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quinta-feira, 7 de março de 2013

2332 - o paralelepípedo míope

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4132                            Data: 15 de fevereiro de 2013
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CAMINHANDO  SEM  ÓCULOS

Na noite do dia anterior, assistindo ao canal Film & Arts, que corre o sério risco de ser retirado da TV a cabo do Brasil, mais uma contribuição à ignorância nacional... Dizia eu que via televisão, quando, por singela experiência, arranquei os óculos e os coloquei sobre a mesa de jantar. Constatei, com um ar triunfante, que conseguia ler as legendas, apesar de elas não serem grandes e de eu estar a uns três metros de distância.
Reportei-me, então, ao início da década de 70, quando fui a um oculista de loja, entre o Méier e o Engenho Novo, na vizinhança da então famosa Fotos Quesada. Quem, morador do Cachambi, Del Castilho, Méier, Engenho Novo, Todos os Santos, não tirou a sua fotografia 3x4 lá? Mas voltemos à ótica, pois o assunto é este.
Examinado, diagnosticaram-me uma miopia de grau próximo de três.
Os óculos na minha cara eram um corpo estranho. Eu tinha o pressentimento de que todos me tomavam por um alienígena. Era uma megalomania às avessas, ninguém, na verdade, reparava em mim, a não ser os amigos e parentes do dia a dia.
-Estou horrível, não estou?
-Não, quatro olhos.
Castigo: no colégio, eu sempre lembrava os portadores de óculos que eles tinham quatro olhos.
A minha sensação incômoda, naquela época, era bem diversa do personagem de um conto de Guimarães Rosa que, menino, colocadas as lentes sobre seus olhos, deslumbrou-se com o mundo que agora podia contemplar.
Voltando para hoje. Acostumado a assistir a um pouco de televisão e passar as minhas vistas pelas páginas de um livro até o sono chegar, adormeci. Despertei pouco antes das cinco horas da manhã e, vinte minutos depois, juntava os petrechos para mais uma corrida pelas ruas.
Quando já me preparava para sair, vieram-me à mente os óculos. Onde estavam os meus óculos? Não estavam nos lugares de costume: sobre a mesa do computador ou do criado mudo, que insistia em ficar calado embora eu lhe perguntasse onde estavam meus óculos.
 Estariam sobre a mesa do jantar, quando os arranquei para constatar que lia as legendas da televisão sem eles?  Claro que não, pois me recordo bem de ter lido a biografia do Conde Francesco Matarazzo com eles, enquanto Morfeu não chegava. Ainda assim, fui escarafunchar a mesa da sala de jantar. Puro TOC – diagnosticariam. 
Investiguei duas ou três vezes os mesmos lugares, incluindo banheiro e cozinha, nada. Uma amiga de muitos anos recorre a São Longuinho, dando três pulinhos, uma espécie de simpatia, para achar objetos perdidos, mas, naquela hora, as ideias que me vinham não eram nada católicas.
 Para não desperdiçar mais energia, antes do tempo, tomei a decisão:
-Vou caminhar sem óculos.
Caminho pelas ruas Honório, Itamaracá, Gaugin, Vlamink, Renoir, Modigliani, Braque, pela Avenida Suburbana e não sinto falta deles. Até vejo cocos permeando o meio-fio da Rua Honório. Diabo, por que esses cocos apareceram pelo chão? Nunca os vi, assim, nem mesmo com os óculos?...
Bem, eu já completei trinta minutos de andança pelos asfaltos e paralelepípedos, agora vou rodar na quadra de basquetebol da Praça Manet, onde o piso  não é traiçoeiro, além de ser inteiramente plano. Para chegar nela, tenho de passar por mesinhas e cadeiras de concreto em que se acomodam bebedores de cerveja e, já me deparei algumas vezes, cheiradores de cocaína. Agora, porém, tudo parecia tranquilo, até que… 
Com o susto que levei, freio o meu ímpeto: um sujeito está estendido no chão, completamente imóvel e pareceu-me que a sua cabeça, arrancada do corpo, ali estava. A cena era por demais macabra, estuguei, então, os passos rumo à outra quadra, onde então, eu terminaria a minha caminhada programada para quarenta e cinco minutos.
Mil conjecturas me vinham à mente. Os traficantes da favela Bandeira 2, à questão de quinze dias, desovaram um corpo dentro de um contêiner de lixo na movimentada, embora fosse madrugada,  esquina da rua Van Gogh com a Avenida Suburbana.
Será que desovaram agora um cadáver, com a cabeça arrancada, em plena Praça Manet, junto ao trailer “Fofoca da Madrugada”?... Que eles são cruéis para deceparem as cabeças dos corpos não resta dúvida. Ou, em vez de cabeça, aquilo era um coco?... Esta dúvida me ocorreu, porque ainda estávamos no horário no verão, ou seja, só clarearia daqui a meia hora.
Por que não me aproximo mais do morto, já que todos dormem nesta quarta-feira de cinzas, não me vendo, por conseguinte, e tiro a dúvida de uma vez por todas?  Faltou-me estômago. Procurei me encorajar trazendo à lembrança os incontáveis livros que li, e não menos numerosos filmes a que assisti sobre a Revolução Francesa. Mas eram Maria Antonieta, Luís XVI, Lavoisier, Andrea Chenier, Madames Du Barry, Camille Desmoulins, Danton e Robespierre guilhotinados em papel e celuloides, o que representava uma diferença abismal entre mim, naquela situação e os populares que vibravam na Praça da Concórdia no período do terror.
Noto que um sujeito de camiseta regata e bermudas, que viera pela rua Renoir, viu o corpo e se aproximou. Diminuí minhas passadas e me concentrei naquela cena. O sujeito se curva para olhar o corpo mais detidamente.
-Comentará comigo alguma coisa? - pensei, pois eu era a pessoa mais próxima, apesar de me encontrar a uns trinta metros.
Nada disso, ele seguiu em frente.
-Já era hora de um carro da polícia aparecer, pois não é possível que morador algum deste conjunto do IAPC de Del Castilho não saiba que está lá um corpo estendido no chão.
Voltei para casa. Tomei banho, vesti-me e, agradável surpresa, deparo-me com os meus óculos sobre a cadeira que fica à mesinha do computador.
Passou quase uma hora e contei ao meu irmão, que se preparava para ir às compras, o que eu vira e não vira. Ele chegou à janela e olhou em direção da “Fofoca a Madrugada”. Embora as amendoeiras atrapalhassem a sua visão, deduziu que, caso houvesse uma desova ali e com um corpo separado da cabeça, haveria uma grande movimentação, inclusive com carros da polícia.
-Lopo, escute os comentários dos moradores e me diga depois. - pedi.
Ele saiu às sete da manhã e retornou às dez.
-E então?
-Carlinhos, era um bêbado, que ainda está lá, estirado no chão, e, ao lado dele, está um boné.
-Um boné:????!!!...
Ainda bem que encontrei meus óculos.

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