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terça-feira, 10 de abril de 2012

2125 - mais sobre os barracos na Paris d'antanho

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3925 Data: 07 de abril de 2012

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PERDIDOS NO TEMPO

PARTE II

Diante da imensa pintura “La Liberté Guidand le Peuple”, ficamos eu e o Elio extasiados; minutos depois, recobrei a fala.

-Terminei há pouco de ler uma biografia de Chopin e o autor escreveu que você se inspirou na revolução de 1848 para pintar esta obra.

-As pessoas deveriam ser mais cuidadosas nas suas pesquisas. - afirmou o grande pintor.

-Pesquisam só pela internet. - manifestei-me com um acento desdenhoso.

-O que é internet?

-Nem procure saber, Seu Delacroix. - aconselhou-o o Elio.

-Aquele homem nu da cintura para baixo. - apontei para a pintura.

-Era muita miséria em 1831. Morto, as calças já não lhe serviam mais, levaram-nas.

-E a miséria continuou. - interveio o Elio.

-Sim, por isso estourou esta revolução que se iniciou como manifestações de desagrado.

-Aquele garoto com uma pistola, do lado da Liberdade com um seio desnudo, que segue adiante, foi uma ideia sua genial. - teceu-lhe elogios o Elio Fischberg.

-Os garotos parisienses não ficam indiferentes aos acontecimentos, eles participam com a experiência que adquirem nas ruas. Minha pretensão foi homenageá-los.

-Victor Hugo se inspirará na sua pintura para criar um dos mais representativos personagens literários: Gavroche, de “Os Miseráveis”.

-Victor Hugo está escrevendo sobre esta revolução? Sei que ele é republicano.

-Não; ele escreverá uma obra-prima, mas o cenário do Gavroche é de 1831, embora ele narre até a Batalha de Waterloo, em 1815. - esclareci.

-A George Sand, afinal, é socialista cristã ou comunista? - quis saber o Elio.

-Em se tratando das suas propriedades, ela é socialista cristã, mas no que diz respeito às propriedades dos outros, ela é comunista.

-O seu amigo não está de todo errado. - sorriu Delacroix, olhando marotamente para mim.

-Você era amigo do casal antes do rompimento?

-Eu, na verdade, sou amigo do Chopin, mas não nego que George Sand cuidou muito bem dele, uma criatura tomada pela peste branca desde jovem. George Sand trazia uma energia vulcânica; ela já escreveu um número assombroso de romances, além de trabalhar como enfermeira de um gênio.

-Sim, gênio ele, não ela. - fiz a ressalva.

-Considerei, no entanto, a separação desumana, por parte de George Sand e escrevi isso.

-Chopin se interessa por política? Ele está do lado do povo? - cumulou-o o Elio de perguntas.

E Eugène Delacroix se pôs a satisfazer a curiosidade do Elio Fischberg.

-Ele se interessou por política quando sofria uma forte influência da George Sand pela proximidade.

-Então, não era influência, era contágio. - pensei sem me manifestar.

O grande pintor prosseguiu:

-Assim, eles foram morar na praça d' Orléans, onde convergiam em incontáveis saraus a política e a cultura. Lá, o poeta Heine discorreu sobre as aspirações liberais de franceses e alemães, além de apresentar Karl Marx a George Sand. Também por lá estiveram Leroux, Blanc, Arago, Ledru Rollin, o poeta Lamartine. Alguns, eu suponho, sairão com poder desta revolução.

-O poeta Lamartine, certamente.

-Espero que sim, pois ele não pertence a esse grupo de jacobinos frustrados com ideias de 1792.

-Esqueceu-se de Saint-Simon e Proudhon.

-Ah, sim; dois importantes socialistas dessa causa. Proudhon disse que toda propriedade era um roubo. Uma frase para assustar a burguesia.

-Porém, Delacroix, Karl Marx se desentendeu com ele. - intervim.

-Marx, na realidade, considerava todos esses socialistas nefelibatas. - afirmou Delacroix. (*)

-Proudhon escreveu “A Filosofia da Miséria”, e Karl Marx arrasou suas ideias no livro “A Miséria da Filosofia”.

-Está conhecendo o assunto... - sussurrou-me o Elio, enquanto me cutucava.

-Não fui atrás das costureiras no dia dessa aula. - sussurrei de volta.

-Devo-lhe uma resposta sobre a posição de Chopin ante esta revolução.

-Sim. - confirmou o Elio com alguma ansiedade.

-Chopin me disse que desde que os alunos continuem frequentando as suas aulas e pagando-lhe bem, o resto não interessa.

-A proximidade de George Sand do poder e de alguns dos seus amigos, alguns ex-amantes dela, o aborrecem. - imaginei.

-Bem, amigos, vocês me desculpem, mas tenho de trabalhar.

-Os modelos esperam pelo seu pincel. - afirmou o Elio com o ar mais pueril, sem notar o sentido dúbio das suas palavras.

Na rua, agora com menos tumulto, resolvemos voltar à casa de Chopin. À proporção que nos aproximávamos, um som de piano se tornava mais audível para nós.

-Sempre soube que Chopin era um excepcional pianista, não um fenômeno como Franz Liszt...

-Por que, Carlos, ele não está tocando bem?

Um berro vindo de dentro da casa nos arrepiou?

-O que é isto?... Um cachorro latindo?...

-Elio, vamos nos afastar porque Chopin está dando esporro num dos seus alunos.

Pulando cadáveres sem calças espalhados pelas ruas de Paris, conseguimos encontrar uns poucos francos franceses. O ópio que compramos e fumamos foi tão pouco que não saímos do lugar, apenas avançamos alguns meses.

- Amigo, como anda a Revolução?

-Vocês integram que facção política? - perguntou-nos com desconfiança.

-Somos brasileiros da distante Minas Gerais, apenas observamos os acontecimentos, nada mais. - acalmou-o o Elio Fischberg.

Ele, então, nos atendeu.

-Os comunistas se assanharam e quase tomaram o poder. Para manter as coisas nos eixos, a Assembleia Constituinte decretou estado de sítio e nomeou o ministro da Guerra, general Louis-Eugène Cavaignac (cavainhaque) chefe do poder, concedendo-lhe todos os meios para abafar a revolta popular.

-Por que Cavaignac? Ele usa cavanhaque?

O cidadão, bem trajado, não entendeu e prosseguiu:

-A insurreição operária parecia bem arrumada, mas foi desfeita à bala pelas tropas implacáveis do general Cavaignac. Morreram milhares. Os insurretos não esmoreceram, mas a repressão foi dura. Após um julgamento sumário, 12 mil insurretos foram presos e 4 mil foram deportados para a Argélia. Promulgou-se, em 12 de novembro deste ano, 1848, a Constituição que estabelece a república presidencialista e o legislativo unicameral com base no sufrágio universal.

-Haverá, então, eleições?

-Sim, e o general Cavaignac disputará o voto popular.

-Seu adversário será Luís Napoleão, sobrinho do Napoleão Bonaparte, um aventureiro. - acrescentei.

Afastando-se, disse:

-Já falei demais. Au revoir.

-Elio, os homens do campo adoram Napoleão Bonaparte porque ele impediu que a nobreza e o clero tomassem suas propriedades. Votarão no sobrinho.

-Carlos, Luís Napoleão será eleito com 5,5 milhões de votos contra 1,5 milhão do “Cavanhaque”.

-Nem Jânio Quadros conseguiu uma vitória dessas. - constatei.

(*) Nefelibata é quem tem a cabeça nas nuvens. Estão mais perto do que se imagina.

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