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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4098 Data: 24 de dezembro de 2012
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SABADOIDO MUSICAL
Calma, Dieckmann, não se assuste com o
título, não fuja desta edição do Biscoito Molhado, pois ninguém cantou música
depressiva. Nessa sessão, murmuram, cochicharam, falaram, gritaram, até
esbravejaram, mas ninguém cantou nem mesmo canções natalinas apesar da data.
Vagner apareceu com uma revista que
destacava na capa os 300 maiores cantores da música popular brasileira. Por que
300?... Talvez o formulador daquela lista fosse fixado nos feitos dos 300 de
Esparta.
Vagner estendeu o braço e,
primeiramente, entregou a publicação ao Luca, indicando as páginas a serem
lidas e pronunciando o nome do compositor Chico Buarque. Luca, que falava
enfaticamente sobre os crimes nas caixas eletrônicas do banco, só segurou a
revista, percebendo que aquela leitura nada tinha a ver com o seu discurso,
Gina se esticou, pegou a revista e olhou rapidamente uma e outra página.
De pé, com um cartão magnético do
Unibanco na mão e substituindo os aparelhos dos criminosos pelo seu celular,
Luca passou a demonstrar, enquanto todos o acompanhavam alerta, a atuação da
bandidagem.
-”E, assim, eles clonam seu cartão. -
disse.
-Isso é o chupa-cabra. - disse a Gina.
-Não é o chupa-cabra, Gina. - retrucou o
Luca.
-Então, é o chupa-bode.
Eu não esperava essa piada da minha
cunhada, apesar da sua verve satírica, por isso ri e fui acompanhado por todos,
com exceção de um.
-Eu vou lhe mostrar como é o
chupa-cabra.
E Luca, agora, simulava como as pessoas
de caráter duvidoso que trabalhavam com pagamentos através de cartões
magnéticos, usavam o chupa-cabra. Seu celular, nesse caso, atuou também no
papel de chupa-cabra.
Nesse ínterim, a revista do Vagner se
encontrava nas minhas mãos e eu a folheei para encontrar logo o rol dos 300
maiores cantores da música popular brasileira. A minha primeira impressão foi
excelente e logo a expus:
-Boa, Vagner, a revista coloca o João
Gilberto na décima terceira colocação. Eu não concebo que a voz dele esteja
entre as três melhores da nossa música popular.
No entanto, a decepção não tardou;
Elizeth Cardoso se achava no vigésimo quinto lugar e Orlando Silva em trigésimo
oitavo.
-Não se pode levar a sério uma lista que
não coloque o Orlando Silva entre os dois maiores cantores da música popular
brasileira. - declarei, enquanto devolvia ao Vagner a sua publicação.
Gina já fizera a sua piada, por isso
voltou para dentro de casa com a sensação do dever cumprido, enquanto o
Claudio, minutos depois, a acompanhava porque o Vagner pediu um copo d' água.
-Cadê o Lopo? - quis saber o Vagner.
-O Lopo se encontrou ontem com o filho e
ficou com ele, volta amanhã pra cá.
-Ele devia estar aqui. - queixou-se o
Luca.
Vagner concordou com ele.
-Carlinhos, a Rosa me deu de Natal este
livro do Rainer Maria Rilke.
Ao ouvir o nome do poeta, eu me animei.
-Uma amiga minha de trabalho, anos
atrás, emprestou-me obras de Rainer Maria Rilke muito bem traduzidas. O
tradutor mostrava até o texto original, em alemão, para indicar que o poeta,
por exemplo, recorrera a onomatopeia para acentuar o som das castanholas em
versos sobre uma espanhola.
Nesse instante, meu irmão chegou com o
copo de água do Vagner e mais dois copos com outro líquido.
-Claudiomiro, ganhei uma edição bilíngue
das poesias do Rainer Maria Rilke, vou ler, primeiramente, em alemão. -
pilheriou.
Em seguida, passou-me às mãos um
envelope lacrado por uma borboleta; era o presente de Natal da Rosa para mim.
