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terça-feira, 4 de agosto de 2015

2009 - outro taxímetro da discórdia


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5159                         Data:  30 de julho de 2015

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207ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

O SEGUNDO TAXISTA DESMEMORIADO

 

Encerrada a visita à minha sobrinha, onde encontrei a minha irmã, avisei que desceria à rua para pegar um táxi. A minha irmã me pediu que aguardasse cinco minutos, que logo sairiam todos no carro do seu genro, com destino a uma igreja e ele me daria uma carona até a Rua Adriano, que é bem mais segura do que a 24 de Maio. Argumentei que, lá embaixo, na calçada, se eu erguesse o braço para coçar a cabeça um táxi parava.

-Aqui está muito perigoso. - insistiu no alarme.

-Vem com a gente, Carlinhos. - pediram a minha sobrinha e seu marido.

Contrariado, acedi.

No elevador, descendo nós quatro, minha irmã contou o seu drama quando chegou: rogara ao taxista que esperasse um pouco, antes de abrir a porta para ela sair, porque um cracudo passava em frente ao prédio.

-Suzete, se você soubesse por quantos cracudos eu cruzo quando vou de casa à estação do metrô de Del Castilho todos os dias de trabalho... pedem, às vezes, dinheiro, mas não passaram disso por lá, que eu saiba. - fui de encontro ao seu temor.

Quando saímos de carro da garagem do prédio, houve a habitual demora de entrar no fluxo do tráfego, que é intenso mesmo às 15h 30min. Nessa espera, vislumbrei alguns táxis que passaram sem passageiros. Quando o marido da minha cunhada conseguiu a brecha para pôr o carro no meio do tráfego, a minha própria irmã disse que o táxi logo a frente estava vazio.

-E o que está adiante dele está também vazio. - acrescentei.

-Carlinhos, lembrei que na primeira rua à esquerda há um ponto de táxi. - disse o genro da minha irmã.

-Se não houver problemas para me deixar lá...

-De jeito nenhum.

Um posto de gasolina na esquina facilitava tudo, ele fez uma parada lá, saltei do carro já notando que havia uns dez táxis à espera de clientes. Dirigi-me, claro, ao que ponteava a fila. O taxista tinha cabelos grisalhos e fartos bigodes, beirava uns 70 anos de idade. Abri a porta do seu veículo e anunciei, depois de pedir desculpas a todos os meus professores de francês do Visconde de Cairu:

-Praça Mané.

-Praça Mané... - torturou a memória.

-Fica perto da sede universal da igreja do bispo Macedo.

Ainda sofria nos “becos escuros da velha cidade de traições”, como Machado de Assis se referiu à memória de um compositor de polcas num dos seus mais célebres contos.

-A Praça onde aconteciam aquelas festas juninas que varavam a madrugada.

-Ah, sim, é claro. Fui muito a essas festas.

Depois de uma pausa, disse entusiasticamente:

-Lá morou uma pessoa que era gente finíssima.

-Quem?

-Aquele que era o dono do ponto.

-O Dudu?...

-Esse mesmo. Nós fomos amigos de infância, amigos de o meu pai frequentar a casa dele.

A essas palavras. Tratei de ser político e não tecer a menor crítica ao seu falecido amigão.

-Pena que mataram... sinto saudades dele.

-Fizeram uma emboscada. Quando a imprensa apareceu com aquelas perguntas, os moradores foram hostis com ela, pois o Dudu era muito querido. - manifestei-me.

-Ele não se metia com ninguém.

-Ficava na dele. - parei nessa frase para que ele pensasse que eu concordava inteiramente.

-Fui criado em Del Castilho, pelo Cachambi. - informou-me.

-Eu criei raízes no Cachambi; morei nas Ruas Cachambi, São Gabriel com a Americana, Chaves Pinheiro, Avenida Suburbana na altura da barbearia do Fonseca. Há uns 20 anos moro na Praça Manet (pronunciei certo o nome do pintor).

-O meu tio era um brigão e tanto, quando ficava bêbado ninguém segurava, um perigo na mão.

-O Bira?- saquei da memória um dos legendários brigões do bairro que, quando bebia e o seu pixaim ficava eriçado, segundo testemunhas, todos saíam de perto.

-Bira?... - perdeu-se de novo, machadianamente falando, nos becos escuros da memória.

-Bira era um dos seguranças daqueles carnavais de meados da década de 60 no Cachambi.

-Meu tio também era segurança. Como eram bons aqueles carnavais! Até escola de samba conceituada aparecia lá para desfilar.

 -Uma vez desfilou os Unidos do Jacarezinho, que chegou a ser integrante do primeiro grupo. Recordo-me de um negão do Jacarezinho, de quase dois metros, que pegou uma faca para brigar com o Carlinhos Chamicha, que tinha 1,65 m de altura. Carlinhos lhe disse que ia tirar a arma e enfiar no rabo dele. Só fez a metade do que prometeu por caridade, talvez, embora, quando brigava, fosse cruel.

-Carlinhos Chamicha...

Minha Nossa! O taxista da ida esquecera-se de ligar o taxímetro, este se esquece de parte do seu passado,

-A minha memória ficou abalada depois que entrei no Salgado Filho desenganado. Não morri porque Papai do Céu achou que não era a minha hora. - confessou.

Veio-me logo à mente o boxeador Éder Jofre que, devido aos socos desferidos na sua cabeça, somados com a depressão pela morte da mulher, vive com as filhas, atualmente, com lembranças fugazes da sua heroica história. Recordei-me também do Bellini da Copa de 58, diagnosticado com Mal de Alzheimer, que, após a sua morte, os especialistas estudaram o seu cérebro, doado pela família, e constataram que, na verdade, tivera encefalopatia traumática crônica provocada pelos golpes na cabeça que recebera nos campos de futebol deste mundo.

-Foi pancada muito forte?- indaguei.

-Não; eu estava com diverticulite e a besta do médico me tratou como se eu estivesse com infecção urinária. Meu amigo, eu não morri na cirurgia por muita sorte, mas, dessa brincadeira, perdi um pulmão e uma parte da minha memória.

Não expressou autopiedade e seguiu adiante.

-Sujeito formidável era o Dudu.

-Ele era devoto de São Jorge. Nos dias 23 de abril, ele fazia uma festança que ia da alvorada, às seis da manhã, até a noite.

-Eu sei muito bem da devoção do meu amigo por São Jorge.

-Lá, na Praça Manet, os amigos dele colocaram uma imagem do santo a cavalo matando o dragão, numa redoma, com uma plaquinha com o retrato do Dudu.

Como ele já dobrava a esquina da Renoir com Vlaminck, mostrei-lhe a imagem. Quando ele parou em frente a minha casa, disse-lhe que a Praça melhorara muito.

-Qual o político que deu a melhora?

-Bem... não sei bem... são muitos. Há o vereador Ferraz.

-Um canalha. - assustou-me com a sua indignação.

-Conheço esse canalha desde anos e anos, décadas, eu e um amigo. Esse amigo batalhou, a pedido dele, para conseguir votos na eleição. Esse meu amigo promoveu eventos, suou sangue para obter e obteve votos para o Ferraz se eleger.

Enquanto ele esbravejava, notei a clássica imagem de São Jorge afixada no painel do seu táxi.

  -Eleito, esse canalha evita esse meu amigo que, até hoje, sofre com essa ingratidão.

Mais calmo, despediu-se de mim dizendo-se feliz por rever a Praça.

Rumei para casa, certo que nenhuma diverticulite o faria esquecer o canalha do Ferraz.

 

 

       

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