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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4102 Data: 31 de dezembro de 2012
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SABADOIDO GLICOSADO
PARTE II
Eu já ouvia a voz da Gina vinda do
quintal da casa, enquanto o Claudio arrumava as sacolas das compras na
despensa. Estranhamente, ela tardava a aparecer, peguei, então, o Globo e
adiantei-me na leitura da coluna do Jorge Bastos Moreno, que costumo ler em
casa à tarde.
-Vagner apagou, mas já está bem. - disse
ela, entrando na cozinha.
-Gina, eu trouxe o aparelho de medição
de glicose.
-Carlinhos, eu nunca usei esse aparelho.
-Há uma folha que resume todo o manual
de instruções. - incentivei-a enquanto abria uma pequena bolsa com os
componentes do aparelho mais um encarte com os procedimentos a serem feitos.
Ela examinou, sem alterar a expressão do
rosto, enquanto eu lhe mostrava uma lanceta e lhe dizia o óbvio, que aquilo era
para espetar o dedo.
-Carlinhos, eu não quero experimentar e
perder essas tirinhas onde se põe a gota de sangue, que são descartáveis.
-Eu posso estar exagerando na dieta,
quero, por isso, saber logo em quanto está o meu nível de glicose. Como deu 142
na época em que eu bebia diariamente um copo de vinho e comia um ou dois tabletes
de chocolate amargo do Mundo Verde, acredito que não passa, agora, de 110.
-Daqui a pouco o Luca estará aqui e,
como ele monitora a diabetes da Glória, ele nos mostrará como se usa.
-O problema é que o Luca confessa que
tem medo de injeção, ele não conseguirá espetar o meu dedo. - previ com uma
capacidade digna do ministro Guido Mantega, como se verá mais tarde.
Abruptamente, o telefone tocou. Era ele
que anunciava a sua presença no portão. Gina saiu com o molho de chaves e eu
reiniciei a coluna do Jorge Bastos Moreno que narrava um insólito jantar dele
com uma suposta alemã e mais o Fernando Henrique Cardoso, que foi chamado para
participar e servir de intérprete.
A voz do Luca me chegava aos ouvidos;
falava do ar condicionado da sua casa de 12 mil BTU, diuturnamente ligado para
neutralizar a canícula que assola os cariocas.
Era melhor eu participar logo daquela última
sessão do Sabadoido de 2012.
A conversação corria animada e eu
reparava que na mesinha, entre mim e o Luca, estava um livro do Luís Fernando
Veríssimo. Percebendo a minha atenção, Luca disse que a Rosa esculhambou com o
autor.
-Se ele lesse a “Inveja” do Zuenir
Ventura, que minha sobrinha me deu no Natal de 2011... Só cheguei à última
página porque era um presente da Verônica. - pensei com os meus botões.
Eu precisava de uma brecha para falar do
medidor de glicose e levar o Luca até a cozinha juntamente com a minha cunhada.
Quando meu irmão se levantou da cadeira, aproveitei a oportunidade.
-Tem de ser em jejum, Carlinhos. - disse
ele, já caminhando para a mesa onde se achava o medidor.
-Um caderninho com uma tabela mostra
que, depois do café da manhã, também pode medir o nível de glicose. - contrapôs
a Gina.
Luca perscrutou o aparelho, informou que
era diferente do que tinha em
casa. Gina , no entanto, descobriu o funcionamento de uma
peça, mas ainda era pouco. Ele telefonou, então, para a esposa, que lhe passou
algumas instruções.
-O Carlinhos é macho; vou espetar o dedo
dele com a agulha.
Cacete! Que agulhada! Eu, que pensava em
medir a taxa de glicose de 10 em 10 dias, passei a considerar a medição mensal.
Colocada a minha gota de sangue na tirinha, o visor apresentou erro.
-Vamos tentar de novo. - animou-se ele,
dando-me outra agulhada.
Erro de novo.
-Vamos nós três lá em casa tirar no
aparelho das Glória. Será tudo rapidinho, logo estaremos de volta.
Enquanto rumávamos para o seu carro,
Claudio afirmava que a bebida já estaria no fim quando ele retornasse.
No carro, eu aventei a hipótese de
utilizarmos o segundo furo no meu dedo, pois ainda gotejava sangue quando
espremido. Luca sorriu fazendo mofa de mim.
Mal entramos no seu apartamento, fomos
carinhosamente recebidos pela Glória, amiga de infância da Gina. Notei, na
estante, um quadro em que a Kiara,
serviu de modelo. Gina, quando o viu, logo se manifestou.
-A Kiarinha... Muito bem desenhado.
-Foi um caricaturista, desenhista. -
informou a Glória.
-Com poucos traços, ele caracterizou
muito bem a Kiara. - admirou-se a Gina.
Enquanto isso, Luca me mostrava, também
na estante, obras artísticas que representavam o seu ídolo Carlos Drummond de
Andrade.
-Depois dizem que eu sou fixado apenas
no Chico Buarque de Holanda. - queixou-se.
A Glória já havia pegado o seu aparelho,
e a Gina, juntamento com o Luca, passaram a entender o meu comparando um com o
outro.
Depois de tudo preparado, o Luca disse
que eu mesmo poderia lancetar meu dedo, com o dispositivo dela, pois não
doeria. De fato, parecia uma picada de mosquitinho inofensivo.
-Coloque a gotinha nessa parte abóbora.
- orientou-me a Glória.
Obedeci, e o visor indicou 101.
-Ótimo, Carlinhos, ainda mais que você
não está em jejum. - vibrou o Luca.
-E eu me privando de tantas coisas... -
lamentei.
-Podemos agora tirar no seu. - disse-me
a Gina que, com o Luca, aprendeu a manejá-lo.
Piquei-me e coloquei o dedo lancetado na
tal tirinha sem poder retirá-lo (a única diferença para o aparelho da Glória),
enquanto se iniciava, pelo visor, uma contagem regressiva de 10 segundos.
-100; a mesma coisa, praticamente. Disse
a Gina.
Cumprida a missão, era hora de
retornarmos ao Sabadoido. Luca já estava na porta do elevador, conversando com
cinco jovens bonitas que partiam para a praia.
Aproximei-me.
-Carlinhos, essa menina aqui é médica do
Salgado Filho.
-Meus parabéns.
-Na verdade, eu sou residente. -
disse-me ela.
Gina e Glória, enquanto isso,
conversavam com um ímpeto de duas amigas que cresceram praticamente juntas.
-Gina, o elevador vai chegar. - gritou o
Luca.
O que veio lotou com as cinco raparigas
em flor (lembrando o nome de um dos livros de Marcel Proust). Nós descemos no
elevador seguinte.
-Vocês viram esse neurocirurgião que
faltou ao plantão de Natal no Hospital Salgado Filho? - foi a pergunta feita no
carro.
-Ele já vinha faltando desde agosto. -
manifestou-se o Luca.
-Querem agora culpar o Doutor Renato,
que operou o Claudio, e é o papa da neurocirurgia. - indignou-se a Gina.
-O que tem o Doutor Renato? - mostrei-me
curioso.
-Ele é o chefe da neurocirurgia do
Salgado Filho. - esclareceu-me a Gina.
Quando chegamos ao Sabadoido, dirigi-me
ao meu irmão:
-Estou liberado para beber tudo o que
você tem.
-As garrafas já foram esvaziadas. -
informou.
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