Enquanto ele tecia considerações freudianas sobre a borboleta, pus-me a abrir
meticulosamente o mimo. Como o Luca, no telefonema do dia anterior, dia do seu
aniversário, falara em presente para nós dois e só citou, com ênfase redobrada,
o poeta nascido em Praga que escreveu em alemão como Kafka, que fiquei com a
certeza que também ganharia as poesias. Ao retirar o livro de dentro do
envelope, deparei-me não com Rainer Maria Rilke, mas com Leonel Brizola.
Tratava-se da resistência do governador
do Rio Grande do Sul à pretensão dos militares de não empossarem o
vice-presidente João Goulart depois da renúncia do Jânio Quadros. Flávio
Tavares, participante do “Movimento da Legalidade”, narrou aqueles dias
angustiantes da política brasileira.
Fatos históricos também me atraem e
enviei agradecimentos à Rosa pelo Luca.
Terei de ler rápido para emprestar ao
Claudio, o único brizolista daqui. - pensei sem me manifestar.
Chegou o momento da sabatina.
-De quem é essa música? - perguntou meu
irmão, que passou a cantar, sem o vozeirão do Tom Jones, a música do filme What's
New Pussycat?
-Henry Mancini. - respondemos eu e Luca,
um induzindo o outro ao erro.
-Burt... - deu a dica com a expressão zombeteira.
-Burt Bacharach - respondi seguido pelo
Luca.
Pretendia me deter na turnê que fizera
pelo Brasil como pianista da Marlene Dietrich, quando tomou contato com a Bossa
Nova, mas o Claudio já discorria sobre Henry Mancini.
-Para mim, foi o maior compositor de
filmes que existiu.
Considerei exagerada a afirmação do
Claudio.
-Veja bem; com as perseguições de
Hitler, na Europa, fugiram para os Estados Unidos compositores, que se
dedicariam ao cinema, de enorme talento.
-Também diretores como Billy Wilder e
Otto Preminger, mas, em termos de música, ninguém superou Henry Mancini.
-Bernard Herrmann marcou Hollywood com
suas composições. - contrapus erradamente, pois ele era americano.
Claudio voltou à sabatina, cantando um
baião extremamente popular.
-Quem é o compositor?
Todos responderam Luiz Gonzaga e ele
rebateu, com a expressão vitoriosa:
-Zé Dantas.
-Zé Dantas, Luiz Gonzaga, são a mesma
coisa. - argumentou o Luca.
Meu irmão prosseguiu:
-Eu ouvia um programa que falava do
“Luar de Sertão” e do Catulo da Paixão Cearense...
-A música é do João Pernambuco, que o
Catulo da Paixão Cearense roubou e, depois, teve de devolver. -intervim com
veemência.
-Mas a letra é do Catulo. - disse
serenamente para, em seguida, perguntar:
-Vocês sabem quais os cantores que
gravaram o “Luar do Sertão”, segundo esse programa?
Era uma pergunta retórica, pois seguiu
adiante.
-Tito
Schipa e Beniamino Gigli.
-Isso é com o Carlinhos. - passou o Luca
a palavra para mim.
-Os dois tenores eram ídolos do papai,
que eu herdei. Gostaria de ouvir essas gravações.
Em seguida, reportou-se aos parceiros
injustiçados, aqueles que não são citados pelos disk jockeys.
-Chico Buarque matou todos os parceiros
dele, só o Tom Jobim não foi morto. - carregou meu irmão nas tintas.
-Há muitas composições do Noel Rosa, com
parceiros, em que só o nome dele é citado.
Para ilustrar o que eu dissera, citei um
programa de televisão em que a Aracy de Almeida discorreu sobre as músicas que
o Poeta da Vila criou sem parceria, o que levou o decano sambista Moreira da
Silva a retrucar com veemência. Ela se retirou intempestivamente do programa,
enquanto seu contestador rezingava sobre as suas mentiras.
Quando se falou em política, Luca
gesticulou tanto que o seu copo de caipirovska se estilhaçou no chão.
Era hora de se dar por encerrada aquela
sessão do Sabadoido da semana de Natal.
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