Total de visualizações de página

sexta-feira, 8 de março de 2013

2333 - o desejo do biscoito


----------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4133                            Data: 16 de fevereiro de 2013
--------------------------------------------------------------------

81ª VISITA À MINHA CASA

-Marlene Dietrich. - vibrei.
-Como você olha para mim e não pensa só nas minhas pernas, resolvi visitá-lo.
-Não é que eu não pense nas suas belas pernas, afinal, eu assisti ao “O Anjo Azul” quando a testosterona fervilhava nas minhas veias. Mas soube, depois, que o seu cérebro era privilegiado.
Pensei, naquele momento na atriz Hedy Lamar, precursora de um invento importante como o celular, mas, por cavalheirismo, me calei.
-Alguns diretores de cinema me consideraram muito lúcida. - disse, sem falsa modéstia.
-Alguns diretores?... Billy Wilder, Orson Welles, os grandes... - enfatizei.
-Tenho saudades deles.
-Billy Wilder disse, para os biógrafos dele, que, de todas as atrizes com que trabalhou, você foi aquela a quem ele mais admirou.  Disse textualmente que as pessoas falavam sobre as suas pernas, que, reconhecia, eram muito boas, além do restante do seu corpo e do seu talento. Mas o que ele mais admirava era sua inteligência. Assinalou que você era corajosa em manter as suas convicções, que reconheceu logo os nazistas. “Não aceitou seus prêmios e convites e foi embora da Alemanha, mesmo não sendo judia.
-Hitler me convidou para protagonizar filmes pró-nazistas, considerei aquele homem de bigodinho tão ridículo quanto o que seria retratado, anos depois, pelo Charles Chaplin. Depois de recusar, viajei para os Estados Unidos e me tornei cidadã americana. Hitler me tachou de traidora.
-Suas raízes eram bem germânicas?
-Sim; eu nasci em Schöneberg, um distrito de Berlim. Minha mãe era de uma família endinheirada, que possuía uma fábrica de relógios na capital da Alemanha. Meu pai era financeiramente mais modesto, um tenente da polícia, mas morreu logo, em 1911, eu contava com dez anos de idade.
-Eram você e a sua irmã um ano mais velha, Elizabeth?
-Sim. Viúva, minha mãe foi cortejada pelo melhor amigo do meu pai, um refinado primeiro tenente dos granadeiros. Casaram em 1916. Mas eu perdi também o meu padrasto, que morreu na Primeira Grande Guerra Mundial. Eu estava com quinze anos de idade.
-E o que você fez?
-Preparei-me nas escolas de arte cênica e integrei o elenco de filmes mudos até 1930. Nesse ínterim, precisamente 1921, casei-me com um ajudante de diretor de cinema, e tive, em 1924, a minha única filha, Maria.
-Quando você estreou no teatro?
-Em 1924; fiquei na vida teatral por cinco anos, mas apenas colhi experiência nesse período, sucesso nenhum.
-E como você saiu do teatro para o cinema?
-O cineasta austríaco Josef Sternberg me viu numa dessas peças sensaboronas e me fez o convite para atuar em Der Blaue Engel.  
-Um filme que se tornaria um clássico, O Anjo Azul.
-Ainda bem que o meu primeiro filme sonoro me catapultou logo para o cinema, pois eu marchava a passos de ganso para trinta anos de idade.- comentou com uma risadinha.
-Não conheço melhor história do que a d' O Anjo Azul, para retratar a degradação de um senhor respeitável por uma mulher.  O venerável Professor apaixonado até cacareja por sua causa.  Evidentemente que o seu papel de mulher fatal tinha uma importância fundamental para o público aceitar a história como plausível.
-Não vamos esquecer a qualidade do romance de Heinrich Mann. Ele não se destacou, na literatura, para não falar em política, tanto quanto o irmão, mas tem o seu valor.
-Já recebi uma visita de Thomas Mann aqui em Del Castilho. Sinto-me atraído pela família Mann, não só pelas artes, mas também pelas personalidades complexas. Sem falar que a matriarca, Kátia, era natural de Paraty.
