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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

2592 - Golpe e Volpi



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4292                                           Data: 15 de outubro de 2013
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95ª  VISITA À MINHA CASA

Lauro-Volpi, desde a visita do Mario Del Monaco há uns dois anos, que não vem um grande tenor até aqui. - regozijei-me.
-Lembro-me bem dele.
-Não foi você que escreveu que ele emitia o mais belo si bemol da arte lírica? - perguntei.
Sorriu, em vez de me responder e passou a falar do mi bemol superagudo da Maria Callas.
-Foi numa récita da Aída, na cidade do México, em 1951. No fim da marcha triunfal, no segundo ato, surge esse espantoso mi bemol superagudo acima dos demais cantores, do coro e da orquestra, que estava a mil. E ela sustentou a nota por infinitos oito segundos.
-Eu ouvi essa gravação no programa Ópera Completa, do Zito Batista Filho, na Rádio MEC.
Giacomo Lauro-Volpi prosseguiu com suas reminiscências.
-Giusette Taddei e Del Monaco ficaram fulos de raiva e partiram para a vingança. No terceiro ato, quando há um momento tenso entre pai e filha, Giuseppe Taddei exagerou no realismo, e machucou as costas da Maria Callas com o empurrão que lhe dera. Quanto ao Del Monaco, nos duetos com ela, com a sua extensão de voz insuperável, passou a alongar as notas, deixando-a esgotada.
-Mas por que ela entoou esse mi bemol superagudo?
-Callas era uma estudiosa, aprofundava-se no seu trabalho. Era conhecedora de uma soprano do século XIX, Angela Peralta, que conseguia tal façanha.
Lembro-me, ouvindo a gravação, que a plateia delirava nessa récita.
-Eu lamento também não estar lá, mas eu tinha de seguir minha carreira.
-Mario Del Monaco registrou o êxtase dos mexicanos, no seu livro de memórias, e também das escaramuças entre ele e a Callas atrás da cortina. 
E acrescentei:
-Mas não falamos de você, ainda, um erro meu inqualificável.
-Eu sou acima de tudo realista, não sou, por isso, modesto, a modéstia empana a verdade. Já era hora mesmo de o assunto ser a minha voz.
-Eu assisti, dia desses, a um vídeo em que você cantava La donna è mobile do Rigoletto, com 81 anos de idade.
-Isso foi em 1973, quando gravei uma seleção de árias de ópera, mas, no ano anterior, cantei no Gran Teatre  del Liceu, em Barcelona o Nessun dorma, do Turandot.
-Sim.
-Eu cantei La donna è mobile, com 85 anos de idade, quando fui homenageado no Teatro Real de Madrid.
-O seu legendário agudo se fez presente nesse evento. - enalteci-o.
-Não era a mesma coisa dos anos idos, mas o tempo não destroçou a sua voz.
-Como você chegou a tantos êxitos na sua carreira?
-Vou falar de mim na terceira pessoa. - preveniu-me.
-Tudo bem, estou acostumado, com o Dieckmann e com o Pelé.
-Como pôde este artista manter tão segura, confiante e jubilosa a sua voz, após vários decênios de intensa atividade? Principalmente, porque soube subtrair-se ao contágio das imitações. Por que deveria imitar Caruso, afeito aos famosos portamentos e às inflexões nasais? Dar liberdade à voz, não prendê-la na caixa torácita, subtraí-la às involuções da respiração artificialmente sacrificada, significa liberar coração e cérebro. Daí o brilho, a alegria comunicativa da singularíssima voz, que será reconhecível entre mil.”
-Você nasceu na Itália, naturalmente.
-Em Lanuvio, em 1892. Minha infância terminou cedo, pois fiquei órfão com 11 anos de Idade. Tolstoi escreveu que a infância dele acabou com a morte da mãe.
-Li isso no livro dele, “Infância”.
-Estudei num seminário e graduei-me em Direito na Universidade de Roma.
-E o canto, Lauro-Volpi?
