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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4133 Data: 16 de
fevereiro de 2013
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81ª VISITA À MINHA CASA
-Marlene Dietrich. - vibrei.
-Como você olha para mim e não pensa só
nas minhas pernas, resolvi visitá-lo.
-Não é que eu não pense nas suas belas
pernas, afinal, eu assisti ao “O Anjo Azul” quando a testosterona fervilhava
nas minhas veias. Mas soube, depois, que o seu cérebro era privilegiado.
Pensei, naquele momento na atriz Hedy
Lamar, precursora de um invento importante como o celular, mas, por
cavalheirismo, me calei.
-Alguns diretores de cinema me
consideraram muito lúcida. - disse, sem falsa modéstia.
-Alguns diretores?... Billy Wilder,
Orson Welles, os grandes... - enfatizei.
-Tenho saudades deles.
-Billy Wilder disse, para os biógrafos
dele, que, de todas as atrizes com que trabalhou, você foi aquela a quem ele
mais admirou. Disse textualmente que as
pessoas falavam sobre as suas pernas, que, reconhecia, eram muito boas, além do
restante do seu corpo e do seu talento. Mas o que ele mais admirava era sua
inteligência. Assinalou que você era corajosa em manter as suas convicções, que
reconheceu logo os nazistas. “Não aceitou seus prêmios e convites e foi embora
da Alemanha, mesmo não sendo judia.
-Hitler me convidou para protagonizar
filmes pró-nazistas, considerei aquele homem de bigodinho tão ridículo quanto o
que seria retratado, anos depois, pelo Charles Chaplin. Depois de recusar,
viajei para os Estados Unidos e me tornei cidadã americana. Hitler me tachou de
traidora.
-Suas raízes eram bem germânicas?
-Sim; eu nasci em Schöneberg, um
distrito de Berlim. Minha mãe era de uma família endinheirada, que possuía uma
fábrica de relógios na capital da Alemanha. Meu pai era financeiramente mais
modesto, um tenente da polícia, mas morreu logo, em 1911, eu contava com dez
anos de idade.
-Eram você e a sua irmã um ano mais
velha, Elizabeth?
-Sim. Viúva, minha mãe foi cortejada
pelo melhor amigo do meu pai, um refinado primeiro tenente dos granadeiros.
Casaram em 1916. Mas eu perdi também o meu padrasto, que morreu na Primeira
Grande Guerra Mundial. Eu estava com quinze anos de idade.
-E o que você fez?
-Preparei-me nas escolas de arte cênica
e integrei o elenco de filmes mudos até 1930. Nesse ínterim, precisamente 1921,
casei-me com um ajudante de diretor de cinema, e tive, em 1924, a minha única filha,
Maria.
-Quando você estreou no teatro?
-Em 1924; fiquei na vida teatral por
cinco anos, mas apenas colhi experiência nesse período, sucesso nenhum.
-E como você saiu do teatro para o
cinema?
-O cineasta austríaco Josef Sternberg me
viu numa dessas peças sensaboronas e me fez o convite para atuar em Der Blaue Engel.
-Um filme que se tornaria um clássico, O
Anjo Azul.
-Ainda bem que o meu primeiro filme
sonoro me catapultou logo para o cinema, pois eu marchava a passos de ganso
para trinta anos de idade.- comentou com uma risadinha.
-Não conheço melhor história do que a d'
O Anjo Azul, para retratar a degradação de um senhor respeitável por uma
mulher. O venerável Professor apaixonado
até cacareja por sua causa.
Evidentemente que o seu papel de mulher fatal tinha uma importância
fundamental para o público aceitar a história como plausível.
-Não vamos esquecer a qualidade do
romance de Heinrich Mann. Ele não se destacou, na literatura, para não falar em
política, tanto quanto o irmão, mas tem o seu valor.
-Já recebi uma visita de Thomas Mann
aqui em Del
Castilho. Sinto-me atraído pela família Mann, não só pelas
artes, mas também pelas personalidades complexas. Sem falar que a matriarca,
Kátia, era natural de Paraty.
