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quarta-feira, 27 de março de 2013

2347 - o Conde (2)


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4147                                       Data: 10 de  Março de 2013
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83ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE

-A morte de Ermelino foi a grande tragédia da minha vida.- comoveu-se Francesco Matarazzo, apesar da tentativa de represar a carga emotiva, própria dos italianos do sul.
-Essa morte o fez sair de novo da Itália para voltar ao Brasil.
-Não; eu já retornara antes, em 1919, para retomar a direção dos negócios. Depois de muito trabalhar, chegou a hora do Ermelino sair de férias,  e ele foi para Nova York, Londres e Paris. Era evidente que a Itália tinha de estar no seu roteiro; então, ele resolveu ir de carro de Turim até o Mont Cents, na França, ao norte de Besançon, com o irmão mais velho, Giuseppe e alguns amigos.
-Li na biografia escrita pelo Ronaldo Costa Couta que era janeiro de 1920, que a estrada estava escorregadia com a neve, mas era ampla, de uns quinze metros de largura. O carro tinha o volante no lado direito, com dois lugares na frente, dois  no meio e dois atrás.  A tragédia aconteceu n cidadezinha de Bruzolo, em Piemont, quando o motorista se atrapalhou com um ciclista que vinha em sentido contrário, o carro ficou desgovernado, subiu um barranco...
-E virou justamente no lugar onde estava o Ermelino. - emocionou-se  às lágrimas.
-Você foi a Turim, cuidou de tudo, mandou que embalsamasse o corpo do filho, que foi trasladado para São Paulo.
-Fechei o quarto do meu filho, como estava e nunca mais o abri.
-Assis Chateaubriand, com 28 anos de idade, então redator-chefe do Jornal do Brasil, redigiu um necrológio que emocionou toda a sua família.
-Eu quis me encontrar com ele; e disse-lhe, então: Doutor Assis, o senhor foi muito generoso com meu finado filho; desculpe a intimidade, mas esta é uma superstição da Itália, onde nasci: esfregue as pontas do dedo aqui no meu paletó, que é para eu passar-lhe um pouco da minha sorte.
-E como passou a sua sorte, ele se tornou o megaempresário da imprensa.
-Eu não imaginava que ele me causaria tantos aborrecimentos.
-A intenção dele era que você utilizasse  os seus jornais  para fazer propaganda dos produtos que comercializava.
-Se eu vendia tudo o que produzia para quê reclames em jornal e revistas?... Num dia de 1934, ele veio se avistar comigo e  lhe mostrei os perus, veados, jumentos e búfalos que eu possuía, ele não viu uma chaminé, andou apenas pela minha granja.
-Assis Chateaubriand reclamou muito, disse que  teve de andar três horas sob um sol de estalar mamona, sem que você parasse de falar de assuntos agro-pecuários.
-Era para ele saber que, mesmo octogenário, eu estava sólido como uma rocha.
-E o seu entusiasmo por Mussolini?
-Senti na própria carne a pobreza da Itália, vi um povo humilhado. Surge, então, um líder que revigora o país, que resgata até o orgulho que remontava ao império romano, era compreensível que eu me entusiasmasse. Fui recebido por Mussolini no final de 1923 e fiquei impressionado. Os trabalhadores mostravam um patriotismo nunca visto, os trens passaram a ser pontuais...
-Mussolini, com sua retórica populista, recorrendo à farta propaganda, à doutrinação política, ao gerenciamento do orgulho, da esperança, enquanto esmagava a oposição e controlava a imprensa, como escreveu Ronaldo Costa Couto, deu início a uma insidiosa ditadura que até hoje é imitada em diversos países.
-A minha lucidez estava nos negócios, não na política. Morri em 1937 e fui poupado de assistir ao malogro do fascismo.
-E as crianças trabalhadores, Conde Francesco Matarazzo?... Consta que, em 1920, quase 10% dos operários paulistas  tinham menos de quatorze anos, que muitas das suas fábricas estavam adaptadas com máquinas e ferramentas de tamanho reduzido para que pudessem ser manejadas por crianças. Parecia até o capitalismo selvagem da Inglaterra de Charles Dickens.
-Eram tempos duros, eu também iniciei no trabalho com menos de quatorze anos. Nessa época, não tínhamos infância, espero que as crianças de hoje tenham.
 -Conde, Ronaldo Costa Couto, sobre esse caso, se reporta à mãe da historiadora Maria Angélica, que conta um encontro casual da mãe dela, sua nora,  com uma velhinha na igreja que você costumava ir na festa de São Vito Mártir. Afirmou a velhinha que trabalhou numa das suas fábricas desde os doze anos de idade, que você foi o homem mais generoso que conheceu na vida. E concluiu a sua neta: “Uma coisa espantosa, não é?!... Hoje todos consideram escandaloso que uma menina de doze anos trabalhe numa fábrica. E é mesmo.  Mas a lembrança que ela guardou do meu avô é uma coisa extraordinária. As coisas têm de ser entendidas e analisadas no contexto em que ocorreram.”
-As crianças ajudavam na receita da família naqueles tempos difíceis, ragazzo.
-Infelizmente, essa situação ainda perdura em muitos países atrasados.- declarei.
-Nas classes mais abastadas, eu espero que não?...
-Nessas classes, as crianças também sofrem; além dos estudos essenciais, têm de frequentar cursos de línguas, aulas de natação, judô, dança, ou lá o que seja, enfim, ficam cheias de compromisso, como os adultos, sem tempo para brincar, de desfrutar a infância.
-Apesar da alegria esfuziante dos italianos, eu não tive muito tempo, quando menino, para os folguedos, trabalhei nessa idade. Mas sonhei sempre.
-A propósito, Conde, o jornalista Vicente Ragogneti, que dirigia um jornal humorístico, Il Moscone, cujo lema era “Para as moscas e os jornalistas, não há lugar proibido”, fez-lhe, segundo o seu biógrafo Ronaldo Costa Couto, a seguinte pergunta:
-”Conde, quando era moço o senhor sonhou algum dia com tudo isso que já fez na vida?
-E respondi:
-"Eu!: Mas se ainda vivo a sonhar!”
-Você teve mais de duzentas empresas; era detentor da quarta maior fortuna do Brasil, perdendo apenas para o PIB do Brasil, para o Estado de São Paulo e para a receita com a exportação do café.
-Enquanto tive saúde, trabalhei com uma vontade férrea.
-E quando ela começou a fraquejar?
-Quando o médico recomendou que eu reduzisse a garrafa de vinho que eu tomava diariamente  para um copo apenas. Tive, então, de comprar um copo de quase um litro para beber o meu vinho.
-E o médico?...
-Quando soube, diminuiu a cota de vinho para um dedo.
-E o vinho da sua predileção era um tinto escuro, muitíssimo encorpado e alcoólico.
-Vinha das montanhas pedregosas da minha terra natal, Castellabate.
-Era uma maneira de você voltar à sua origem.
-Sim; sem o meu vinho diário, eu me senti velho e doente.
-E morreu com 82 anos de idade de uremia.
-Foi quando deixei de trabalhar.
Disse, enquanto partia para outras plagas.

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