Total de visualizações de página

sábado, 24 de março de 2012

2117 - Cavalgaduras simpáticas

--------------------------------------------------------------------------------------

O BISCOITO MOLHADO

Edição 3917 Data: 21 de março de 2012

------------------------------------------------------------------------------------

NÃO SE MODULA ASSIM, NO TÁXI

Entrei no carro do “Meu Nobre”, que havia sintonizado o rádio táxi na central da cooperativa. Deduzi que não seria bem vindo um diálogo naquele momento para ele, pois poderia perder uma corrida posterior, por isso, mantive-me mudo. Não seria eu que iniciaria uma conversa.

Não pretendia dedicar a minha atenção às palavras que soavam daquele aparelho, mas, em dado momento, ouvi uma voz que trovejou:

-Zero cinquenta e três. - era um taxista que oferecia seu veículo para uma corrida.

-Zero cinquenta e três. - bisou.

Fez-se um silêncio total.

Quem é esse estressado?- pensei com meus botões.

Inesperadamente, entrou no lugar da voz feminina, que coordena a demanda e a oferta, na central da cooperativa, uma voz masculina.

-O que é isso?... Você não modula assim?

O silêncio voltou até ser quebrada por uma voz mansa:

-Zero cinquenta e três.

Fui obrigado a falar:

-Ele havia gritado.

-Gritou mesmo. - concordou o “Meu Nobre”.

Em seguida, ele discorreu sobre a necessidade de os taxistas se manterem calmos, apesar do trânsito irritante e da vida difícil que levamos na cidade grande.

-Um comandante da Marinha, no meu trabalho, dizia, sobre essas pessoas que levantam a voz intempestivamente, que atravessam problemas psicossociais. - lembrei.

Na rua Modigliani, despediu-se chamando-me, como sempre, de “Meu Nobre”.

-----------------------

Descendo a primeira rampa da estação do metrô de Maria da Graça, vi um sujeito bem vestido, comparando-o com os demais, que distribuía folhetos aos transeuntes.

-Falta tanto tempo ainda para as eleições...

Não se tratava de cargo eletivo, constatei com o papel que me entregara, na mão, e sim de uma nova igreja evangélica cujo nome ligava Cristo a alguma coisa que se perdeu na minha memória.

Com o taxista do 017, também conhecido por nós como “Dedão do Arqueiro Inglês”, porque num entrevero de trânsito o ofenderam com o gesto desses temíveis arqueiros medievais, comentei o fato:

-Como a abertura de igrejas isenta os empresários da fé de impostos, há mil igrejas espalhadas por aí.

-O que foi?- quis saber.

-Um esperto distribui folhetos, lá na rampa do metrô, com o objetivo de colher fiéis para a igreja que vai inaugurar.

-Veja só!... - reagiu.

-Talvez tenha sido discípulo do Bispo Macedo.- aventei a hipótese.

-Certamente.

Depois de concordar, prosseguiu:

-Mas o Bispo Macedo não ensinou o pulo do gato a ele.

-Os feiticeiros só deixam, na verdade, aprendizes.

Consegui frear a minha língua, pois ia enveredar pelo poema “Aprendiz de Feiticeiro” de Goethe.

-Você conhece o pulo do gato?- interessou-se pelos meus conhecimentos.

-Conheci, quando morei numa vila da rua São Gabriel. Rex, o buldogue do Seu Dilmar, um vizinho muito querido, partiu com um apetite impressionante atrás de um gato, quando parecia que o bichano estava desgraçado, ele deu um pulo para trás e escapou.

-A diferença é que o Bispo Macedo não dá o pulo do gato para se salvar, mas para perder os outros.- disse o “Dedão do Arqueiro Inglês”, e parou no segundo poste da Modigliani.

-----------------------

-Que calor! - reclamou o taxista, logo que sentei no banco da frente.

-Se o ar condicionado deste carro estivesse funcionando, não reclamaria. - resmunguei com meus botões.

Não rodou 100 metros e voltou a se queixar da alta temperatura.

-Deveria baixar os vidros do táxi, ao menos.

Eu pensava, mais nada dizia, pois era um taxista bissexto naquele ponto da rua Domingo de Magalhães, pelo menos no meu horário de passageiro desse meio de transporte.

Reportei-me, em pensamento, ao Flamenguista, que me contara que, trabalhando no carnaval, avisou a todos, antes de entrar no seu táxi, que o ar condicionado estava pifado e que ele só poderia consertá-lo na quinta-feira, pois as lojas não abririam nem na quarta-feira de cinzas.

-O senhor sabe quando acaba o verão?

A primeira resposta que me veio à mente foi a frase de um colega de trabalho, que disse que o verão só se encerra quando o termômetro cai para menos de 30º.

-Creio que termina no dia 21 de março. - respondi.

-Falta pouco.

-Mas o calor vai até abril. - acrescentei com uma ponta de sadismo.

-Mais um mês de quentura, não.- protestou.

-Recordo-me de dias abril que foram uma fornalha.- falei pausadamente.

-Peço aos céus uma frente fria.- bradou.

Saltei do táxi com uma frase do Mark Twain na cabeça: “Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia.”

----------------------------

-Rapaz, enfim uma viagem descontraída no metrô.- falei, enquanto ajustava o cinto de segurança do meu banco, no táxi do Botafoguense.

-As pessoas saem do metrô mal-humoradas... - estranhou.

-Eu entro e saio de mau-humor, mas, dessa vez, foi diferente. Na estação Carioca...

-Você pega o metrô da volta lá?

-Sim. Naquele fluxo e refluxo de passageiros, na Carioca, entraram dois mulatos de bermudas, sandálias de dedo, apregoando: “um lugar para a tia sentar que ela está com criança...”

-E deram lugar?

-Quando o vagão se esvaziou, na estação da Central do Brasil, eu vi uma senhora e um pequerrucho acomodados no banco dos idosos, grávidas, pessoas com bebê.

-E os dois morenos?- quis saber.

-Eram morenos mesmo; eles estavam de pé junto à porta. Já sabiam até o nome da criança, que deveria ter dois anos de idade, no máximo: Daniel. Revelaram que era flamenguistas e perguntaram: “O Daniel também é?...” A mãe respondeu que o bebê era vascaíno.

-Estava criado o clima de guerra.- concluiu o Botafoguense.

-Nada. Os dois brincaram com a rivalidade entre as duas torcidas e disseram que o Daniel era gente boa, que nada tinha a ver com o Eurico Miranda.

-E os passageiros do metrô ouviam tudo?

-Os do nosso vagão ouviam, porque eles falavam alto; ouviam e riam.

-Normalmente, o pessoal está irritadiço, quer viajar em silêncio. - comentou o taxista.

-É verdade, e eu sou um dos maiores exemplos de quem porta uma carranca nessas horas, no entanto, os dois rapazes alegraram mesmo o ambiente.

-Não exageraram na bebida?

-Acredito que era alegria, mesmo. Quando descobriram o dia do aniversário do Daniel, puseram-se a cantar “Parabéns pra você”, com o acréscimo do “Derrama, senhor” e o “Daniel já foi abençoado...”

-Só em aniversário em casa de família católica se canta essas canções. - surpreendeu-se o Botafoguense.

-Despediram-se com um “Tchau, Daniel”, em Maria da Graça, e saíram do trem aos saltos, como potros, pela plataforma do metrô. - concluí, enquanto o táxi chegava à rua Modigliani.

Nenhum comentário:

Postar um comentário