a obra de Machado de Assis. Os livros de Paulo Coelho não são literatura, eles se ajustam na categoria de autoajuda.
-Você se formou médico em 1963 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especializou-se
-Desde garoto, eu tinha medo de doença, não porque eu fosse hipocondríaco. Ficava em pânico quando os meus pais caíam doentes, eu tinha de fazer alguma coisa. Comecei, então, a ler livros sobre o assunto. O lado humanístico da profissão médica me interessou muito, eu tinha sérias restrições sobre o predomínio tecnológico no campo das doenças.
-Não houve choques entre as duas atividades?
-De maneira alguma; comecei, desde menino, escrevendo, e não parei porque me tornei médico. Minha primeira obra, publicada em 1962, se chamou “Histórias de Médico em Formação”.
-Os estudiosos apontam duas influências importantes na sua prolífica obra.
-Vamos lá. - mostrou-se curioso.
-Uma é a sua condição de filhos de imigrantes, que aparece em obras como A Guerra no Bom Fim, O Exército de um Homem Só, O Centauro no Jardim, A Estranha Nação de Rafael Mendes, A Majestade do Xingu. A outra influência é a sua formação de médico sanitarista, que lhe trouxe a intimidade com a doença, com a dor, o sofrimento e a morte. Assim, você teve contato com a realidade brasileira, e isso é perceptível em suas obras ficcionais como A Majestade do Xingu e não ficcionais, como A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura.
-Eu preciso reler minhas obras para saber se eles estão certos ou não. - sorriu.
E arrematou:
-Foram marcantes mesmo essas duas influências.
-Moacyr Scliar, você estava ótimo, quando eu o vi, três anos antes, no programa “Sempre um Papo”, da TV Câmara. Você se mostrou extremamente lúcido, bem-humorado. Vem a morte e o leva.
-Se a minha mãe super protetora estivesse perto de mim, na hora extrema, teria posto a morte para correr.
(*) Não há uma explicação lógica, ou justa, mas há pessoas que ficam estigmatizadas com alguns de seus feitos, como se houvessem existido apenas naquele momento. Thomas Edison é, possivelmente, o maior exemplo, pois lhe irritava ser conhecido apenas como o inventor da lâmpada elétrica, quando tinha mais de 1200 patentes registradas. Outros casos, no campo da representação, são decorrentes de uma identificação a mais entre criador e criatura. James Bond será sempre Sean Connery, Sherlock Holmes será sempre Basil Rathbone.
(**) – Charles Darwin fez uma longa viagem no HMS Beagle: iniciou em 27 de dezembro de 1831 e terminou em outubro de 1836, faltando 4 meses para completar 27 anos, pois nasceu em 12.02.1809. Suas histórias, coletadas ao longo desses quase 5 anos de viagem deviam ser saborosíssimas, exóticas e rocambolescas.
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