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segunda-feira, 1 de abril de 2013

2349 - o craque da rodada

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4149                                      Data: 17 de  Março de 2013
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SABADOIDO DOS CRACUDOS

Desviei-me do caminho costumeiro da minha casa ao Sabadoido porque levava latinhas vazias de cerveja para uma moradora gorda e patusca da Rua Gaugin, Assim, em vez de seguir pela Vlamink e dobrar na Itamaracá, segui pela Gaugin e dobrei na Avenida Suburbana. Lá, não vi, como no sábado passado, a romaria de fiéis do bispo Macedo que ia da Igreja Universal até a livraria Saraiva do Norte Shopping, onde era vendido o livro “Nada a perder- Momentos de convicção que mudaram a minha vida,” do bispo Macedo.
Vi, isso sim, três cracudos estirados sob a marquise do local que fora o Armazém São Domingos. Apesar da cena deprimente, me vieram à mente as compras que eu fazia lá, quando morava na Rua Cachambi, a pedido do meu pai e, depois as reclamações que eu, garoto indignado, levava ao meu pai.
-Lá, eles atendem primeiro as mulheres, mesmo eu chegando na frente.
Bem, deixei tudo para trás e segui até o portão da casa da Gina. Enquanto aguardava que alguém abrisse o portão, recuei uns dois metros e avistei outro cracudo, estirado sob a marquise do edifício onde morou o Luís Afonso, português que lá viveu desde pequerrucho e que, depois de uns 20 anos de idade, se fixou com a família em Portugal.
O craque é hoje, no Brasil, como o gim na Inglaterra antes do reavivamento do século XVIII: jogou a população pobre na mais tenebrosa degradação; a situação só foi revertida com o aumento do preço da bebida e o desenvolvimento econômico. Um século depois, o império britânico derrubaria a China disseminando o ópio. Pensava nisso, quando o meu sobrinho apareceu para me franquear a casa. Falou-me sobre as últimas notícias do futebol enquanto seguíamos até a cozinha, onde o Claudio à mesa lia o Globo.
A leitura não o impedia de ler o jornal, por isso me referi ao imposto de renda da minha mãe.
-A mamãe recolheu R$ 9.004, 00 na fonte e só vai receber 2 mil de volta. É o cúmulo que ela pague mais de 6mil reais de imposto de renda.
-O governo precisa de dinheiro porque são muitos os ladrões. - comentou.
-Carlinhos, o Daniel vai ter de pagar, este ano, imposto de renda. - informou-me a Gina.
-Daniel, basta você baixar o imposto de renda no computador que o resto é fácil. - voltei-me para ele.  
-Carlão, prefiro baixar o santo; ele, pelo menos, não morde como o leão. - manifestou-se.
Nesse instante, o seu pai se animou com uma notícia e a leu em voz alta. Dizia ela que a Casa da Moeda alcançara um lucro espetacular.
-Mais dinheiro no bolso do Daniel. - completou.
-E mais mordida do leão, que adora a participação nos lucros do contribuinte. - acrescentei.
Para não jogar água na fervura, expliquei que em qualquer ganho agora só incidiria o imposto no ano de 2014.
-Já prevejo uma má Copa do Mundo. - pilheriou o Daniel.
Voltei-me para a mãe dele.
-Como há cracudos por aqui, Gina.
-Sábado passado, quando você saía com o Luca, ele não deu conversa a um cracudo, quando entrava no carro. E ele, depois, veio se queixar a mim.
E a Gina reproduziu a fala do sujeito:
-Ô tia, eu ia avisar que um guarda estava multando todo o mundo por aqui.
E prosseguiu a Gina:
-Um desses cracudos me viu com três quentinhas, um dia e me perguntou onde eu comprara. Mostrei-me desconfiada, mas ele disse que não queria dinheiro para comprar droga, que morador de rua sente fome e ele estava faminto. Eu lhe indiquei um restaurante onde ele conseguiria uma quentinha com mais comida, pois era self service.
-E lhe deu dinheiro? - perguntei.
-Espero que ele tenha comprado a quentinha, mas tenho as minhas dúvidas.
-E ele sumiu? - tive curiosidade.
-Ainda não; certa vez, eu conversava com o Luís Xalulu, quando ele apareceu. Eu lhe perguntei por que não largava o craque para arrumar um trabalho. Ele me disse que bem que tentava, mas sempre lhe pediam documentos e ele não tinha. Então, o Xalulu entrou na conversa: “Por que você não vai ao comitê da Tereza Bergher, que lá conseguem documentos para você?” E ele, como nós, não sabia que a valorosa Dona Sarita, a mãe do Elio Fischberg, trabalha num desses comitês.
-E ele?
-Carlinhos, depois dessa, eu nunca mais o vi.
-O preço da pedra do craque é 5 reais.- interveio o Claudio.
Voltei a pensar no baixo preço do gim na época da degradação dos pobres da Inglaterra, no início do século XVIII.
-Muitos fogem dos cracudos, mas eu até converso com alguns deles.
-O taxista de ontem, que viu muitos cracudos nas rampas da estação do metrô de Maria da Graça, afirmou que eles só assaltam na sugestão, porque não andam armados.
-Se colocarem uma arma na mão deles, vendem logo para comprar pedras de craque. - disse o Claudio.
Gina se reportou a outro caso com esses viciados.
-Há duas semanas, alguns deles estavam deitados, quando passou um cracudo e roubou o chinelo de outro cracudo. Acordaram a vítima que, percebendo que ficara sem o chinelo, passou a dizer umas palavras desconexas para o ladrão, porém este já estava longe.
-Ladrão e vítima não tinham condições de correr; são zumbis. - comentei.
Meu sobrinho, que se retirara para o interior da casa, voltou para dizer que o seu computador estava liberado para mim.
-Daniel, estou providenciando uma assinatura com a GVT e logo o seu computer  ficará livre de mim.
-Disponha, Carlão.
 Diante do computador, acessei um vídeo com uma palestra dada por uma portuguesa, diante de um auditório e ao lado de uma mesa de palestrantes que, parecia, já deram os seus recados.  Declarava ela que tinha 36 anos e que era jovem. Seu pai, porém, que vivera os duros anos de Portugal, não foi jovem, pois teve logo de trabalhar. Ele não gozou a juventude, nem mesmo a infância, e o mesmo aconteceu com a sua mãe. Ela não pôde ser criança, brincar, e também ser jovem, com as despreocupações que lhe deram tempo para o lazer. No entanto, via o Portugal de hoje, afundado numa terrível crise econômica, com bastante apreensão, em que as pessoas corriam o risco de, como seu pai, não terem infância nem juventude.
A chegada da Gina desviou minha atenção do vídeo que, por sinal, já acabara.
-O Luca e o Vagner não vêm. O Luca vai ajudar o filho na mudança de casa. - anunciou.
-O cavalo que substitui os ausentes do Sabadoido ficará sobrecarregado. - concluí.
-É caso de nos queixarmos à Secretaria de Defesa dos Animais. - brincou ela.

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