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segunda-feira, 16 de abril de 2012

2128 - preconceitos caninos

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3928 10 de abril de 2012

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TÁXI NÃO TAXIA

-Lá estava eu, no táxi 134, dirigido pelo Bob Esponja. Conversávamos sobre os lugares que choveu e onde não caiu um só pingo d' água naquele dia. Eu tinha uma nítida desvantagem na discussão desse assunto, trabalhando numa sala e ele, nas ruas. De repente, o carro da frente convergiu a nossa atenção; dobrava à esquerda, manobra que o Bob Esponja também faria.

-Meu Deus!... Há gente que precisa de um século para fazer uma curva. - lamentou com a cabeça abaixada, o queixo quase tocando o volante.

Finalmente, conseguiram fazer a curva, Bob Esponja, então, guiou para também dobrar à esquerda, quando recebeu uma fechada desse mesmo carro que, tardiamente, acionara a seta para avisar que faria outra curva para estacionar defronte o portão de uma casa.

-O que a maconha faz com a cabeça das pessoas. - disse ele para mim.

Mantive-me calado, pois sei que o Bob Esponja é uma pessoa que mais gosta de falar do que de ouvir.

-O motorista é viciado num baseado, o carona também. Não me dou com eles, mas conheço bastante os dois. Afinal, dez anos rodando de táxi por Maria da Graça me deu um bom conhecimento sobre os usos e costumes dos moradores do bairro.

-Ontem, pela primeira vez eu viajei num táxi dirigido por uma mulher. Ela dirigiu direitinho, sem exagerar na velocidade.

-Ainda bem.

E comentou:

-A taxista daqui (Cooperativa Metrô-Táxi) arruma confusão todos os dias. Vive batendo com o carro e deixa o marido uma fera.

Os comentários sobre a taxista já foram feitos na Rua Modigliani. Saltei e lhe desejei um bom serviço, sem motoristas com muita maconha na cabeça pelo caminho.

Pensava em Godard, que filmou São José como taxista e a Virgem Maria como jogadora de basquete. Talvez o pai do Messias me conduzisse, nesse momento, até o segundo poste da Rua Modigliani. E a Flor do 86 a desconsiderar os taxistas...

Fui atropelado no dia 5 de abril de 1986 carregando um envelope com a revista “Afinal” dentro dele. A revista fechou as portas, mas eu mantive as minhas abertas. Nesse exemplar, havia uma chamada na capa sobre esse filme do cineasta franco-suíço, chamado “Je Vous Salue, Marie.”

Disseram que o governo Sarney exterminara com a censura, mas o seu ministro da Justiça, Fernando Lira, viu-se obrigado pela Igreja a impedir que “Je Vous Salue, Marie” chegasse ao Brasil. Fernando Gabeira trouxe, então, clandestinamente, uma cópia da fita em forma de fita VHS para o nosso país, e convocou os amigos. Houve denúncia e, no meio do filme, a casa foi invadida por policiais armados.

-Pelo amor de Deus não atirem, temos filhos. - pediu aquele que, um dia, participou do grupo que sequestrou o embaixador dos Estados Unidos.

Voltando ao envelope. Estava eu no hospital Salgado Filho, sem ninguém saber de mim, quando meu irmão Cláudio, ao ser informado sobre um atropelamento e receber o envelope da revista com a reportagem da fita, recolhido do asfalto, abriu-o e se deparou com o meu nome de assinante. Suou frio; parecia que estava prevendo que a revista iria à falência e que eu perderia dinheiro por ter pago adiantado a assinatura.

Por que estou recordando isso tudo? Porque peguei um táxi em Maria da Graça com um motorista desconhecido, que não diz uma só palavra. Deve ser mudo.

Faltavam uns 10 minutos para as 6 horas da manhã e eu me vestia para o trabalho, enquanto espiava a rua da janela do meu quarto. De repente, um tiro ressoa como uma bomba porque tudo além estava em silêncio. Outro tiro. Um cidadão que caminhava placidamente pela Rua Braque, acelerou as passadas no primeiro tiro, no segundo, correu. O vizinho de um dos apartamentos do bloco ao lado, um sujeito carrancudo, em vez de fechar o portão às suas costas, fechou-o à sua frente, ou seja, desistiu de sair de casa temporariamente. Eu, que já estava debruçado na janela, descobri que chegaria muito adiantado ao trabalho caso fosse à rua naquela hora.

Uma patrulha, vinda da Rua Sisley, passou pela Rua Modigliani e dobrou na Rua Braque, outra desceu pela Rua Vlaminck, as duas com o cano de um fuzil à mostra. Uma terceira surgiu, parou na Modigliani e um policial desceu para examinar o pequeno contêiner de lixo.

-Será que ele procura a arma do atirador? - intriguei-me, enquanto a minha mãe falava sobre tiros e policiais.

Passaram alguns minutos e o vizinho do quarto andar foi à rua com o poodle que, a essa hora, passeia sempre com a sua dona.

Não ficarei em casa com medo, como a dona do cachorro e, seguindo o exemplo corajoso do seu esposo, saí e rumei para a estação do metrô de Del Castilho. Quando percorri a Rua Van Gogh, que costuma ser o ponto do Bob Esponja, Meu Nobre, Cunhado da Ivete e outros taxistas conhecidos meus, às 6 horas da manhã, não encontrei um só carro.

-Não faz mal, quando eu voltar do trabalho de Maria da Graça para casa, certamente eles me contarão sobre o ocorrido. - previ.

Umas dez horas depois, isso aconteceu.

-Praça Mané? - perguntou o 179 quando eu entrei no seu táxi.

Depois de confirmar o percurso, falei sobre os tiros ouvidos na pracinha.

-Foi um tiroteio entre a polícia e um bando que costumava assaltar nas proximidades. Dois bandidos foram mortos.

Eu soube, assim, que, além dos “Tiros sobre a Broadway” de Woody Allen, havia os “Tiros sobre a Praça Mané”.

No dia seguinte, o taxista era o mesmo, o 179. Evitei o assunto insegurança no Rio de Janeiro, pois poderia descer do carro imaginando que estivesse na Síria. Preferi falar sobre as horas.

-Ainda faltam 20 minutos para as 5 horas da tarde. Eu prefiro chegar com 1 hora de antecedência ao serviço para descontar esse tempo na saída.

-Você acorda 5 horas da manhã? - mostrou curiosidade.

-Geralmente, estou com cerca de 30 minutos de caminhada nessa hora.

-Não é perigoso?

Consegui evitar que a conversa deslocasse para a violência no Rio de Janeiro.

-Não; até vejo casos engraçados. Caminhava eu, hoje, pela calçada da catedral do bispo Macedo, quando ultrapassei um senhor que ia a um posto de gasolina com dois cachorros. De repente, vejo que um sujeito mal vestido seguia uns 80 metros à minha frente. Sinto, então, um barulho ameaçador: eram os cachorros que passaram ventando por mim e foram atacar o tal sujeito maltrapilho.

-Até os cachorros são preconceituosos. - concluiu ele.

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