-Eu estudava sob a orientação do barítono Antonio Cotogni ligado à Accademia Nazionale di Santa Cecilia em Roma.
 -Quando eclodiu a Primeira Grande Guerra Mundial, você estava com 22 anos.
-Fui convocado para guerra e, assim, tive de interromper meus estudos.  Ao voltar a Roma, soube que meu professor havia falecido, resolvi, então, antecipar a minha carreira de tenor.
-Quando foi sua estreia?
-No dia 2 de setembro de 1919, em Viterbo, e a ópera era “Os Puritanos”, de Bellini. Cantei com um pseudônimo, James Rubin, uma evocação ao tenor da predileção do compositor, Rubini.
-Um tenor legendário do século XIX. - interrompi.
-Resolvi, logo depois, usar meu nome de batismo, mas já havia dois no mundo da ópera; o jeito foi adicionar o Volpi. Surgiu, assim, o Giacomo Lauri-Volpi.
-Que logo o mundo das artes conheceria. - fiz-lhe justiça.
-Giuseppe Adami, libretista do Turandot, declarou que Pucciui escreveu as notas do príncipe Calaf pensando na minha voz.
-Pietro Mascagni o louvou também.
-Mascagni, numa turnê pela América do Sul, em 1922, me queria no papel de Turiddu, da Cavalleria Rusticana. Foi ele que me aconselhou a enfrentar os papéis mais pesados.
-Os estudiosos da  ópera disseram que, através do seu fraseado heroico, dicção nobre e bem definida, brilho nos agudos extremos, você criou um estilo vocal que se tornou padrão pelo século XX.
Ele se limitou a sorrir satisfeito consigo mesmo.
-Minha despedida dos palcos uma ópera completa  ocorreu em Roma, no papel de Manrico, do Il Trovatore, de Verdi, em 1959.
-Com 67 anos de idade, você ainda cantava como Manrico, que tanto exige do tenor. - admirei-me.
-Era tempo de eu me retirar profissionalmente dos palcos.
-Sua esposa também cantava?
-Era soprano, Assunção Aguiar, espanhola. Prometi a ela, já na idade provecta, não retornar mais à Itália, ficar na Espanha, e, enquanto ela viveu, cumpri o prometido.
-Você foi um homem possuidor de uma cultura invejável e escreveu um livro que é uma referência aos estudiosos do canto lírico, “Vozes Paralelas”.
-Inspirei-me na “Vidas Paralelas”, de Plutarco. Eu descartei logo as comparações excludentes, que considero odiosas. As comparações que estabeleci são por afinidades, diferenças, antinomia e analogia. Caracterizei os cantores por registros vocais, sopranos  líricos, dramáticos, meio-sopranos, por exemplo, e por categoria, cantores-atores. Também elegi as “vozes isoladas”, sem paralelismos, a de Victoria de Los Angeles, a de Maria Callas, a de Marian Anderson, a minha e a do meu mestre Antonio Cotogni.
-Tenho aqui o que você escreveu sobre a Maria Callas.
E pus-me a ler:
-”Voz múltipla, método único. Na cena lírica, não houve, não há outra voz com a qual seja possível o confronto. Em que consiste o fenômeno que, primeiramente, alarma e indispõe o público? Naquela primeira oitava e naquelas passagens tubadas, naquela discrepância dos registros, que dão ideia de três vozes dispersas sobrepostas. Após o primeiro ato, a voz se amacia, rompe nodosidades, atenua as angulosidades para tornar-se líquida, corrente e, às vezes, espraiante. Então, o público se aplaca, põe-se atento e acaba por deixar-se prender, envolver na trama de fios luminosos que a voz, aranha paciente, tenaz e igualmente esperta e maliciosa, teceu na atmosfera”.
Encerrada a leitura, voltei-me para ele:
-Você discorria sobre as vozes como os sommeliers o fazem com os mais nobres vinhos.
-Hora de ir-me.
E foi-se Lauro-Volpi sem dar um dó de peito sequer.





Um comentário:

  1. O nome do legendário tenor é Giacomo Lauri-Volpi, e não Lauro-Volpi,
    como aparece umas duas ou três vezes, e só uma vez corretamente..
    O redator (alertado pelo Sérgio Fortes, filho do grande barítono Paulo Fortes).

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