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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4128
Data: 10 de fevereiro de
2013
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80ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-Onde estávamos mesmo?
-Puccini, você falava da sua paixão pelos automóveis.
-É verdade; comprei alguns.
-Sim, mas você quase perdeu a vida num
desastre automobilístico.
-Sim; estávamos no carro eu, Elvira e
nosso filho Antonio, na estrada de Lucca a Torre del Lago. O motorista perdeu a
direção, saiu da estrada e o carro virou. Elvira e Antonio foram arremessados
para fora e não se feriram muito, eu fraturei o fêmur da perna direita e ainda
fiquei com uma parte do carro pressionando meu peito. O socorro que veio de um
médico que estava por perto me salvou.
-Ficou, então, um bom tempo acamado?
-Mas trabalhando na minha próxima ópera,
Madame Butterfly.
-Muitos admiradores seus se alarmaram
com a sua ousadia de abordar um tema japonês.
-Eu estava tranquilo, pois confiava que
todas as sensibilidades flutuariam na minha melodia.
-Mas a estreia, no Scala de Milão, no
dia 17 de fevereiro de 1904, foi
um fracasso, Puccini. É verdade que estava na plateia a claque dos seus rivais,
que apontava trechos de outras óperas suas que você reciclou, transformando Madame
Butterfly num remendão. É claro que essas críticas foram exageradas.
-Ao contrário de Verdi, que logo
percebeu, com toda razão, que o
fracasso da estreia da Traviata era dos cantores, da plateia, de quem
fosse, menos dele, eu vi que o erro era eu.
-Você compôs a ópera em dois atos, o
público sentiu que a estrutura da sua obra era pesada.
-Retirei a ópera de cartaz com o
objetivo de melhorá-la, Ela ficou
com três atos, com o coro a bocca chiusa sendo uma espécie de
lenitivo que prepara a passagem da
ação do segundo para o terceiro ato.
-Com essa revisão, Madame Butterfly triunfou em
todas as récitas dos teatros espalhados pelo mundo, fizeram-lhe justiça.
-Na verdade, eu realizei mais de uma revisão; na quarta
ou quinta, que estreou no Teatro Carcano, em 1920, eu me dei por satisfeito.
Essa ficou como a versão definitiva.
-Esporadicamente, encenam a primeira versão. - disse-lhe.
-Depois de 1904, a minha energia
criativa diminuiu um pouco. A morte do meu libretista, Luigi Giacosa, em 1906,
contribuiu para isso.
-Eu acredito que contribuiu para o seu
bloqueio criativo a tragédia
familiar que viveu.
-Sim, contribuiu muito. Minha esposa
Elvira era mais ciumenta do que Flora Tosca, e encasquetou que a nossa criada,
uma jovem prendada, Dora Manfredi,
era minha amante.
-Sei da história, ele perseguiu a moça
com tanta crueldade que ela se matou.
-Uma covardia, por que Elvira não
enfrentou cantoras e atrizes, que foram, de fato, minhas amantes? Porque eram
mulheres experientes prontas a enfrentar de igual para igual as esposas
ciumentas. - criticou o compositor o ato da sua consorte.
-Mas a família da moça, os Manfredi, não
era boba e entrou na justiça com um processo contra a sua esposa. Venceram a
ação, porque ficou comprovada a virgindade da pobre moça.
-Sim, Elvira foi condenada a pagar uma
indenização em dinheiro aos Manfredi; na realidade, eu que paguei. Isso
aconteceu em 1909.
-Você tinha de retornar à música, que
era a sua vida.
-Recebi uma encomenda do Metropolitan
Opera House para comport uma ópera com enredo do faroeste americano. Aceitei o
desafio e, sobre uma peça de David Belasco, compus La Fanciulla del West.
-Estreou no MET em 19 de dezembro de
1910, sob a regência de Arturo Toscanini, com Enrico Caruso no papel de Dick
Johnson.
-Isso mesmo, e a soprano Emmy Destinn
foi a Minnie.
-Reza a lenda que ao ouvir Caruso, você
teria dito: “Quem o enviou até mim?... Deus...”
