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quarta-feira, 28 de março de 2012

2220 - cavalgando por aí

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3920 Data: 27 de março de 2012

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SABADOIDO DO RETRATO DE RECORDAÇÕES

PARTE III

Porque se confundiu nas pronúncias de Malarmé e Baudelaire como tradutores de “O Corvo”, Luca enveredou por esse assunto.

-Eu dizia “voyeur”, como se escreve, mas um dia ouvi o Carlinhos dizendo “voaieur”. Depois, ouvi o Chico Buarque, grande conhecedor da língua francesa, falando também “voiaeur”.

-Luca, nós estudávamos francês no curso ginasial e aprendíamos isso. - intervim.

-... No ginasial e no científico. - acrescentou a Gina com veemência.

-Sim, você até foi aluna do Pierre Vincent do Visconde de Cairu. - disse, lembrando-me dos casos que ela me contou do afetado professor, que recebeu esse apelido.

-Sim, o Pierre Vincent. - ratificou.

-Não é pedantismo, mas eu me recuso a aportuguesar os nomes das ruas vizinhas à minha casa. Falo “Renoar”, “Gogan”, “Manê”, “Rodan”.

-Ainda existem aqueles que perguntam pela rua “Corote” com o “ó” aberto?- quis saber a minha cunhada com a expressão mordaz.

-Eu corrijo: “O senhor quer dizer Rua Corot”?

-De um tempo pra cá, o inglês tomou o lugar da língua francesa. - manifestou-se meu irmão.

-O francês era considerado a língua culta, e o inglês é a língua comercial.

Depois de eu falar, a Gina narrou mais uma vez o caso do floreado Jorginho, morador da casa onde hoje é o motel Cartago, que foi abordado por um motorista que queria saber a localização da rua “Gaugin” (falou como se escreve). Depois de indicar a rua “Gogan”, com mais precisão do que um GPS, Jorginho arrematou: “O seu carro é uma beleza, mas o seu francês é uma merda.”

Em seguida, Gina se ergueu da cadeira do ausente Vagner e rumou para dentro de casa. Luca, nesse ínterim, pegou um envelope.

-A Rosa mandou para você.

Era um livro. Espiei o título: “Como Proust pode mudar sua vida.”

-Estão, agora, usando os grandes autores da literatura para escrever livros de ajuda- comentei com meus botões, enquanto me vinha à mente o livro sobre Jane Austen, com o mesmo propósito, que a Rosa me presenteara no meu aniversário.

Entre as páginas, colhi uma folha de papel amarela onde a presenteadora corrigia o autor do livro que, na página 179, trocou o Carlos V do quadro de Ticiano por Carlos I. Em seguida, a erudita Rosa me enviou uma gravura dessa obra-prima com os dizeres:

-”É o Carlos V do Ticiano de que lhe falei, o escritor fala em Carlos I. Haja Carlos! Quanto ao V, sempre ouvi dizer que era um grande estadista. Li uma biografia em que um autor cubano, pré-Fidel, garantia que era um imbecil. Numa (biografia) sobre Lucrécia Bórgia, garantiam que era uma santa.”

Procurei o nome do escritor do livro de autoajuda e li: Alain de Botton.

O assunto sobre a pronúncia de palavras estrangeiras retornou.

-O Zé Espanhol veio para o Brasil menino e, ainda hoje, fala com sotaque da Espanha. - assinalou o Cláudio.

-Ele chegou ao Brasil pequenininho e continua pequenininho. - pilheriou meu irmão.

-Quando o Zé Espanhol fica nervoso, então, ela fala um idioma que ninguém entende, parecido com o espanhol. - disse o Luca.

-O Fernando, Cláudio, o nosso vizinho de tempo de garoto da Rua Cachambi, era um espanhol que falava melhor do que muitos cariocas.

-Carlinhos, o Fernando era inteligente.

Gina, que retornara à sessão do Sabadoido, tirou das cinzas do esquecimento os portugueses e espanhóis, que residiram no Cachambi, com seus respectivos sotaques.

-O Fernando se entendia com os pais na língua da terra deles, Santander e conversava conosco sem um acento que fosse estranho à nossa maneira de se expressar.- disse, em conversa paralela com meu irmão.

-Fernando era mais de pensar do que de colocar a mão na massa.

Às palavras do meu irmão, veio-me à mente que o Zé Espanhol trabalhara com um mouro em padaria até se tornar proprietário de uma, perto do Adegão Português, onde eu almoçara , no início deste ano, com o Elio Fischberg e o Luca.

-Ele quer a Tchina (Gina) e a Tchura (Jura) na festa de aniversário dele. - brincou também o Luca com o sotaque do nosso padeiro de São Cristóvão.

E pensar que a Rosa Grieco me chama, às vezes, de mitron (aprendiz de padeiro, em francês)?! ... Alfinetamo-nos um ao outro como praticantes de vodu. Tudo nos mais alto nível, como nas discussões entre os senadores Roberto Campos e Fernando Henrique Cardoso.

Divagava eu, quando o Cláudio passou por mim para encher os copos vazios, enquanto a Gina, mais uma vez, voltava para dentro de casa.

O Otto Maria Carpeaux veio da Áustria para o Brasil, fugindo do nazismo, sem falar nada da nossa língua e, em três anos, já fazia avaliações sobre a nossa literatura.

-Carlinhos, o que isso tem a ver com o que falávamos?- criticou meu irmão.

-Não estávamos falando na adaptação dos estrangeiros à nossa língua?- rebati.

-Mas Otto Maria Carpeaux?!... - insistiu que eu exagerava.

-Sim. - mostrou o Luca concordância comigo.

-Você conheceu o Otto Maria Carpeaux? - questionou o Cláudio.

-Conheci. - assegurou o Luca.

Veio-me à mente o enciclopédico escritor que redigira “Uma Nova História da Música”, que eu li, anos atrás, e reli, recentemente, porque a Rosa me enviou o livro em outra edição. Incrustaram-se no meu cérebro as suas palavras sobre Wagner, um compositor tão diferenciado no universo da música que ele, Carpeaux, para desancar, teve de recorrer ao caráter: “um canalha”. Richard Strauss, que se mostrou um músico incansável, haja vista a sua obra prolífica, foi chamado por ele de “oportunista”. Por que oportunista? Mas não era disso que eu queria me lembrar. Quando consegui, finalmente, arrancar da minha memória a briga de socos entre ele e o Jorge Amado, o Luca atendeu a um chamado do seu celular.

Cláudio se reportou à morte do locutor Ernani Pires Ferreira e à baixaria que grassa no Jockey Clube Brasileiro e que provocou a sua demissão, acelerando o desfecho triste.

-Recorda-se, Cláudio, quando o Baronius perdeu o Grande Prêmio Brasil de 1980, porque o jóquei do cavalo de São Paulo chicoteou os seus olhos?... Mesmo com essa irregularidade, não houve desclassificação e o Baronius, que pertencia ao Lineu, ou Francisco, de Paula Machado, ficou atrás do paulista.

-Eles mostraram nobreza. - declarou.

-Pois é, a nobreza da família Paula Machado foi posta para correr do Jockey Clube Brasileiro.

Nesse instante, o Luca desligou o celular e me pediu pressa, pois já chegara a hora de ir embora.

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