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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

2298 - chupa-cabra

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4098                    Data: 24  de dezembro de 2012
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SABADOIDO MUSICAL

Calma, Dieckmann, não se assuste com o título, não fuja desta edição do Biscoito Molhado, pois ninguém cantou música depressiva. Nessa sessão, murmuram, cochicharam, falaram, gritaram, até esbravejaram, mas ninguém cantou nem mesmo canções natalinas apesar da data.
Vagner apareceu com uma revista que destacava na capa os 300 maiores cantores da música popular brasileira. Por que 300?... Talvez o formulador daquela lista fosse fixado nos feitos dos 300 de Esparta.
Vagner estendeu o braço e, primeiramente, entregou a publicação ao Luca, indicando as páginas a serem lidas e pronunciando o nome do compositor Chico Buarque. Luca, que falava enfaticamente sobre os crimes nas caixas eletrônicas do banco, só segurou a revista, percebendo que aquela leitura nada tinha a ver com o seu discurso, Gina se esticou, pegou a revista e olhou rapidamente uma e outra página.
De pé, com um cartão magnético do Unibanco na mão e substituindo os aparelhos dos criminosos pelo seu celular, Luca passou a demonstrar, enquanto todos o acompanhavam alerta, a atuação da bandidagem.
-”E, assim, eles clonam seu cartão. - disse.
-Isso é o chupa-cabra. - disse a Gina.
-Não é o chupa-cabra, Gina. - retrucou o Luca.
-Então, é o chupa-bode.
Eu não esperava essa piada da minha cunhada, apesar da sua verve satírica, por isso ri e fui acompanhado por todos, com exceção de um.
-Eu vou lhe mostrar como é o chupa-cabra.
E Luca, agora, simulava como as pessoas de caráter duvidoso que trabalhavam com pagamentos através de cartões magnéticos, usavam o chupa-cabra. Seu celular, nesse caso, atuou também no papel de chupa-cabra.
Nesse ínterim, a revista do Vagner se encontrava nas minhas mãos e eu a folheei para encontrar logo o rol dos 300 maiores cantores da música popular brasileira. A minha primeira impressão foi excelente e logo a expus:
-Boa, Vagner, a revista coloca o João Gilberto na décima terceira colocação. Eu não concebo que a voz dele esteja entre as três melhores da nossa música popular.
No entanto, a decepção não tardou; Elizeth Cardoso se achava no vigésimo quinto lugar e Orlando Silva em trigésimo oitavo.
-Não se pode levar a sério uma lista que não coloque o Orlando Silva entre os dois maiores cantores da música popular brasileira. - declarei, enquanto devolvia ao Vagner a sua publicação.
Gina já fizera a sua piada, por isso voltou para dentro de casa com a sensação do dever cumprido, enquanto o Claudio, minutos depois, a acompanhava porque o Vagner pediu um copo d' água.
-Cadê o Lopo? - quis saber o Vagner.
-O Lopo se encontrou ontem com o filho e ficou com ele, volta amanhã pra cá.
-Ele devia estar aqui. - queixou-se o Luca.
Vagner concordou com ele.
-Carlinhos, a Rosa me deu de Natal este livro do Rainer Maria Rilke.
Ao ouvir o nome do poeta, eu me animei.
-Uma amiga minha de trabalho, anos atrás, emprestou-me obras de Rainer Maria Rilke muito bem traduzidas. O tradutor mostrava até o texto original, em alemão, para indicar que o poeta, por exemplo, recorrera a onomatopeia para acentuar o som das castanholas em versos sobre uma espanhola.
Nesse instante, meu irmão chegou com o copo de água do Vagner e mais dois copos com outro líquido.
-Claudiomiro, ganhei uma edição bilíngue das poesias do Rainer Maria Rilke, vou ler, primeiramente, em alemão. - pilheriou.
