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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

2908 - o taxímetro da discórdia


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5158                            Data:  29 de julho de 2015

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205ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

O PRIMEIRO TAXISTA DESMEMORIADO

 

Entro na minha última semana de férias e ainda não fui visitar a minha sobrinha no Engenho Novo. Eu não poderia mais procrastinar, se não, quando me visse, estaria pegando a mochila para ir ao trabalho.

Telefonei para a cooperativa, não a dos personagens deste periódico, que ficam no ponto da Rua Domingo de Magalhães e aguardei o telefonema de retorno. Passaram cinco minutos e nada; estranhei porque o que mais se vê àquela hora, 10h 30min, são táxis vazios. E se eu tivesse chamado uma uber?... Será que já há uber em Del Castilho?... Se a Rosa Grieco, a nossa erudita leitora, que já leu todos os livros da Biblioteca de Babel do Jorge Luís Borges, já fica indignada que os nomes de grandes pintores e escultores, da França, na sua maioria esmagadora, deem nome às ruas deste humilde bairro, eu imagino como se sentiria caso eu dissesse que, por aqui, também trafegam as ubers. Os moradores estropiam tanto a pronúncia francesa dos nomes dos geniais artistas impressionistas, que talvez ela razão; mas será que no Leblon seria muito diferente? Não cogito os da Barra da Tijuca, porque lá só tem vez a língua inglesa, mormente a dos Estados Unidos.

A minha cisma se desfez com o tilintar do telefone; um táxi já estava na minha porta.

-Onde? - indagou-me o taxista.

-No Engenho Novo; o senhor vai dobrar à direita no Buraco do Padre e ir até a altura da estação de trem Álvaro Alvim.

Notei que seu olhar circunvagou pelo para-brisa do carro, e tentei ser mais explícito ao prosseguir:

-O senhor vai passar direto pela bifurcação para o Lins de Vasconcelos, que o primeiro prédio, quase ao lado do Colégio QI, é onde vou ficar. Bem, vamos que eu, lá, lhe mostro.

O olhar dele ficou perdido por culpa minha, pois justamente naquela hora eu resolvi justificar o meu cognome de Hortelino Troca-Nomes: a estação da Supervia era Silva Freire e não, Álvaro Alvim.

-O senhor vai pegar a Ferreira de Andrade, não é?... O trânsito é melhor.

-Eu já estava pensando nisso. - garantiu-me.

-Caramba! - exclamou quando já descíamos um trecho da São Gabriel – não liguei o taxímetro.

Eu, que atentava para o percurso que fazia, um pouco diferente do meu, quando eu dirigia, também não notara o taxímetro desligado.

-Isso vem acontecendo comigo... Já esqueci umas quatro, cinco vezes de ligar.

-Quando eu venho do trabalho, recorro sempre aos taxistas que fazem ponto ali, na estação do metrô de Maria da Graça, e há um português que esquece o taxímetro desligado.

-Coitado. - penalizou-se.

-Coitado, nada; ele tem mais de vinte imóveis e, disseram-me os seus colegas, duas casas comerciais. Como não teve infância, em Portugal, o seu lazer é o trabalho. Disse-me isso o decano daquela cooperativa, um taxista de 81 anos, e mais: se esse português parar de trabalhar, morre.

-Desses meus esquecimentos, eu tive problema com uma senhora; ela pegou meu táxi cheia de sacolas de supermercado e me pediu para deixá-la numa rua de Osvaldo Cruz, trajeto que eu já fizera inúmeras vezes. Depois de muito tempo de corrida, ela chamou a minha atenção para o taxímetro. Xinguei-me por esquecê-lo desligado e ela disse que imaginou que ele estivesse funcionando mesmo sem luz.

-Estanho... - expressei a minha desconfiança.

-Quando chegamos, eu lhe disse, que a corrida ficava em tanto, porque eu era useiro e vezeiro em pegar clientes com esse mesmo percurso. Ela disse que só pagaria o que estava no taxímetro, reagi dizendo-lhe que não seria justo. A mulher se alterou e começou a criar caso. Falou em chamar a polícia. Disse-lhe que iríamos perder o nosso tempo que, então, ela pagasse o que o taxímetro mostrava mais o valor do transporte das sacolas das compras. Ela sossegou, deu-me o dinheiro e fui embora.

Antes que ele me narrasse outro problema provocado pelas falhas da sua memória, alterei o rumo da conversa.

-Começo a caminhar por volta das 5h 30min da manhã com um radinho de pilha no bolso sintonizado no noticiário da CBN ou da Band News.

-E consegue escutar bem mesmo com ele no bolso?

-Consigo porque não faço mais aquelas caminhadas longas de uma hora; persisto com uma hora, mas passei a dar voltas numa daquelas duas quadras da Praça Manet e, até mesmo, naquilo que era o ringue de patinação.

-Onde fizeram uma academia da terceira idade?

-Isso mesmo; fico em órbita daqueles aparelhos até enjoar e passo para uma daquelas quadras cuja dimensão é maior. Então, eu fico num lugar onde o sinal dessas emissoras não fica prejudicado, a da CBN fica, às vezes, passo, então, para a Band News que é sempre a mais audível das duas.

-Sim.

-Caminhando, hoje, a Band News informou, através do WhatsApp  de um ouvinte, que há mais de 40 minutos não saía um trem da estação de Santa Cruz. Logo depois, veio a informação que um trem estava enguiçado na estação de Campo Grande.

-Que loucura! - exclamou.

-Eu pego o metrô para trabalhar às 5h 30min para o trabalho; se um trem atrasa dez minutos a plataforma já fica apinhada de gente.

-E os trens da Supervia transportam mais trabalhadores e, em geral, os mais humildes.

-Os marmiteiros como se dizia muito no tempo do Getúlio Vargas. - acrescentei.

-Os mais pobres.

-Como se não bastasse, veio a notícia que quatro carros bateram na ponte Rio-Niterói e tudo ficou parado.

A indignação que não mostrou na narrativa em que a passageira só lhe indicou o taxímetro desligado muito tempo depois, mostrava agora.

-Isto é o descalabro deste governo estadual, municipal...

-E federal. - antecipei-me.

-Às minhas palavras, sua indignação cresceu em intensidade.

-Todos os preços estão subindo com esta mulher. Eu nunca vi tanta incompetência. Nunca houve tanta corrupção.

O seu táxi já estava parado na calçada do prédio da minha sobrinha, mas a sua insatisfação não arrefecia.

-A oportunidade de tirar essa mulher do poder está no julgamento das contas.

-Bem, chegamos... - indiquei-lhe que estava com um pouco de pressa.

-15 reais e 70 centavos. - disse olhando o taxímetro.

-Vou adicionar 2 reais pelo tempo em que o senhor deixou o taxímetro desligado.

-Eu esqueci o taxímetro desligado? Nem me lembro mais.

-Xi!...

 

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