-Como eu me iniciei tarde, no cinema, não podia falhar.
-Nessa sua estreia cinematográfica, você se aproveitou das suas pernas bem torneadas pela natureza, mostrando-as em posições ousadas para o ano, 1930.
 -Eu era, na fita, uma cantora de cabaré, tinha um álibi perfeito, com isso, tirei partido: fingia que a mostrava para um pequeno grupo de frequentadores de espelunca, quando a minha intenção era deslumbrar as grandes plateias dos cinemas pelo mundo afora. É claro que fui muito incentivada pelo Josef von Sternberg.
-Assisti ao seu filme umas três vezes pela televisão e fiquei encantado, como aqueles alunos do tal professor. Infelizmente, não soube de uma só exibição desse filme nos cinemas comerciais, na época em que eu os frequentava.
-Cinemas comerciais... Você adjetivou muito bem: esse é o motivo. O jeito é se contentar com  os filmes clássicos pela televisão.
-Você trabalhou sob a direção de Josef von Sternberg por um bom tempo?
-De 1930 a 1935; sete foram os filmes: o já citado, Marrocos, Desonrada, O Expresso de Shangai, A Vênus Loura, A Imperatriz Galante e Mulher Satânica, este o último.
-Então, Hitler, o senhor da Alemanha, no auge da popularidade, a convidou para ser protagonista de fitas pró-nazistas. - voltei ao assunto.
-Sobre ele, não vou falar mais para não desperdiçar energia. Eu fiquei decepcionada com a falta de lucidez do povo alemão; peguei minhas coisas e viajei para os Estados Unidos com o propósito de mudar a minha nacionalidade e prosseguir dignamente na carreira artística.
-O que torna o seu gesto ainda mais louvável era você não ser judia, ou seja, recusou a bem-aventurança que o ídolo do povo germânico lhe fornecia. Você era uma mulher que estava à frente do seu tempo.
-Sim, fui a primeira mulher a usar calças em público; isso, na década de 20. - informou com um trejeito irônico.
  -Você descobriu que sabia não apenas representar, mas também cantar.
-Eu gostava muito de cantar. Assim, fui ao encontro dos soldados aliados, na Segunda Guerra Mundial, distraí-los das agruras da vida com a minha voz.
-Enfurecendo os alemães. - completei.
-Não os lúcidos, que eram os que eu considerava.
-No meu tempo de garoto, eu a vi na tela grande do Cine Cachambi, num filme com o Gary Cooper (*). Não me recordo do nome do filme, mas não me sai da mente a cena em que você desperta o desejo dos homens numa partida de bilhar.
-Saí muitas vezes para cantar, principalmente em Las Vegas, para fugir um pouco desse estereótipo de atriz erótica.
-Mas um diretor da qualidade do Orson Welles a chamou para atuar num dos melhores filmes dele, A Marca da Maldade.
 -Eu tinha cinquenta e seis anos, na época, mas tivesse trinta e Orson Welles continuaria a me ver como uma mulher que sabe pensar.
-Billy Wilder a convocou um ano antes para atuar  em Testemunha de Acusação.
-Billy Wilder dizia que era louco pela sopa de cogumelo que eu preparava.
-Ele era, na verdade, louco por você. - disse em tom jocoso.
-Sim, mas ele era muito respeitoso. Um austríaco que, por ser judeu, viu-se obrigado a se refugiar nos Estados Unidos para não ser morto pela barbárie nazista.
-E a Alemanha, Marlene?
-Em turnê, como cantora, pisei o solo alemão em 1962. Ainda no aeroporto, ouvi vozes que me chamavam de traidora.
-Como dizia Einstein, a estupidez humana é infinita.
-Sim, mas é hora de partir.
E, com a mesma leveza com que chegou, ela se foi.

(*) O Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO custou, mas achou – é o filme Desejo (1936). La Deitrich contracenou com todo mundo, mas Gary Cooper foi um dos primeiros, na fase Hollywood.


Nenhum comentário:

Postar um comentário