-Como eu me iniciei tarde, no cinema,
não podia falhar.
-Nessa sua estreia cinematográfica, você
se aproveitou das suas pernas bem torneadas pela natureza, mostrando-as em
posições ousadas para o ano, 1930.
-Eu era, na fita, uma cantora de cabaré, tinha
um álibi perfeito, com isso, tirei partido: fingia que a mostrava para um
pequeno grupo de frequentadores de espelunca, quando a minha intenção era
deslumbrar as grandes plateias dos cinemas pelo mundo afora. É claro que fui
muito incentivada pelo Josef von Sternberg.
-Assisti ao seu filme umas três vezes
pela televisão e fiquei encantado, como aqueles alunos do tal professor.
Infelizmente, não soube de uma só exibição desse filme nos cinemas comerciais,
na época em que eu os frequentava.
-Cinemas comerciais... Você adjetivou
muito bem: esse é o motivo. O jeito é se contentar com os filmes clássicos pela televisão.
-Você trabalhou sob a direção de Josef
von Sternberg por um bom tempo?
-De 1930 a 1935; sete foram os
filmes: o já citado, Marrocos, Desonrada, O Expresso de Shangai, A Vênus
Loura, A Imperatriz Galante e Mulher Satânica, este o último.
-Então, Hitler, o senhor da Alemanha, no
auge da popularidade, a convidou para ser protagonista de fitas pró-nazistas. -
voltei ao assunto.
-Sobre ele, não vou falar mais para não
desperdiçar energia. Eu fiquei decepcionada com a falta de lucidez do povo
alemão; peguei minhas coisas e viajei para os Estados Unidos com o propósito de
mudar a minha nacionalidade e prosseguir dignamente na carreira artística.
-O que torna o seu gesto ainda mais
louvável era você não ser judia, ou seja, recusou a bem-aventurança que o ídolo
do povo germânico lhe fornecia. Você era uma mulher que estava à frente do seu
tempo.
-Sim, fui a primeira mulher a usar
calças em público; isso, na década de 20. - informou com um trejeito irônico.
-Você descobriu que sabia não apenas representar, mas também cantar.
-Eu gostava muito de cantar. Assim, fui
ao encontro dos soldados aliados, na Segunda Guerra Mundial, distraí-los das
agruras da vida com a minha voz.
-Enfurecendo os alemães. - completei.
-Não os lúcidos, que eram os que eu
considerava.
-No meu tempo de garoto, eu a vi na tela
grande do Cine Cachambi, num filme com o Gary Cooper (*). Não me recordo do
nome do filme, mas não me sai da mente a cena em que você desperta o desejo dos
homens numa partida de bilhar.
-Saí muitas vezes para cantar,
principalmente em Las Vegas ,
para fugir um pouco desse estereótipo de atriz erótica.
-Mas um diretor da qualidade do Orson
Welles a chamou para atuar num dos melhores filmes dele, A Marca da Maldade.
-Eu tinha cinquenta e seis anos, na época, mas
tivesse trinta e Orson Welles continuaria a me ver como uma mulher que sabe
pensar.
-Billy Wilder a convocou um ano antes
para atuar em Testemunha de Acusação.
-Billy Wilder dizia que era louco pela
sopa de cogumelo que eu preparava.
-Ele era, na verdade, louco por você. -
disse em tom jocoso.
-Sim, mas ele era muito respeitoso. Um
austríaco que, por ser judeu, viu-se obrigado a se refugiar nos Estados Unidos
para não ser morto pela barbárie nazista.
-E a Alemanha, Marlene?
-Em turnê, como cantora, pisei o solo
alemão em 1962. Ainda no aeroporto, ouvi vozes que me chamavam de traidora.
-Como dizia Einstein, a estupidez humana
é infinita.
-Sim, mas é hora de partir.
E, com a mesma leveza com que chegou,
ela se foi.
(*) O
Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO custou, mas achou – é o filme Desejo
(1936). La Deitrich
contracenou com todo mundo, mas Gary Cooper foi um dos primeiros, na fase
Hollywood.
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