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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

2927 - a década perdida


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5177                                    Data:  27 de agosto de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRICO XLV

1ª PARTE

 

NOTAS (4) – Black dog quando abocanha custa a largar, quando larga.

Bem, doze anos depois, voltei às provas. Muitos anos haviam transcorrido e não havia tempo a perder. Buscava exemplo de personalidades que, mesmo tardiamente, retomaram os estudos e avançaram, não se arrastando com o peso do passado. Uma delas era o primeiro-ministro-alemão Helmut Schmidt que, depois de pertencer à juventude hitlerista, teve, contando 21 anos de idade, de trocar os livros pelas armas, combatendo na terrível frente russa e na ofensiva de Ardenas. Com a derrota alemã, foi aprisionado pelos britânicos. Depois desses percalços, voltou aos livros e se formou em Economia com 32 anos.

Para eu conseguir o feito do ex-combatente da Alemanha, formar-me em Economia com essa idade, eu não tinha tempo a perder, afinal, o exame supletivo fora criado para isso mesmo e havia uma vantagem que eu não podia desperdiçar: o exame do 2º grau não exigia o diploma do 1º. Ora, eu cursei oito meses do 4º ano ginasial do Visconde de Cairu, o que valia, com muitas sobras, mais do que o ensino integral equivalente ao curso ginasial ministrado em meados da década de 70.

O problema era o 2º grau que, na minha época de Visconde de Cairu, era o curso científico ou clássico. No longo período em que fui abocanhado pelo black dog, fiquei tão atraído pela literatura, que raramente peguei livros didáticos  para ler. Agora, nutrindo o objetivo de voltar às aulas, eu tinha de trocar a minha atenção: o tempo de ler em pouco mais de 15 dias as quase 1200 páginas do “Guerra e Paz”, de Tolstoi, ficara para trás.

Ajudou-me o fato de o Claudio, meu irmão, ter ainda as apostilas do Curso GB, onde estudara para prestar os exames supletivos dos dois anos imediatamente anteriores a 1975, quando chegou a minha vez. Com elas, refresquei a memória do que eu já estudara e avancei no que era novidade para mim.

Uma medida do Presidente Ernesto Geisel complicou um pouco os meus planos: ele fundiu o Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, nomeando Governador o Vice-Almirante Floriano Peixoto Faria Lima. Assim, saíam Chagas Freitas e, com ele, Romualdo Carrasco, que era a autoridade designada para administrar os exames supletivos. Saía também um pouco do populismo do MDB, herdado dos partidos políticos pré-Revolução 64, UDN, à parte, as provas sem maiores complexidades e a nota 4,5, em alguns casos, suficiente para a aprovação. Com o substituto do Romualdo Carrasco - aquele que, na realidade, justificava o sobrenome do antecessor - a aprovação seria com a nota 5, e duas provas, pelo menos, foram arrasa-quarteirões. Mas não vamos nos antecipar.

Inscrevi-me para as provas no Colégio República do Peru, localizado no Méier. Ele me trazia uma recordação de êxito.  A minha irmã, que fracassara no ano anterior, 1961, no concurso para o ginásio, foi animada pela Guiomar, sua nova amiga e vizinha, na vila da Rua São Gabriel, onde fomos morar e se inscreveu para cursar o ginasial nesse colégio. Eu, que cursava o primeiro ano do Visconde de Cairu, me pus a prepará-la para as provas; e gostei da minha missão, pois a minha irmã mostrava, como sempre mostrou, disposição para aprender. Bem, ela passou, mas a Guiomar, não; como as aulas eram noturnas, o nosso pai, alegando que ela teria de se deslocar a noite para o colégio, sem companhia alguma confiável, lhe podou o desejo de se aprimorar intelectualmente. Tal veto a deixa indignada até hoje, pois meu pai movera mundos e fundos para os nossos dois irmãos - que fugiam dos livros, na época, como os vampiros dos crucifixos - estudarem, enquanto ela se tornava mais uma vítima da sociedade machista daqueles anos. Mas assim eu me desgarro da minha história.

Saí do República do Peru mais decidido do que nunca a estudar.

A primeira prova foi de português e se realizou no Instituto de Educação. O meu pai me acompanhou para me dar confiança. Era um sacrifício e tanto para um senhor de 60 anos de idade, que trabalhava duro de segunda a sexta-feira, perder uma tarde de sábado para levar, esperar e buscar um filho que prestava exames escolares. Eu não poderia decepcioná-lo. Desfaço, agora, uma injustiça: ele também moveu mundos e fundos por mim, sem esquecer a minha mãe que estava sempre por trás de tudo.

Era a primeira vez que eu entrava na Escola Normal Instituto de Educação, o sonho dourado das meninas que pretendiam ser professoras nos muitos anos que antecederam a minha entrada no Visconde de Cairu e alguns anos depois. À guisa de curiosidade, quem tirou o primeiro lugar no concurso que eu prestara para o Cairu também foi aprovada no Instituto de Educação e, logicamente, preferiu ingressar do educandário da Rua Mariz e Barros.

Bem, lá, eu não tinha tempo de me maravilhar com nada, nem mesmo com aquela arquitetura; estava fixado em tirar uma nota maior do que 5 para não cair fora logo no primeiro obstáculo.

Era a minha primeira vez, como estudante, que eu topava com uma prova de múltipla escolha e logo com a nossa língua portuguesa. Eu levaria uma boa vantagem se houvesse redação, tinha uma boa bagagem de leitura; não precisava copiar uma página de Balzac, como o garoto do filme “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, que tentou enganar seu professor. Eu guardava um número razoável de páginas e escritores na memória. Mas tinha de lidar com cruzinhas em 20 questionamentos com cinco quadradinhos em cada um deles, ou seja, eu, como os demais candidatos, tínhamos pela frente 100 quadradinhos para inserir 20 cruzinhas.

Algumas pessoas que nunca se destacaram em matemática, que nada entendem de números, insinuam que a múltipla escolha capacita os sortudos. Não é nada disso; a chance de, em 3 questões, se acertar 3 é de uma em 125; em 4 questões  é de uma em 625, e, assim, exponencialmente. Prova de múltipla escolha não é loteria, não é jogo, a sua deficiência é de não testar o talento argumentativo do candidato.

Até mesmo em matemática, é preciso que o aluno apresente a sua memória de cálculo, que mostre os caminhos que seu raciocínio desbravou.

Bem, mesmo com todas as múltiplas escolhas, em me saí bem no exame de Português, mas o valor da nota fugiu da minha memória para nunca mais ser alcançada.

 

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