Em seguida, passou-me às mãos um envelope lacrado por uma borboleta; era o presente de Natal da Rosa para mim. Enquanto ele tecia considerações freudianas sobre a borboleta, pus-me a abrir meticulosamente o mimo. Como o Luca, no telefonema do dia anterior, dia do seu aniversário, falara em presente para nós dois e só citou, com ênfase redobrada, o poeta nascido em Praga que escreveu em alemão como Kafka, que fiquei com a certeza que também ganharia as poesias. Ao retirar o livro de dentro do envelope, deparei-me não com Rainer Maria Rilke, mas com Leonel Brizola.
Tratava-se da resistência do governador do Rio Grande do Sul à pretensão dos militares de não empossarem o vice-presidente João Goulart depois da renúncia do Jânio Quadros. Flávio Tavares, participante do “Movimento da Legalidade”, narrou aqueles dias angustiantes da política brasileira.
Fatos históricos também me atraem e enviei agradecimentos à Rosa pelo Luca.
Terei de ler rápido para emprestar ao Claudio, o único brizolista daqui. - pensei sem me manifestar.
Chegou o momento da sabatina.
-De quem é essa música? - perguntou meu irmão, que passou a cantar, sem o vozeirão do Tom Jones, a música do filme What's New Pussycat?
-Henry Mancini. - respondemos eu e Luca, um induzindo o outro ao erro.
-Burt... - deu a dica com a expressão zombeteira.
-Burt Bacharach - respondi seguido pelo Luca.
Pretendia me deter na turnê que fizera pelo Brasil como pianista da Marlene Dietrich, quando tomou contato com a Bossa Nova, mas o Claudio já discorria sobre Henry Mancini.
-Para mim, foi o maior compositor de filmes que existiu.
Considerei exagerada a afirmação do Claudio.
-Veja bem; com as perseguições de Hitler, na Europa, fugiram para os Estados Unidos compositores, que se dedicariam ao cinema, de enorme talento.
-Também diretores como Billy Wilder e Otto Preminger, mas, em termos de música, ninguém superou Henry Mancini.
-Bernard Herrmann marcou Hollywood com suas composições. - contrapus erradamente, pois ele era americano.
Claudio voltou à sabatina, cantando um baião extremamente popular.
-Quem é o compositor?
Todos responderam Luiz Gonzaga e ele rebateu, com a expressão vitoriosa:
-Zé Dantas.
-Zé Dantas, Luiz Gonzaga, são a mesma coisa. - argumentou o Luca.
Meu irmão prosseguiu:
-Eu ouvia um programa que falava do “Luar de Sertão” e do Catulo da Paixão Cearense...
-A música é do João Pernambuco, que o Catulo da Paixão Cearense roubou e, depois, teve de devolver. -intervim com veemência.
-Mas a letra é do Catulo. - disse serenamente para, em seguida, perguntar:
-Vocês sabem quais os cantores que gravaram o “Luar do Sertão”, segundo esse programa?
Era uma pergunta retórica, pois seguiu adiante.
-Tito Schipa e Beniamino Gigli.
-Isso é com o Carlinhos. - passou o Luca a palavra para mim.
-Os dois tenores eram ídolos do papai, que eu herdei. Gostaria de ouvir essas gravações.
Em seguida, reportou-se aos parceiros injustiçados, aqueles que não são citados pelos disk jockeys.
-Chico Buarque matou todos os parceiros dele, só o Tom Jobim não foi morto. - carregou meu irmão nas tintas.
-Há muitas composições do Noel Rosa, com parceiros, em que só o nome dele é citado.
Para ilustrar o que eu dissera, citei um programa de televisão em que a Aracy de Almeida discorreu sobre as músicas que o Poeta da Vila criou sem parceria, o que levou o decano sambista Moreira da Silva a retrucar com veemência. Ela se retirou intempestivamente do programa, enquanto seu contestador rezingava sobre as suas mentiras.
Quando se falou em política, Luca gesticulou tanto que o seu copo de caipirovska se estilhaçou no chão.
Era hora de se dar por encerrada aquela sessão do Sabadoido da semana de Natal.

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