-Se a lenda diz, não vamos contrariá-la.
- sorriu o compositor.
-”A Moça do Oeste”, ou La fanciulla del West, provocou
polêmicas; uns criticam as poucas árias, o fracasso na busca de uma tonalidade
estadunidense, mas outros a enaltecem pela linguagem harmônica avançada e a
complexidade rítmica incorporada à ópera italiana.
-Minha ópera não obteve na Itália o
mesmo êxito, nos Estados Unidos.
-Contudo, Puccini, os soldados italianos
que partiam para a Primeira Grande Guerra Mundial cantavam a ária do tenor
prestes a ser enforcado, que era um pedido aos seus carrascos: Ch'ella mi
creda libero e lontano ( Que ela creia que eu esteja livre e distante).
-Em 1912, faleceu Giulio Ricordi, que
não foi apenas meu editor, era o amigo que acreditou em mim, no princípio da
minha carreira, quando eu não obtinha êxitos.
-Depois, em 1917, estreou no Grand
Théâtre de Monte Carlo, La Rondine, com libreto de Giuseppe
Adami.
-Essa ópera tinha sido encomendada pelo Carltheater de Viena,
mas com a deflagração da guerra, a première aconteceu em Mônaco.
-Foi um equívoco essa ópera? - perguntei
sem melindre.
-Como seria para os vienenses, eu a
concebi como uma opereta. Depois, eliminei os diálogos falados e recriei meu trabalho para aproximá-lo
de uma ópera. Nunca fiquei satisfeito, as incontáveis versões que fiz provam
isso.
-Os musicólogos consideram a sua obra
menor da fase madura.
-Piores são aqueles que disseram que eu
compunha com os cifrões na cabeça.
-Mas em 1918, veio Il Tritico,
que mostrou que você não perdeu a força criativa.
-Foram três óperas curtas, que estrearam
no Metropolitam Opera House de Nova York, em 14 de dezembro de 1918: Suor
Angelica, Il Tabarro e Gianni Schicchi.
-Desponta do Il Tritic, indubitavelmente, Gianni Schicchi.
Verdi precisava compor uma ópera cômica para mostrar que dominava todos os
gêneros, e, perto dos oitenta anos, nos deu a obra-prima que é o Falstaff. Você também nos devia uma ópera bufa,
depois de tantos dramas, e não decepcionou os seus admiradores com Gianni Schicchi.
-Não chega ao nível do Falstaff, mas
é uma boa ópera. - reconheceu.
-A sua última ópera é a minha preferida:
Turandot.
-Eu a compus, no início, com o
pressentimento da proximidade da morte, até que senti os estertores.
-Você fumou muito? - indaguei-lhe em tom
penalizado.
-Fui um fumante inveterado. No final de
1923, queixava-me de uma dor de garganta interminável. Os médicos
diagnosticaram câncer na garganta, e me aconselharam um tratamento novo e
experimental: a radioterapia, que era praticada em Bruxelas. Eu tinha de compor
Turandot e, ao mesmo tempo, afugentar a morte para longe de mim.
-Turandot, reconhecem os estudiosos, é
uma grande criação. A ópera é intensamente modulada com motivos pentatônicos
que reproduzem, na música, o ambiente chinês. Além de conter árias memoráveis
como Nessun dorma, a ária da escrava Liù...
Interrompeu-me:
-A ária da escrava Liù...
-É fato que, nessa ária, você se
reportou ao suicídio da criada Doria Manfredi, que o amava.
-A morte foi implacável, quando eu
chegava ao fim da minha criação, ela me levou.
-O compositor Franco Alfano, recorrendo
aos seus rascunhos, a terminou. Arturo Toscanini, quando regeu a estreia da
Turandot, em 25 de abril de 1926, e, no terceiro ato, pouco depois do suicídio
de Liù, parou, voltou-se para o
público que lotava o Scala de Milão, e disse:
-Aqui, a ópera terminou, porque nesse
ponto o maestro morreu.”
-Un bel di vedremo. - disse como
na Madame Butterfly..
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