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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

2482 - Estômago 1



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4282                    Data:  27 de  setembro de 2013
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94ª VISITA À MINHA CASA

Arthur Rubinstein...
Depois de me recobrar do espanto, acrescentei:
-Pena que eu não tenho um piano em casa para recebê-lo.
-Ora, eu não saio pelo mundo atrás de piano. - reagiu com veemência.
E prosseguiu:
-Não preciso me concentrar no trabalho o tempo todo. Gosto de ver o lado alegre das coisas. Gosto de ver pessoas interessantes, que não precisam nem gostar de música, elas podem até odiá-la. Apetece-me assistir a um evento esportivo só pela diversão. Isso também me interessa. Estou sempre atraído pelo que acontece ao meu redor.
-Sim, mas você com dois anos de idade já ficava encantado pelo piano.
-Minhas irmãs mais velhas tocavam piano e eu esperava o momento de elas terminarem; então, eu subia no banco e dedilhava as teclas.
-Todos, certamente, ficavam maravilhados.
Ouviu o elogio e sorriu sardonicamente.
-Nessa idade, quando eu conseguia saltar três degraus da escada, considerava uma grande proeza, e esperava os aplausos. E ninguém dava a mínima, ignoravam-me, mas quanto eu tocava, era felicitado; eu não entendia por que, pois era tão fácil...
-Você nasceu em Lodz, em 1887 e recebeu o nome de  Arthur.
-Meu irmão viu um violoncelista com esse nome, falou tanto nele, que me chamaram de Arthur. Gosto do nome. Musset disse: “Passe as mãos nos meus cabelos e me chame de Arthur.”
As palavras do poeta foram ditas em francês, que era um dos muitos idiomas que Arthur Rubinstein falava fluentemente.
-Eu era polonês de origem judaica.
-Com três anos de idade já lhe era ministradas aulas regulares de piano.
-Sim e com oito anos ingressei no conservatório de Varsóvia. Um ano depois, apresentei-me em Lodz, tocando Mozart.
-E aos dez anos de idade o enviaram para Berlim, onde tomaria aulas com Heinrich Berth?
-Um dos meus tios escreveu uma carta para o grande violinista, amigo de Brahms, Joseph Joachim...
-Músico húngaro, de origem judaica, para quem Brahms compôs o concerto para violino e orquestra. - interrompi intempestivamente.
-Joseph Joachim demonstrou interesse em me conhecer, e a minha mãe me levou a Berlim. Eu não falava nem iídiche, muito menos o alemão...
-Sua família não sofreu em se separar de você ainda tão menino?
O grande músico, que não era de se mostrar embaraçado, pensou muito em responder, e preenchi logo o silêncio.
-Você não recebeu muito afeto dos seus pais?
-Meu pai era muito ocupado, tinha uma fábrica de tecidos que perderia depois; ficou pobre. Eu o vi muito pouco na vida, a minha mãe também.
E continuou:
-Com quatro anos de idade, eu pedia um chocolate ao meu pai e ele me dizia: “imagine que você já engoliu um.” Eu tentava imaginar, mas não conseguia.
-E você com seus filhos?
-Dou o chocolate, dou um segundo, um terceiro e até um quarto. Depois, pergunto: “não querem mais chocolate?”
Depois de rir, voltou ao passado.
-Quando os meus pais morreram, eu já estava na América. É uma página triste da minha vida.
-Em 1906, você tocou no Carnegie Hall com a Orquestra da Filadélfia?
-Você adiantou os acontecimentos. - criticou-me depois de responder-me afirmativamente.
-Talvez porque você falou na América... - justifiquei-me para emendar outra pergunta.
-E quando se deu a sua estreia como pianista em Berlim?
-Na virada do século, eu estava com treze anos de idade.
-E foi para Paris com dezessete anos de idade?
-Fui sozinho para lá. Isso em 1904, um ano de grande importância para mim, pois me emancipei, não seria mais aluno de piano de ninguém. Os estudos continuariam, evidentemente, pois até o nosso fim estamos aprendendo, mas aluno, nunca mais. E também descobri os encantos de Paris, que passou a ser meu lar, embora minha vida fosse de viajante.
-Você nunca pensou em outra carreira que não fosse ligada à música?
-Sinto com frequência as vibrações das coisas e fico feliz quando isso acontece.  A música é um bom veículo. É uma arte metafísica. Há emoções musicais que nos distanciam de tudo, de qualquer forma elas nos elevam. Não, pertencemos mais a esse planeta...
-O maestro Daniel Barenboim que, quando jovem, o conheceu, afirmou que a música era, para você, a vida, tudo que amava, mas que você era contra a música encerrada numa torre de marfim.
-Eu digo que para executar bem uma peça musical, eu precisava ler bons livros, visitar museus, ir ao teatro, admirar as mulheres bonitas, frequentar os cafés... Viver, enfim.
-Ou seja, vida e música para você não eram excludentes?
-De forma alguma. - foi peremptório.
-Em 1916, você obteve verdadeiros triunfos na Espanha, onde tocou Manuel de Falla e Enrique Granados.
-Há um grande compositor da Espanha que você não citou.
Depois dessa admoestação, dada de bom humor, viajou pelas reminiscências com entusiasmo.
-Eu estava na Espanha com um grupo de pessoas, entre elas o compositor Paul Dukas. Destacava-se um gordo, com uma barbicha, muito alegre, que nos fazia rir. Certo dia, Paul Dukas me entregou partituras de obras de Isaac Albéniz, que era o tal gordo de barbicha, que tanto nos alegrou. Ele já havia morrido.
-Ele morreu em 18 de maio de 1909. - interferi.
-Olhei as partituras e exclamei: “Nossa, que difícil!...” Havia tantos bemóis e tantas outras dificuldades.
-E você as tocou logo?
-Tocar obras espanholas sem o “sotaque” é um perigo e eu não me atrevi a tocar essas partituras em público.
-Mas o seu espanhol é excelente, o sotaque não é pronunciado.
-Mas falar é outra coisa.
E foi adiante:
-Um dia, a viúva de Isaac Albéniz me convidou para um almoço em sua casa e eu fui, evidentemente.  Em determinado momento, ele me pediu para tocar peças do marido; fui para o piano com o coração confrangido.
-Deixou-a encantada e comovida. - deduzo.
-Os espanhóis acham que fui espanhol em outra vida por causa da música.
-De como você interpreta as músicas dos compositores da Espanha. - acrescentei.
-Eu era muito amigo de Picasso e ele me pediu para tocar alguma coisa. Como ele não entendia as obras sérias, toquei músicas simples, peças populares, zarzuelas, enfim. Quando terminei, ele estava abismado: “Você toca como se fosse espanhol... De onde você tirou esse ritmo?”... E eu disse: “Tirei do estômago”. Picasso reagiu: “Eu pinto com o estômago.”
Depois de um silêncio, ele concluiu com a expressão marota:
-Fiquei sabendo, assim, de onde vêm a música e a pintura.
-E a sua briga com Villa Lobos?


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